Por Cleomar Manhas, assessora política do Inesc
Este foi o título do Colóquio promovido pela Secretaria Geral da Presidência da República em parceria com o Conselho Nacional de Saúde e participação especial do professor Boaventura de Sousa Santos, que talvez seja o acadêmico que melhor define o conceito de Antônio Gramsci de intelectual orgânico.
Professor José Geraldo, reitor da Universidade de Brasília, foi convidado para compor a mesa e ao se pronunciar falou acerca da possibilidade de se ter um Estado mediador de processos sociais e de direitos, visto como partes que se interrelacionam. E lembrou que conhecimento é razão, mas também afeto, o que se pode referenciar com a construção de Boaventura sobre o conhecimento, que ao ser trocado, transforma-se em solidariedade.
Sem dicotomias agonizantes entre Sociedade e Estado, mas trabalhando dentro e fora do Estado, foi assim que Santos começou a sua palestra sobre o que vem a ser Democracia de Alta Intensidade. E alertou, a democracia está em perigo, mesmo que se esteja em um momento no qual ela é tida como hegemônica e mesmo quem não a defende apropria-se de seu discurso. E é exatamente aí que há suspeita dos riscos.
A crise europeia é um dos sinais de risco, pois neste momento os governos europeus estão utilizando as receitas que sempre pregaram e que agora se viraram contra eles. Quais sejam, as receitas neoliberais transmitidas aos países “subdesenvolvidos”, que se resumem em retirada de direitos sociais. E, de acordo com Santos, os europeus jamais pensaram que seriam utilizadas por eles mesmos, pois foram feitas para quem, segundo eles, “não sabem governar”.
O professor relata que esse é um momento histórico importante, que pode ser definidor dos rumos futuros. E um dos grandes desafios da Europa é perceber o seu preconceito colonialista, do qual nunca se livrou. Foram os ditos países desenvolvidos que criaram a dicotomia desenvolvido/subdesenvolvido. E colocaram no mesmo saco todos os países que não eram reconhecidos como desenvolvidos, desconhecendo as diferenças e subalternizando as distintas culturas. A diversidade foi colocada em um mesmo fosso e não reconhecida.
E a questão para a reflexão deixada por ele é sobre os caminhos percorridos. Esperava-se que os subdesenvolvidos se tornassem desenvolvidos e esses, por seu lado, cada vez mais desenvolvidos, mas não é isto o que está acontecendo, visto que muitos países desenvolvidos estão vivenciando crises profundas e não se sabe onde isso vai dar. Para Santos as crises são resultado do sistema capitalista e das receitas neoliberais, contra as quais, há a democracia em intensidade, ou de alta intensidade.
Os riscos à democracia não moram na possibilidade de haver grandes golpes, mas são perigos cotidianos e sorrateiros, como “estados de exceção” impostos em função de momentos críticos, voltados contra o/a cidadão/ã comum e seus direitos. Na Europa e Estados Unidos, por exemplo, várias instituições tais como o Banco Central Europeu, o Tesouro dos EUA, o Banco Mundial e outros locais de influencia política e econômica são ou foram dirigidos por executivos oriundos do Goldman Sachs, instituição financeira que tem grande responsabilidade, por exemplo, no aprofundamento da crise grega e está entre as instituições financeiras com maior poder de influencia em vários locais do mundo.
Segundo Santos, vários filmes americanos sobre assaltos a bancos já foram vistos, no entanto, neste momento se vive e se vê o assalto aos cidadãos para os bancos, ou, mais especificamente, para a especulação. E com relação à América Latina, ele diz que o capitalismo continua impondo o extrativismo e a eterna negociação de commodities. Além disso, para ele a economia verde é um engodo, pois não é possível existir um “capitalismo verde”, isso é um oxímoro (figura de linguagem que aponta uma contradição ao juntar duas coisas que se negam, ou se repelem).
Voltando para os riscos à democracia, ele diz que política e economia foram fundidas. E enquanto o campo político era o lócus dos valores inegociáveis, ao se juntar com o mercado econômico, onde tudo se vende e se compra, facilitou os processos de corrupção que se tornou sistêmica e endêmica e não está neste ou naquele governo, mas nos Estados.
E governos progressistas e à esquerda que não propuserem reformas estruturais como as reformas política, tributária, administrativa poderão sofrer reveses eleitorais e, ao saírem, perceberem que deixaram o mesmo Estado conservador e retrógrado que encontraram.
E somente a democracia participativa pode ser antídoto a isso. No entanto, a participação não pode reproduzir as mazelas e vícios da representação, pois isso será a sua morte. E, segundo Santos, o erro das esquerdas é criar mecanismos de participação pensando que todos/as estão ali representadas por partidos e movimentos preexistentes, pois há uma quantidade imensa de pessoas que não estão nestes espaços, mas são conscientes e gostariam de participar e não se sentem contemplados nos modelos propostos, estão procurando novas formas. É preciso haver abertura para a inovação. Além de fazer o que ele chama de ecologia dos saberes, ou seja, credibilizar os saberes populares.
Além disso, outro desafio da democracia participativa é que ela não pode ser direta, mas precisa de mecanismos de representação. Além disso, é preciso que os lócus participativos discutam a agenda como ponto de partida, que seja intersetorial e que leve em conta as realidades das comunidades.
Há uma preocupação com a excessiva criação de partidos e a consequente perda das clivagens ideológicas. Na Europa, por exemplo, surgiram vários partidos que acabaram optando pela “terceria via”,pelo centrismo, com discursos muito semelhantes e desmobilizadores.
Santos acredita que os conselhos, caso sejam de fato representativos da sociedade, utilizando ações afirmativas para sua composição, promovendo processos de troca de conhecimento, facilitando a intersetorialidade podem fazer a verdadeira reforma do Estado. Para isso, quando o governo olhá-los por meio de um espelho, não poderá se ver, ou algo estará equivocado, mas deverá ver o outro de si. Cooptação de movimentos sociais por parte do Estado acaba formando uma sociedade civil secundarizada, criada à imagem e semelhança desse Estado. Isso também promove a pasteurização das agendas.
Os Estados tendem a ser monoculturais e por isso não reconhecem a diversidade existente na sociedade. E quando não respeitam e partem para a cooptação acabam matando a diversidade. Precisa-se urgentemente de ecologistas dos saberes, que realizem a tradução dos diferentes experiências.
Ou como bem disse Santos, precisa-se construir uma democracia participativa com dentes, pois em muitos espaços acabam perdendo os dentes por excesso de ingestão de açúcar.