É impossível não traçar paralelos diante da surpreendente eleição de Jair Bolsonaro para a presidência do Brasil em novembro de 2018 e a eleição de Donald Trump no final de 2016 nos Estados Unidos. Tanto que a imprensa internacional passou a chamar o então candidato Bolsonaro de Brazilian Trump para facilmente traduzir a seus leitores e audiência o que ele significava. Afinal, eram os dois participantes de processos eleitorais democráticos e que se apresentavam orgulhosamente antidemocráticos com discursos populistas antidireitos.
Ambos foram eleitos ancorados em uma agenda de retrocessos em direitos, agudização das medidas de austeridade e promessas de avanço na agenda neoliberal, assessorados fortemente por familiares. Além disso, também se identificam e se unem pela própria aliança entre os dois países, buscada em nome dos interesses dos grupos que circundam os dois presidentes.
Em um momento de convergência das crises econômica e climática, de dificuldade dos sistemas internacionais de proteção de direitos em fazer com que seu papel seja reconhecido e garantido, ambos utilizaram a insatisfação para vender uma agenda de mais austeridade e mais conservadorismo como resposta à população. Sem muitas propostas concretas, mas com um discurso destrutivo cuidadosamente construído, ambos venderam soluções simples para um momento de enorme complexidade. Deixaram analistas e ativistas surpreendidos.
Acreditava-se, tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil, que haveria um despertar e que algo aconteceria para impedir a eleição de lideranças professando discursos de ódio, incitando animosidade e violência e ameaçando a institucionalidade. Os índices de rejeição eram altíssimos e, mesmo assim, não o suficiente para impedir que chegassem ao cargo.
Contudo, o choque de suas eleições não são casos isolados. Vemos processos semelhantes sendo postos em marcha na Hungria e nas Filipinas, em eleições locais pela Europa, em que a agenda de desmanche de direitos e defesa de valores conservadores estão surpreendendo ativistas e analistas que confiavam que o patamar de institucionalidade que alcançamos não seria desafiado a esse ponto. Nunca antes tivemos lideranças orgulhosas de não quererem fazer parte do jogo democrático, de quebrarem regras mínimas de respeito (e demonstrarem desprezo) às instituições e nos falta preparo para responder à altura.
Começamos por ter dois presidentes eleitos que não conquistaram a maioria dos votos. O sistema estadunidense de votos facultativos e de colégio eleitoral não premia a maioria numérica de votos, mas a maioria de colégios eleitorais. Trump recebeu 46.4% dos votos vaĺidos (62.984.825) contra 48.5% (65.853.516) de sua oponente Hillary Clinton, mas eles significaram 306 colégios eleitorais contra apenas 232 para Clinton. O mesmo aconteceu no Brasil, onde o voto é obrigatório: no segundo turno, 57.797.073 pessoas votaram por Bolsonaro enquanto 89.504.543 não votaram por ele.[1]
E o mesmo também ocorreu na Hungria, nas Filipinas e com o Brexit no Reino Unido. Não foi a maioria que votou pelos retrocessos, embora não tenha conseguido transformar essa oposição em ação concreta para barrar os projetos reacionários em curso em prol de proteção a direitos garantidos. Nas Filipinas, vemos que o apoio a esse novo discurso de recuperação de valores conservadores ligados à igreja e à família, de combate ao crime com mão firme, de combate à corrupção apesar de ser bastante corrompido, tem tração suficiente para durar para além do mandato de uma liderança eleita com essa plataforma e deve se estender para eleições futuras. Na Hungria já dura oito anos o governo autoritário de Viktor Orban e novamente a maioria não foi capaz de conter o avanço de sua agenda.
Cobertura da mídia tradicional
No Brasil, com a intensa atuação dos familiares de Bolsonaro nas eleições presidenciais, além dos cargos no legislativo que seus filhos lograram garantir – um filho senador, um filho deputado federal e um filho vereador no Rio de Janeiro que não foi eleito deputado federal porque desistiu da candidatura – cria-se uma dinastia e seus filhos tem se portado publicamente como representantes do presidente, inclusive em declarações sobre decisões em temas de política externa. A falta de preparo de sua família para tratar de temas delicados e com enormes consequências, como a mudança da embaixada brasileira em Israel para Jerusalém, causa espanto.
