Publicado no Correio Braziliense.
Esconder o rosto como forma de proteção faz parte da rotina dos catadores do Lixão da Estrutural, um dos maiores ainda em atividade da América Latina. Deixam apenas os olhos de fora. No entanto, com um celular nas mãos, eles se expressam e se revelam, sem medo, por meio da fotografia. Selfies, retratos de amigos, a hora do intervalo para um lanche, as máquinas que despejam o lixo, os entulhos, os begues — sacos usados para carregar material reciclável —, tudo acompanhado de um olhar sempre cheio de expressão. “O Lixão está acabando. Quero guardar uma lembrança. Gosto muito de lá”, relata o catador Francisco Manso, 50 anos. “Quero mostrar meu trabalho para os meus netos, bisnetos e mostrar para o povo que é um trabalho digno”, complementa Valdineide dos Santos Ferreira, 61, a Baiana da Estrutural.
Munidos desse objetivo, de memória e de registro, os catadores do Aterro Controlado do Jóquei transformaram o dia a dia do lixão em obra de arte. No começo, as fotografias eram tiradas sem pretensão, apenas imagens para o arquivo pessoal. Contudo, dentro do projeto Pró-Catador, elas ganharam outros contornos e desvendaram os rostos dos trabalhadores, assim como a realidade do Lixão, e se transformaram na exposição Eu Catador — O olhar dos catadores sobre o cotidiano do trabalho. “Aqui, quis mostrar a poeira. O caminhão despeja água para conservar a rua, mas é para eles passarem, e não porque se preocupam com a gente”, reclama Francisco, ao mostrar uma de suas fotos. “Aqui, são os entulhos de papelão”, continua.
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Veja algumas das fotos da exposição:
Para cada registro exposto na Casa da Luz Vermelha, eles querem esclarecer os detalhes. Da lida com as máquinas que quebram até os amigos que fizeram ao longo dos anos de trabalho. “Essa moça aqui faz parte do que a gente chama de nova geração. Pessoas que trabalham há menos de 10 anos no Lixão”, conta Francisco. Diante das fotografias que os próprios catadores fizeram, prevalecem o orgulho e a satisfação. “Tenho mais fotos e quero fazer outras. Olha aqui”, diz a Baiana pegando o celular para mostrar mais imagens. Ao circularem pela galeria, param diante dos registros e fazem uma selfie para depois mandar aos familiares. De pés descalços e bem à vontade, Baiana domina o espaço como se fosse sua casa. Vaidosa, ela se preocupa com as minúcias do que está exposto. “Olha como meu cabelo ficou nesta foto”, comenta. “Tenho ciúmes das imagens”, acrescenta.
Talvez Baiana seja uma das catadoras mais antigas do Lixão. Segundo ela, “eu que fiz aquilo tudo há muito tempo”. Começou a fotografar para guardar registros para os meninos passarem de geração em geração. O objetivo era revelar aos netos e bisnetos que a avó trabalhava no lixo e que foi dali que ela conquistou tudo o que tem. Mas a fala também guarda uma indignação. “Tenho raiva desse povo de fora. É bom para mostrar que não somos coitados e temos um trabalho digno”, declara. De acordo com a trabalhadora, quando vai ao hospital, tem sempre que enfrentar os olhares indiferentes. “Falam da gente como se fôssemos muito sujos”, lembra.
Simpática e alegre, Baiana não se deixa levar pela frieza. Esbanja um sorriso sincero que cativa a todos. Dos anos de trabalho no Lixão, ela guarda como principais conquistas as amizades, o respeito e a confiança. “Ali, a gente se ajuda”, conta. Num barraco simples da Estrutural, ela mora com os dois filhos, já criados e crescidos. “Prefiro tirar dinheiro do lixo do que pedir para eles. O dinheiro deles é para a faculdade”, assegura.
História
Francisco também integra a geração mais antiga do aterro. Vai fazer 25 anos que trabalha como catador. Ele chegou na Estrutural quando ali era só Cerrado. Antes, foi jardineiro durante nove meses. Mesmo assim, já criava uma relação com o futuro local de trabalho. “Ia lá andar e ficar observando. Parecia que estava desenhando meu caminho”, relembra. Francisco foi mandado embora da empresa de jardinagem e nunca mais saiu da Estrutural. “Eu era muito humilhado nas empresas. Lá (no Lixão) a gente faz a nossa tarefa. Tomamos conta de tudo”, conta. Na Igreja que frequenta, chegou a enfrentar preconceitos. “As pessoas falavam que ali não era lugar de trabalhar, que tinha gente ruim. Mas gente boa e ruim tem em todo lugar. Só vai depender de você”, conclui.
O amor pelo trabalho está no olhar e na fala de Francisco. “Vou ficar até o fim e ver no que vai dar”, diz. Na exposição, ele mostra cada foto que fez com apreço e conta as histórias por trás dos registros. “Quando olho essas fotos, vejo as pessoas trabalhando para sobreviver, os amigos e as recordações que tenho de lá”, destaca. O clique preferido é a sequência que mostra uma carreta quebrada. “Fico igual a menino ao lado das máquinas”, comenta, aos risos.