A renúncia de Paul Wolfowitz da Presidência do Banco Mundial não resolve o grave deficit de legitimidade do sistema de governança das instituições financeiras internacionais, em particular do processo de escolha das lideranças do Banco Mundial e do FMI. A crise da gestão de Wolfowitz tem origem em um sistema arcaico de seleção que na prática exclui a maioria absoluta do países membros das duas organizações e reduz a seleção a um acordo entre Europa e Estados Unidos, cabendo aos primeiros a indicação do Diretor Gerente do FMI e aos norte-americanos a indicação do Presidente do Banco Mundial.
A deficiência desse sistema de escolha ficou ainda mais evidente quando da indicação de Paul Wolfowitz pelo presidente George Bush, desagrando uma boa parte dos aliados europeus. A vinculação de Wolfowitz com os chamados falcões republicanos, a linha dura de ideólogos conservadores próximos ao Presidente Bush, críticos ferrenhos do multilateralismos e da ONU, não o recomendava para liderar uma organização cuja agenda requer justamente a capacidade para pensar o mundo para além das fronteiras dos interesses geopolíticos norte-americanos.
Além disso, a responsabilidade de ter sido um dos principais formuladores da estratégia que levou à guerra no Iraque constituia um complicador adicional. Tudo isso foi amplamente discutido na imprensa especializada, objeto de protestos de redes de organizações da sociedade civil do mundo inteiro e motivo de intensas negociações diplomáticas frustradas com o objetivo de encontrar um candidato menos indigesto. O episódio da promoção salarial da namorada – em clara e espantosa violação das regras internas da instituição e dos princípios que orientam (nem sempre seguidos à risca, mas isso é outra história) as suas políticas nos países pobres –, foi a gota d’água que transbordou o copo de mágoas que se acumulavam dentro e fora do Banco desde o início da gestão Wolfowitz.
É preciso, portanto, que o processo sucessório retome o debate interrompido sobre a necessidade de rever com base em critérios mais abrangentes o processo seletivo do Banco Mundial e do FMI. Sem isso essas instuições caminharão a passos ainda mais largos para uma crise de legitimidade que as incapacitará ainda mais para atuarem como forças moderadoras das finanças internacionais. As recentes declarações de ruptura da Venezuela com essas instituições, a criação de Bancos Regionais e a crescente independência dos países em desenvolvimentos em relação aos recursos concedidos por essas instituições já apontam claramente nessa direção.
O processo atual é arcaico e não corresponde às mudanças ocorridas no mundo nos últimos 50 anos. Mesmo as regras formais não são cumpridas na escolha do Presidente do Banco Mundial, na medida em que o “acordo de cavalheiros” entre Europa e EUA esvazia o papel do próprio Conselho Executivo do Banco, composto de representantes dos acionistas, ou seja, os países membros, no processo de seleção.
A renúncia de Wolfowitz deveria ser aproveitada para uma discussão mais ampla sobre os mecanismos de governança e transparência do Banco Mundial, respondendo a desafios em pelo menos três frentes cruciais. Em primeiro lugar, resgatar o papel ativo Conselho Executivo do Banco no processo de escolha. O atual pacto entre Europa e EUA esvazia o poder do Conselho sobre o Presidente, o qual responde prioritariamente aos interesses hegemônicos dos EUA. Isso se tornou insofismável durante a breve gestão de Wolfowitz. Em segundo lugar, a atual composição do Conselho Executivo e o poder de voto de cada país precisam ser revistos de maneira a aumentar a influência dos chamados “borrowing countries”, ou seja, daqueles que recebem os empréstimos. A natureza de um Banco Multilateral e o empenho de recursos públicos na sua manutenção requer um modelo de gestão que não seja simplesmente o reflexo do poder de investimento de cada país. Esse é um debate que governos e organizações da sociedade civil vêm travando faz tempo e são inúmeras as propostas colocadas à mesa nessa direção. Finalmente, é preciso maior transparência dos processos decisórios no interior do Banco. As deliberações do Conselho Executivo e o voto dos países membros devem ser devidamente publicizados para que sejam objeto de fiscalização pública. O Brasil, como um dos países membro do Conselho Executivo, não deveria se omitir nessa discussão.
* Membro do Colegiado de Gestão do Inesc e da Secretaria Executiva da Rede Brasil Sobre Instituições Financeiras Multilaterais