Uma das explicações para o sucesso da família Bolsonaro em sua campanha foi o uso da internet. O presidente eleito se ausentou de quase todos os debates eleitorais, participando de apenas dois antes mesmo da candidatura de Fernando Haddad ser definida[2]. Após a definição de Haddad como candidato do PT em substituição ao ex-presidente Lula, impedido de concorrer, e o atentado sofrido por Bolsonaro no dia 6 de setembro, ele não participou de debates, apenas entrevistas e teve bastante tempo dedicado a si pelos jornais, revistas e canais de televisão no Brasil durante todo o período entre sua alta hospitalar e o restante da campanha eleitoral. Ficou clara a falta de equilíbrio no tempo fornecido a cada um dos dois candidatos do segundo turno e de forma gritante, os jornais evitavam chamá-lo pelo que é: um populista de extrema direita[3] e forneceram plataforma para que o candidato pudesse expor suas ideias calamitosas com roupagem de “controversas” e “polêmicas”.
Nos Estados Unidos, a cobertura da mídia também impactou positivamente a campanha de Donald Trump. Em pesquisa realizada pelo Kennedy School’s Shorenstein Center da Universidade de Harvard, logo após o pleito, a cobertura realizada pela grande mídia no país foi considerada corrosiva, por ter trazido majoritariamente notícias negativas. De acordo com o autor do estudo, Thomas Patterson, a cobertura negativa tem e teve consequências partidárias.
“A mídia tradicional destaca o que há de errado com a política sem nos mostrar o que estaria correto. É uma versão da política que premia um certo jeito de fazer política. Quando tudo e todos são relatados como profundamente errados e cheios de falhas, não faz sentido fazer distinções, o que acaba premiando quem possui mais falhas. Civilidade e propostas sensatas não fazem mais parte das manchetes, o que dá voz àqueles que têm talento para a arte da destruição.”[4]
E completa ainda lembrando que apesar da direita dizer que a mídia é majoritariamente liberal, os ataques aos governos fazem com que a mídia reforce o discurso antigoverno e anti-política da direita.
Trump recebeu cerca de 15% mais cobertura que Clinton na campanha eleitoral de 2016, de acordo com o mesmo estudo. Não há números para quantificar a atenção extra recebida por Bolsonaro na campanha eleitoral no Brasil, mas seguramente é algo ao redor do mesmo patamar ou acima dele. Duas redes de televisão de alcance massivo cortejaram o candidato com o intento de tornarem-se a “Fox News do Brasil”. Uma delas – concessão a uma grande liderança evangélica e também dona de um portal de notícias – criou regras internas que impediam críticas a Bolsonaro e fomentavam notícias negativas contra Haddad, levando uma editora de notícias sênior a se demitir. Ficou claro durante a campanha que a mídia tradicional brasileira não só estava participando das eleições, como estava apostando em um candidato ser eleito e decidiram por cortejá-lo, esperando estar em suas graças em um eventual governo.
Importação da tática das fake news
A imprensa brasileira tem um terrível histórico de intervenção em processos eleitorais e dessa vez, não foi diferente. Mas ela não foi o único canal que desequilibrou a disputa eleitoral. Assim como nos EUA, a capilaridade das redes sociais foi essencial para reduzir a altíssima rejeição dos eleitores ao candidato e transmitir notícias falsas – as famosas fake news. O uso dessa tática de desinformação foi tão bem sucedido nos EUA que foi importado para outros processos eleitorais e sempre com as digitais de Steve Bannon, o estrategista das direitas e ex-coordenador de campanha de Trump.
Bannon soube se aproveitar do fato de que à época 65% dos adultos[5] nos Estados Unidos utilizava redes sociais (hoje esse número é estimado em 71%[6]) e aliou-se à infame empresa Cambridge Analytica para criar uma estratégia que logrou garantir a Casa Branca à Donald Trump e seu grupo a partir do uso de Google, Snapchat, Twitter, Facebook e Youtube. A principal ferramenta no entanto foi a utilização do Facebook, que forneceu (de forma irregular) dados de milhares de usuários que permitiram direcionar mensagens de campanha. A falta de controle do Facebook, aliada à estratégia da Cambridge Analytica, foi extensamente documentada em reportagens que revelaram a relação entre a manipulação das redes sociais e a eleição de Trump.
