Por Leila Saraiva, assessora política do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc).
No último dia 16, o Supremo Tribunal Federal (STF) discutiu duas ações que contestavam a demarcação de terras indígenas no país, com pedido de indenização por parte do estado do Mato Grosso pela demarcação do Parque do Xingu e das terras Pareci e Utiariti (povo Pareci) e Nambikwara, Salumã e Tirecatinga (do povo Nambikwara). A decisão foi unânime: 8 votos a 0 pela improcedência das ações.
O resultado foi celebrado pelos indígenas e por todos nós que apoiamos a luta deles e estivemos mobilizados para acompanhar a votação e pressionar por uma decisão favorável. Os votos dos juízes do STF mostraram o inquestionável caráter tradicional da ocupação das terras no Mato Grosso. Além de não obter as indenizações, o Estado foi também condenado a arcar com os R$ 100 mil de despesas decorrentes dos custos dos processos.
O veredito sem dúvida nos deixa respirar um pouco mais aliviadas, sobretudo em tempos de tantos retrocessos, nos quais constantemente os julgamentos da Suprema Corte parecem nos empurrar para lugares cada vez mais sombrios.
Havia uma terceira ação a ser votada no STF nesse mesmo dia, a ACO 496 da Fundação Nacional do Índio (Funai) contra o Estado do Rio Grande do Sul, exigindo a nulidade de títulos que atingem e ameaçam a terra indígena Ventarra, do povo Kaingang. E era justamente essa votação que trazia maior apreensão para todos os que lutam pelos direitos dos indígenas, por se tratar de uma demarcação de terra posterior a 1988 – ano da promulgação de nossa atual Constituição Federal. Temia-se que a tese do chamado “marco temporal” defendida pelos ruralistas viesse à tona, tornando-se o novo critério para a demarcação de terras indígenas no país. A pedido da própria Funai e do estado do Rio Grande do Sul, o relator da ação, ministro Alexandre de Morais, a retirou da pauta, deixando de certa forma suspensa essa discussão crucial. Não há nova previsão de data para o julgamento dessa ação.
Marco temporal1 não vingou…
Embora de certa forma excluído da pauta da votação deste dia 16, o marco temporal não deixou de ser discutido por vários ministros – e criticado. Em geral, as intervenções no plenário foram bastante positivas para os/as indígenas. Os direitos originários indígenas sobre seus territórios foram reafirmados, tal como já define a Constituição de 1988, a começar pelo posicionamento do relator das ações julgadas, ministro Marco Aurélio.
Merecem ainda destaque as apreciações de pelos menos outros dois ministros: Luís Roberto Barroso e Ricardo Lewandowski. Barroso foi o mais veemente na oposição à tese ruralista, considerando-a um contrassenso, ressaltando a histórica e presente violência sofrida pelos indígenas nas expulsões de suas terras. Já Lewandowski, além de reafirmar a importância de convenções como a 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) para questionar a tese do marco temporal, também apresentou um contraponto à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Funai, reafirmando a validade e seriedade dos laudos antropológicos, constantemente atacados pelos ruralistas.
Em sentido oposto, o ministro Gilmar Mendes se destacou pelo caráter racista de sua argumentação. Ainda que também tenha votado a favor da improcedência da indenização ao estado do Mato Grosso, destilou em sua intervenção uma série de absurdos anti-indígenas, em que ecoam todo o racismo institucional historicamente sofrido pelos povos originários em nosso país. Entre os comentários inaceitáveis do ministro está a insinuação de que a identificação étnica de diversas populações indígenas não se dá por pertencimento, mas por uma espécie de “sociopatia” (SIC), que culminou na infame pergunta: “o que é mais conveniente, ser sem-terra ou ser índio?”.
…mas não caiu.
Embora a tese do marco temporal não tenha se consolidado no julgamento realizado esta semana no STF, tendo sido até mesmo combatida por alguns ministros, a bandeira ruralista está longe de ter sido derrotada. Vale lembrar do parecer recentemente assinado pelo presidente Michel Temer, que orienta toda administração federal a exigir, para dar prosseguimento aos processos de demarcação de terras indígenas, que a área reivindicada estivesse ocupada pelos indígenas na data da promulgação da Constituição. Ou seja, segundo esse parecer, o marco temporal já está em vigor, podendo paralisar 748 processos de demarcação atualmente em curso, segundo estimativa da Advocacia Geral da União (AGU).
Foi, aliás, a própria representante da AGU que fez questão de não nos deixar esquecer do referido parecer, em sua intervenção no julgamento realizado no STF. A advogada Greice Mendonça usou parte de seu pronunciamento para defender o parecer assinado no dia 19 de Julho de 2017, segundo ela, “tomando a liberdade de fazer esse registro, à luz de certas incompreensões que volta e meia são noticiadas”. A explícita e despropositada defesa do parecer, que na prática institui o marco temporal, afirma que tal medida estaria em absoluta consonância com a jurisprudência da Suprema Corte bem como com as ideias do “legislador constituinte originário”. Ainda segundo a advogada da AGU, o objetivo do parecer é fazer a política de demarcações ter “livre fluxo”, viabilizando-a.
Sabemos, no entanto, que trata-se exatamente do oposto. O parecer assinado por Temer anda de mãos dadas com os projetos do agronegócio, tendo sido resultado de uma articulação entre a bancada ruralista, a própria Greice Mendonça da AGU e a Casa Civil. Tal articulação, aliás, sequer acontece em segredo: dias antes do anúncio da assinatura da portaria por Temer, o deputado Federal Luiz Carlos Heinze, membro da Frente Parlamentar da Agropecuária, divulgou um vídeo anunciando que o “parecer vinculante” estava por vir.
Assim, e como também afirmou a própria advogada da AGU, enquanto o STF não discutir (e derrubar) o marco temporal, as demarcações indígenas continuam sob o julgo desta portaria e, consequentemente, encontram-se ainda mais ameaçadas. Se é verdade que podemos celebrar o julgamento do dia 16 de agosto como uma vitória, a resistência a essa e a outras medidas inimigas dos povos indígenas não pode se desarticular.
*Assessora Política do Inesc
1 A tese afirma que a ocupação das terras só pode ser considerada tradicional caso haja presença indígena comprovada na data da promulgação da Constituição, ou seja, em 5 de Outubro de 1988. Como artimanha ruralista, o marco temporal ignora as expulsões sofridas e constantes, assim como as diversas tentativas dos povos indígenas de retornarem a seus territórios que foram e são impedidas com violência por latifundiários e pelo próprio Estado. Para saber melhor as implicações do marco temporal, ver: https://inesc.org.br/noticias/noticias-gerais/2017/agosto/a-memoria-da-terra-o-que-o-marco-temporal-nao-pode-apagar
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