A empresa foi criada a partir de experimentos de um professor de psicologia na Universidade de Cambridge, quando a universidade se recusou a permitir que seus experimentos fossem utilizados para fins comerciais. Primeiro surge a Global Science Research em 2014; mas a coleta de dados feita por Aleksandr Kogan é feita através de uma empresa chamada Strategic Communication Laboratories (SCL) que possui uma divisão eleitoral que promete utilizar mensagens direcionadas a partir de dados para entregar sucesso eleitoral. Seu braço nos EUA é a Cambridge Analytica que recebeu enormes investimentos de investidor bilionário Robert Mercer, apoiador de Trump e aconselhado por Steve Bannon. Além dos investimentos no desenvolvimento da empresa, Mercer também colocou à disposição da campanha de Trump enormes somas para que a empresa fosse contratada. Steve Bannon era também funcionário da CA e meses após garantir que seus laços com a empresa tinham sido cortados, cheque da campanha de Trump por serviços da CA foram entregues em um endereço de Bannon em Los Angeles.
O fato é que estima-se que cerca de 100 a 185 mil pessoas tenham preenchidos questionários e disponibilizado seus perfis para coleta de dados sem saber que isso levaria a uma rede que alcançou cerca de 30 milhões de perfis do Facebook e possibilitou que usuários fossem mapeados sem seu consentimento. Cada like e cada post foi analisado por operadores buscando meios de influenciar as eleições nos EUA. No Reino Unido, a CA está sendo investigada pelo Parlamento pela sua atuação possivelmente ilegal na campanha pelo Brexit; de acordo com declarações do ex-diretor da empresa ao parlamento britânico em março desse ano, “pode-se dizer razoavelmente que o resultado do referendo teria sido diferente.”
E enquanto o impacto da CA em si nas eleições estadunidenses é difícil de medir, o uso do próprio Facebook pela campanha, não. A campanha de Trump nunca escondeu o seu uso estratégico, utilizando 80 % do seu orçamento de campanha para mídias digitais no Facebook:
“Joel Pollak, editor do Breitbart, escreveu em suas memórias da campanha sobre os ‘Exércitos de Amigos de Trump no Facebook’ ultrapassando os portões da mídia tradicional. Roger Stone, um colaborador antigo de Trump, escreveu em suas memórias da campanha sobre o foco geográfico em cidades para espalhar a falsa notícia de que Bill Clinton havia tido um filho fora do casamento, e selecionando quem receberia baseado em preferências em música, grupo etário, cultura negra e outros interesses urbanos”.
Além disso, há toda a questão levantada pela investigação do promotor especial Robert Muller sobre a possível interferência russa no processo eleitoral, pela compra de anúncios no Facebook e por possivelmente terem hackeado o Partido Democrata. Mas no fim do dia, Facebook auxiliou a campanha pela ferramenta que é. No Brasil,
“As eleições de 2018 representaram uma mudança de paradigma sobre campanha política vigente no país desde 1989, provocada pelo efeito da Operação Lava-Jato no sistema político. Aceitando o forte processo de deslegitimação que a Lava Jato lhe impôs, o sistema político realizou fortes modificações na estrutura das campanhas políticas. Entre estas, vale a pena destacar a redução do período de campanha, do tempo gratuito na TV e do bloco de propaganda gratuita no horário nobre. Todas estas alterações podem ser entendidas dentro de uma lógica de redução dos elementos de debate públicos nas campanhas políticas. Acrescente-se a estes elementos a diminuição da campanha de rua e dos comícios. Com menos atividades públicas, abriu-se, pela primeira vez desde 1989, campo para a campanha exclusivamente privada, como a de Bolsonaro, centrada quase exclusivamente nas redes sociais – ele tinha muito pouco espaço no horário eleitoral gratuito – e no interior das redes, naqueles circuitos mais privados possíveis como é o caso das listas de WhatsApp.”
Como nos EUA, a estratégia de comunicação da campanha da direita investiu pesadamente no uso das redes sociais. Segundo dados, o Brasil tem 62% da população utilizando redes sociais – Youtube, Facebook e Whatsapp em ordem de usuários (60, 59 e 56% da população utiliza essas redes) e possui o segundo maior tempo diário dedicado a redes sociais no mundo – 3h e 39 minutos, apenas atrás da Filipinas.
Além disso, os brasileiros e brasileiras têm um grau muito baixo de confiança nas instituições[7]. A pesquisa realizada pelo Instituto da Democracia em março de 2018 revela que a confiança nos partidos políticos está em seu nível mais baixo desde 2006, e que apenas 19% dos entrevistados estão satisfeitos com a democracia no Brasil e mais de 80% estão insatisfeitos ou muito insatisfeitos. Isso já era algo apontado há muitos anos pela Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político, que criou propostas para democratizar o sistema político, para além do eleitoral e ampliar a qualidade da democracia no país. Com o envolvimento de partidos políticos em escândalos de corrupção e com a política aberta de barganhas no Congresso e nos corredores do palácio presidencial, tem sido difícil para a população crer que essas agremiações vão proteger o interesse público. Sem mencionar o papel que tiveram em extensivas negociações para a candidatura de Bolsonaro e apoio à sua agenda no primeiro e/ou segundo turno, negociando princípios para se tornarem parte da base do próximo governo.
Mas esse cenário de uso intenso de redes sociais e pouca confiança em instituições, torna-se solo propício para que discursos cuidadosamente construídos como antiestablishment e sinceros, e notícias falsas, sejam espalhadas de forma capilar. As mensagens são criadas sob medida para os perfis, definidos pelas redes sociais a partir de likes e compartilhamentos, sem contar o reforço que essas mensagens recebem de bots e de perfis falsos. Vimos isso claramente durante a campanha de Bolsonaro quando menções a apelidos dados ao candidato nas redes sociais geraram reações desmedidas em notícias sem nenhum conteúdo eleitoral. O melhor exemplo é um tuíte de uma notícia da Folha de São Paulo sobre um clássico dos botecos, o bolovo, que foi bombardeado por comentários em apoio ao candidato.
O que estudiosos têm dito com cada vez mais veemência é que a influência das redes sociais está desequilibrando processos democráticos e comportamentos através da manipulação. Recentemente, o autor de “Likewar: the Weaponization of Social Media”, P.W. Singer, afirmou categoricamente que “a maioria das pessoas não têm a consciência de que é constantemente manipulada por campanhas políticas e de marketing na internet —muito pouco do que ocorre hoje nas redes, seja um vídeo viral, uma hashtag ou foto, é espontâneo.”
Voltando ao fato de que no Brasil a confiança nas instituições é extremamente baixo e que temos um uso intenso de redes sociais, a campanha eleitoral de desenrolou muito mais em canais privados do que em debates públicos. E uma particularidade do Brasil são a prevalência de grupos de familiares e amigos no Whatsapp, que se entende se olhamos para o fato de que nas pesquisas sobre confiança nas instituições: família, amigos e igreja contam com alto grau. Vimos essa ferramenta ser utilizada de forma massiva para espalhar conteúdos falsos, principalmente a partir de setembro, e como essas mensagens provém de amigos e familiares, o nível de confiança nelas é maior do que se chegassem por outras vias.
Mesmo com os desmentidos sobre as notícias falsas relacionadas a Haddad, elas continuaram circulando. Parte disso foi a confiança das pessoas nas mensagens recebidas e repassadas e parte foi a manipulação ilegal da ferramenta em um esquema desvelado por jornalistas[8].
Como paralelo entre os dois processos eleitorais, podemos afirmar que foram candidatos eleitos sem a maioria dos votos, com campanhas que colocam o foco nas redes sociais, que tiveram apoio da mídia tradicional – explícito como no Brasil ou colateral como nos Estados Unidos. Também foram processos que se aproveitaram da liberdade de expressão para manipular informações, criaram mensagens emotivas e alimentaram o medo de seus eleitores através de canais privados, se aliando a agendas socialmente conservadoras para arregimentar apoio. Em ambos os casos, as igrejas neopentecostais tiveram um papel fundamental em apoiar e direcionar as mensagens das campanhas e dos governos. Isso fez com que ambos saíssem de seus nichos, de eleitorados específicos, e virassem figuras apoiadas por uma parcela expressiva, mesmo com suas falas machistas, racistas e retrógradas.
No Brasil, o processo eleitoral ainda teve como componentes importantes: a ingerência da mão pesada do poder judiciário com as ações politicamente motivadas da Operação Lava-Jato e com as decisões acovardadas do Supremo; e dos interesses econômicos das empresas privadas (desde Facebook ao grande agronegócio), das igrejas e de seus aliados, como a bancada BBB e outros que desconhecemos. Sabemos de seu diálogo com Steve Bannon e de sua desmedida admiração pelos Estados Unidos, mas não temos elementos suficientes para analisar que interesses estão por trás da candidatura de uma figura política que tem 30 anos de carreira sem destaque algum.
Na esquerda faltou emoção
Mas e a esquerda nos processos eleitorais desse tipo, como se comportou? Uma reflexão de uma ativista dos EUA reforça a importância de compreender as narrativas em jogo:
“Quando a esquerda finalmente se deu conta de quão ressonante e popular Trump era, respondeu da única forma que uma instituição que se orgulha de ser correta e superior poderia fazer: fazendo checagem de dados das afirmações e ações dele. Ao invés de se engajar com as emoções reais que atraíram as pessoas a ele, ridicularizaram seus apoiadores e ignoraram suas realidades emocionais. Enquanto Trump falou de sentimentos e valores e pintou o quadro de um mundo que genuinamente ressoava com as pessoas e apaziguava seus medos. Não se pode checar dados de um sentimento. Esperamos que isso sirva de lição”. E complementa: “a esquerda gastou muito pouco tempo no que realmente motiva politicamente as pessoas: valores, sentimentos e comunidade”.
A campanha da direita, nos dois países, foi muito mais emotiva do as campanhas de seus adversários. Trump e Bolsonaro certamente encamparam a imagem de homens comuns, indignados com as crises em seus países – econômica e social nos EUA, também política no Brasil e de valores comportamentais. Suas respostas para problemas complexos foram simplistas e no caso de Bolsonaro, estreitamente ligadas a valores conservadores; suas explicações passam por falta de Deus, falta de autoridade na família, e falta de patriotismo como causa das mazelas da vida cotidiana dos brasileiros e brasileiras. Mas ele não oferece solução, apenas aponta o problema, como Trump.
À oposição a eles e demais representantes da política tradicional faltou oferecer explicações que tivessem ressonância com as classes médias e classes populares. O problema é que discutir isso, pressuporia também desvelar a relação nada republicana entre partidos políticos e representantes de grandes lobbies e interesses econômicos. As portas giratórias entre os que ocupam altos postos governamentais de alto interesse público e altos cargos corporativos, as campanhas eleitorais financiadas com recursos privados, a captura corporativa de espaços de debate e decisão de interesse público em prol de lucro de poucos grupos econômicos, o papel dos bancos, da mídia e a relação deles com a vida pública. Mostrar que a corrupção é certamente um problema grave, mas não é ela que priva a maioria da população de viver em condições melhores com seus direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais atendidos.
“Nos Estados Unidos de Donald Trump e no Brasil de Bolsonaro, o capitalismo financeiro quebra e destrói relações sociais e vida associativa, provocando desorientação e isolamento do indivíduo. E, novamente, é dito a ele que o fracasso é culpa dele – e não de um sistema injusto. É uma estrutura fascista, sim, de novo tipo. Que está se internacionalizando e que vive do mesmo tipo de desrespeito e desumanização que fazia o fascismo anterior. Que quer dizer que o outro, por pensar diferente, merece morrer. E a classe média, que sempre odiou o pobre, agora está se sentindo mais à vontade para expressar, explicitar esse ódio. No fim, o ódio é exatamente o que o fascismo produz.”[9]
Ideologia de gênero e globalismo
Para a direita criar respostas às crises que vivemos, nos EUA, no Brasil e no restante do mundo também, cada vez mais comum é levantarem dois temas: ideologia de gênero e globalismo como as origens dos males que sofrem nossas sociedades. A ideologia de gênero não é nova e é um conceito vazio e maleável às necessidades do discurso conjugando de forma esdrúxula feminismo, teorias LGBTI e comunismo; Sonia Correa faz um histórico importante da construção de suas origens desde meados da década de 90 e seu uso nas esferas internacionais e na política internacional sobre questões de gênero. Ela recupera em seus escritos como a ideia foi formatada em negociações internacionais e nas altas esferas teológicas, em princípio na Igreja Católica, mas que hoje conta com a adesão de outras forças religiosas e também com apoio de um amplo espectro da sociedade: de biomédicos, psicanalistas, extremistas de direita, e até políticos da esquerda.
“Acima de tudo, os proponentes da agenda anti-gênero mobilizam lógicas e imaginários simplistas e constituem inimigos voláteis – aqui as feministas, lá os gays, acolá os artistas, por lá os acadêmicos, em algum outro lugar os corpos trans – alimentando pânico moral que distrai as sociedades de temas estruturais que deveriam estar sendo debatidos, como as crescentes desigualdades de gênero, classe, raça e étnicas.”
O mesmo acontece com o globalismo, sendo utilizado como conceito para defender valores cristãos, apresentado como a globalização econômica capitaneada pelo marxismo cultural, segundo definição do próximo Ministro de Relações Exteriores do Brasil, Ernesto Araújo[10]. O termo antigo, datado da década de 40 foi recuperado por Steve Bannon e seus discípulos, mas foi inicialmente identificado com o projeto expansionista nazista, depois utilizado para nomear atores internos nos EUA que poderiam colocar em risco a soberania nacional dos EUA ao apoiarem políticas internacionais, como em temas migratórios no pós-guerra. A semente do termo vem carregada de preconceito e se coloca como oposição aos projetos de interesse nacional – nos EUA, o “America First” e no Brasil, “Brasil acima de todos, Deus acima de tudo”.
O fato dos EUA capitanearem uma política como America First, muitas vezes imoral e egocêntrica, como no caso da separação de famílias, abre caminho para que outras lideranças deem passos antes inimagináveis diante do sistema internacional e diante dos próprios Estados Unidos. America First nao significa necessariamente apoio a outras lideranças, significa que o país não expressará sua desaprovação diante de políticas autoritárias. Enquanto não houver oposição direta à Trump, o que acontece em cada país, não o interessa – exceto nos países alvo dos discursos (de ataque ou defesa) da direita: Irã, Israel e Venezuela.
Para as sociedades civis dos EUA e do Brasil, e de outros países governados por líderes autoritários ou se encaminhando para que sejam, essas são más notícias. A militância desenvolvida há décadas, mas com maior profissionalização desde a década de 90 já está sofrendo ataques no que chamamos de redução ou encolhimento dos espaços democráticos e que tendem a ser intensificados. As organizações e movimentos sociais que lutam por direitos estão sendo nomeados os inimigos do progresso e o discurso de ódio contra ativistas têm crescido de forma perigosa. Vimos durante a campanha eleitoral no Brasil os ataques a jornalistas e ativistas crescerem de forma assustadora; vimos também que antes mesmo que o novo presidente assuma, há movimentação intensa no congresso para aprovar legislações como o ajuste da lei antiterrorismo para criar mecanismos de reprimir e encarcerar o dissenso.
Nos EUA, resistência no Congresso e legislaturas locais
Nos Estados Unidos, a eleição de Donald Trump gerou um movimento extremamente interessante de mulheres que organizou células locais e catalisou inúmeras candidaturas ao Congresso e legislaturas locais, alcançando um recorde de mulheres eleitas – 107 das 435 cadeiras, além do importantíssimo e oportuno controle do Congresso pelos democratas. O importante disso é que a partir de 2020 o congresso passará por um processo de redefinição dos distritos eleitorais[11]. Atualmente, uma estratégia posta em prática pelo conselheiro do ex-presidente George W. Bush, Karl Rove, chamada RedMap – Redistricting Majority Project – continua rendendo frutos para os republicanos nas eleições, mesmo recebendo menos votos, conseguem garantir o controle de distritos disputados.
A definição do distrito pode ser um atributo dos legisladores estaduais que recorrem a softwares e dados dos eleitores para definir quais são os limites dos 435 distritos congressionais do país, cada um representando aproximadamente 711.000 pessoas. Gerrymandering é o nome da prática de desenhar o distrito de acordo com interesses partidários para garantir o controle de um assento. Os republicanos, liderados por Rove, colocaram essa estratégia em prática depois de terem adquirido o controle do Congresso em 2010 e pressionado estados nos quais a legislatura estava encarregada do processo de redistritamento, para assumir o controle do processo e redesenhar as linhas distritais. Os democratas não esperavam por isso e nada como isso havia sido tentado antes, não nesta escala.
Normalmente, o gerrymandering usa duas técnicas: packing e cracking no inglês, algo como concentrar e pulverizar. No chamado packing, o partido encarregado do redistritamento tenta concentrar os eleitores do partido rival em poucos distritos para minimizar suas oportunidades de garantir assentos. No cracking, blocos de eleitores da oposição são distribuídos em muitos distritos variados para alcançar o mesmo objetivo, reduzir as chances do partido opositor. “Em preparo para o próximo censo, os democratas criaram um plano semelhante ao do RedMap. Eles o chamam de Advantage 2020, e dizem que esperam financiá-lo no valor de setenta milhões de dólares. Os republicanos, por sua vez, anunciaram o RedMap 2020. Seu objetivo de gastos? Cento e vinte e cinco milhões de dólares”.
Mas, além dos enormes investimentos que estão sendo feitos no futuro desenho dos distritos, pela primeira vez desde 1950, o Censo dos EUA planeja perguntar a todos que moram nos Estados Unidos se são cidadãos quando realizarem seu próximo censo decenal em 2020. Já imaginando que alguns imigrantes podem evitar responder à pergunta, o governo Trump quer tentar usar outros registros do governo para preencher as informações necessárias. E esse processo afetará fortemente o processo de redistritamento, os próximos 10 anos de política americana e como o orçamento é alocado aos estados – estimados US $ 800 bilhões por ano em fundos federais.
No Brasil, debate sobre reforma eleitoral e representação
No Brasil, o debate sobre reforma eleitoral e mudanças no modelo de representação deve crescer em 2019. Isso porque em outubro de 2017, o Congresso aprovou novas regras colaterais, mas não conseguiu apoio suficiente para avançar na discussão para adotar um novo modelo de votação. Houve bastante pressão de figuras conhecidas e de partidos de situação para que o voto distrital misto fosse adotado. Nele, diferente do que acontece hoje, com voto proporcional em lista aberta, os eleitores/as teriam candidatos/as apoiados pelos partidos em cada um dos distritos e o restante deles em listas pré-ordenadas.
Os defensores desse modelo alegam que ele pode facilitar maior controle social sobre a atuação dos parlamentares e aproximar eleitores de seus representantes. Entretanto, ele beneficiaria as figuras conhecidas e grandes partidos em detrimento da oportunidade de novos candidatos/as e partidos menores concorrerem de forma equilibrada. O MDB, partido que esteve na base de apoio de todos os governos desde 1989, não importando o espectro político de cada um deles, seria o maior beneficiado por esse modelo, o que mostra que seriam necessários muitos ajustes para que pudesse de fato aproximar a sistema político da população. Além do que, causa preocupação pensar que as atuais lideranças desse partido estariam a cargo de definir os distritos eleitores no Brasil, abusando do gerrymandering.
A reação das resistências
Há muito com o que se preocupar, mas também há muitos passos sendo tomados na direção correta. Temos visto que os movimentos sociais e ativistas têm conseguido cada vez mais fazer com que suas mensagens de solidariedade e justiça cheguem a públicos que não necessariamente os escutaria. Iara Pietricovsky disse em uma troca de mensagens, “eles trarão de volta a ideia do humanismo e da solidariedade, ou seja, são re-humanizantes (para nossas sociedades).”[12]
A reação da resistência tem conseguido conjugar de forma muito mais eficaz o que ocorre nas redes sociais e nas ruas e ocupar espaços como a direita fez com as campanhas eleitorais. A movimentação em torno da campanha de Haddad no Brasil, nas últimas semanas de outubro, deu uma amostra do que será possível fazer – tanto nas ruas, como nas redes através dos enormes grupos de mulheres formados e que estão criando núcleos locais de debate e apoio a ações, no Brasil e fora.
Há muito sendo feito. O fim de períodos igualmente sombrios sempre se deu por ação popular, por grupos e movimentos que não se intimidaram e criaram estratégias criativas e poderosas para quebrar regimes que não tinham o interesse público como princípio norteador. Não será diferente agora; há muito sendo feito nos Estados Unidos, no Brasil e em outras partes, para que grupos se articulem, ajustem mensagens e possam proteger nossas sociedades de maiores estragos e nos devolver a uma lógica de defender e garantir direitos conquistados para ampliá-los e universalizá-los e não mantê-los reféns de outros interesses.
*Ana Cernov é ativista de direitos humanos engajada na proteção dos espaços democráticos e em iniciativas para a construção de movimentos e defesa de justiça e igualdade. Atualmente milita no Coletivo por um Brasil Democrático em Los Angeles. Foi assessora da Coalizão para Ação Cívica Vuka! e antes disso, liderou o programa Sul-Sul da Conectas Direitos Humanos de 2014 a 2016. Trabalhou por 15 anos com sindicatos, movimentos sociais, organizações religiosas e ecumênicas e agências de desenvolvimento no Brasil e na América Latina. Possui bacharelado em Relações Internacionais e Mestrado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Esse artigo não reflete necessariamente uma opinião institucional e traz apenas a perspectiva pessoal da autora.
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Kolbert, Elizabeth. “Drawing the Line – How redistricting turned America from blue to red”. The New Yorker, 27 de junho de 2016, disponível em: https://www.newyorker.com/magazine/2016/06/27/ratfcked-the-influence-of-redistricting, acesso em dezembro de 2018.
Sayuri, Juliana. “Entrevista: “A esquerda foi singularmente incapaz e burra nessas eleicoes”, diz Jessé Souza, The Intercept Brasil, 18 de novembro de 2018, disponivel em: https://theintercept.com/2018/11/18/jesse-souza-entrevista/, acesso em dezembro de 2018.
Schwartz, Mattathias. “Facebook failed to protect 30 million users from having their data harvested by Trump Campaign affiliate”, The Intercept, 30 de marco de 2017, disponível em: https://theintercept.com/2017/03/30/facebook-failed-to-protect-30-million-users-from-having-their-data-harvested-by-trump-campaign-affiliate/, acesso em dezembro de 2018. Em português em: https://theintercept.com/2017/03/31/o-facebook-nao-protegeu-30-milhoes-de-usuarios-de-terem-dados-acessados-por-uma-das-empresas-da-campanha-de-trump/
Youngs, Richard (editor). “The mobilization of conservative civil society”, Carnegie Endowment for International Peace, 2018.
https://carnegieeurope.eu/2018/10/04/mobilization-of-conservative-civil-society-pub-77366, acesso em dezembro de 2018.
We are Social & Hootsuite. “Global Digital Report 2018”, 9 de janeiro de 2018, disponível em: https://digitalreport.wearesocial.com, acesso em dezembro de 2018.
[1] Os dados do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) apontam que 47.039.291 votaram por Haddad e um número muito expressivo de pessoas escolheu não votar em nenhum dos dois candidatos: 42.465.252 abstenções, ou votos brancos/nulos, somando assim os 89.504.543 eleitores que não votaram por Bolsonaro nessas eleições.
[2] Durante vários meses as pesquisas de opinião foram sistematicamente lideradas pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, candidato do PT, mesmo se encontrando ele preso após um julgamento politicamente motivado, encabeçado por um juiz que passa a ser ministro da Justiça de Bolsonaro. Como a condenação de Lula ainda poderia ser revogada em segunda instância, o Comitê de Direitos Humanos da ONU instou o governo a garantir seu direito de se candidatar à presidência, chamamento também feito pela Mesa de Articulação de Associações Nacionais e Redes de ONGs da América Latina, entre muitos outros. Entretanto, em tempo recorde, o STF decidiu que o pedido da ONU estaria em conflito com a lei da Ficha Limpa e no dia 11 de setembro passado decidiu impedir a candidatura de Lula e aceitar sua substituição pela do seu candidato à vice, Fernando Haddad, ex-prefeito de São Paulo e em grande medida desconhecido do eleitorado nacional.
[3] O Jornal Nexo ouviu pesquisadores e escritores internacionais para explicar o lugar que o deputado e capitão reformado ocupa no espectro ideológico mundial e o posicionar na extrema direita. Veja em: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2018/10/17/O-que-%C3%A9-extrema-direita.-E-por-que-ela-se-aplica-a-Bolsonaro
[4]Tradução da autora de trecho de entrevista ao autor do estudo, trazida neste artigo: https://www.politico.com/blogs/on-media/2016/12/report-general-election-coverage-overwhelmingly-negative-in-tone-232307
[5] Dados de 2015 de pesquisa realizada pela Pew Research Center http://www.pewinternet.org/2015/10/08/social-networking-usage-2005-2015/
[6] Dados da pesquisa Global Digital Report 2018, realizada pelas agências We Are Social e Hootsuite e divulgada em janeiro de 2018. https://digitalreport.wearesocial.com
[7] Dados da pesquisa “A Cara da Democracia no Brasil”, realizada em março de 2018, que tem como objetivo produzir um retrato atualizado de como o brasileiro enxerga a democracia no país e como se apropria de informação política. Veja em: https://www.institutodademocracia.org/a-cara-da-democracia
[8]https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/10/entenda-as-irregularidades-envolvendo-uso-do-whatsapp-na-eleicao.shtml
[9] https://theintercept.com/2018/11/18/jesse-souza-entrevista/
[10]https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2018/11/contra-o-globalismo-e-o-pt-conheca-frases-do-novo-chanceler-brasileiro.shtml
[11]https://www1.folha.uol.com.br/colunas/patriciacamposmello/2018/11/precisamos-falar-de-gerrymandering-e-hegemonia-republicana-no-legislativo.shtml
[12] Troca de emails entre a autora e a ativista Iara Pietricovsky do INESC em 8 de dezembro de 2018.