Leitura da realidade social das Organizações de Desenvolvimento Solidário e da Cidadania ativa.

18/04/2013, às 11:23 | Tempo estimado de leitura: 21 min
Marilza de Melo Foucher aborda, em artigo, a leitura sovre a realidade política, social, cultural e ambiental das organizações de desenvolvimento solidário e da cidadania ativa.

Por Marilza de Melo Foucher

Quinze dias no Rio de Janeiro foram poucos para matar saudades e visitar companheiros e companheiras que continuam teimosamente apostando que outro mundo é possível. Com eles e através deles, posso continuar minha leitura sobre a realidade política, social, cultural e ambiental do Brasil.

No mais, o Rio de Janeiro continua lindo… O Rio é uma cidade “sui-generis”, uma beleza que encanta e nos questiona. Do circuito do aeroporto para a zona sul, o visitante vai vendo as inúmeras favelas nas zonas periféricas, além de outras comunidades pobres com seus barracos que desordenadamente encobrem a beleza de sua geografia. Todavia, quem mora no Borel, na Rocinha, ou em outras grandes favelas, também usufruem desta beleza de paisagem que é o Rio de Janeiro, afinal ninguém pode ser privado ao acesso da beleza! Entretanto, seus moradores foram privados de outras coisas essenciais para que um ser humano possa ter uma vida digna. A própria palavra Favela já tem sua origem na rudeza dos solos, ela é uma pequena árvore de muitos espinhos, mas que dava belos cachos de flores brancas (Cnidosculus phyllacanthus). Segundo consulta, foram nesses lugares, de difíceis acessos, que se escondiam os escravos, em seguida, as populações pobres e migrantes, estes virão ocupar os morros mais próximos do centro da cidade.

Com o tempo, a favela vai virar sinônimo de moradia precária, de miséria, drogas e violência. Durante séculos, esses suburbanos vão viver sem qualquer infra-estrutura básica. No Rio, existe o contraste forte entre o belo de sua paisagem, a arquitetura de seus belos imóveis e a precariedade dos assentamentos, a miséria que se esconde nos seus morros favelados. Segundo fontes oficiais, cerca de 20% da sua população vivem em favelas. Todavia, embora as condições de moradia sejam consideradas bem melhores hoje em dia, e a violência assim como tráfico de drogas, venha diminuindo com a presença das UPPs, assim como o tráfico de drogas, a falta de infra-estrutura básica como esgotos sanitários, esgotos pluviais, acesso à água potável, lixo, regularização fundiária, equipamentos públicos, tais como dispensários, outras estruturas hospitalares, escolas publicas de qualidades, continuam aquém dos resultados gerais da luta contra a exclusão social nesses últimos dez anos.

Favelas. Territórios de sonhos possíveis?

O fato mais importante das conquistas sociais que vai dar um pouco mais de humanização e melhores condições de vida nas favelas é que seus moradores, já há muitos anos vêm se organizando em associações, e que muitas ONGs de desenvolvimento solidário, anteriormente financiadas com o apoio da cooperação internacional, investiram em muitas iniciativas de educação popular, alfabetização, resgate e valorização da cultura negra, projetos destinados à população jovem, organização das mulheres, organização de economia solidaria, reivindicações de direitos e tantas outras ações de solidariedade e de cidadania. Estas organizações sociais não esperaram a realização de grandes eventos esportivos, sociais ou ambientais para agir em prol das populações carentes e por um desenvolvimento territorial solidário.

Para estas organizações sociais as favelas devem ser tratadas como um território que sofreu um modo de urbanização desigual e discriminatório. Todavia, nesses territórios se pode sonhar que outro mundo é possível. Nesses territórios existem identidades, diversidade cultural e muitas histórias de vida. Não existe homogeneidade nas favelas, daí a abordagem e intervenção do desenvolvimento territorial devem ser encaradas de forma diferenciada. O perfil de seus cidadãos com relação à renda, ao consumo, ao acesso aos bens produtivos não é o mesmo, assim como, as regras e práticas de sociabilidade são distintas. Daí qualquer iniciativa governamental deve ser levada de forma participativa com os atores locais, com as Organizações de Desenvolvimento Solidário e da Cidadania. Estes atores, não podem ser transformados em simples executores de políticas públicas, eles devem ser co-partícipes de um novo modo de intervir na realidade local.

Mesmo considerando o avanço de políticas de inclusão social durante os governos de Lula e Dilma, a definição de prioridades deve levar em conta as experiências e saberes acumulados dessas organizações sociais, tendo em vista, que elas já atuam há muitos anos nesses territórios. Territórios, até em tão, considerados zonas dos não direitos.

Ações e Desafios.

A articulação entre o governo e as organizações da sociedade civil permite maior vitalidade da democracia, ao mesmo tempo, responsabiliza os atores locais no fortalecimento da pratica do exercício da cidadania. Infelizmente, o termo ONG atualmente é completamente deturpado, pois a grande mídia forjou opiniões negativas destas organizações históricas, que há mais de 40 anos atuam junto aos excluídos, tanto na zona urbana como na zona rural. Ultimamente, essas organizações de desenvolvimento e de construção da cidadania que atuam visando o interesse público são confundidas com outras associações que não possuem as mesmas características e nem têm a mesma missão. Falo das OSCIPs, que foram criadas no governo de Fernando Henrique, pela lei de nº 9.790 – 23 março de 1999. Esta lei traz a possibilidade das pessoas jurídicas (grupos de pessoas ou profissionais) de direito privado sem fins lucrativos serem qualificadas, pelo Poder Público, como Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público – OSCIPs. E desta forma elas podem relacionar-se por meio de parceria com o Governo, desde que os seus objetivos sociais e as normas estatutárias atendam os requisitos da lei. Essas associações, fundações que se dizem ONGs, hoje são 300.000, muitas foram criadas por grupos políticos que se beneficiam de subvenção publica, porém abusam do poder publico utilizando estes recursos para outras finalidades que não são de interesse coletivo, inclusive, muitos de seus fundadores foram acusados de enriquecimento pessoal e outros atos de corrupção caracterizados pelo desvio e uso indevido de financiamento público. Quanto às organizações históricas que sempre praticaram o desenvolvimento solidário e abriram espaços para o exercício da cidadania ativa elas eram 380 e hoje o número baixou para a metade.

O mundo associativo que se caracteriza como ONGs de desenvolvimento solidário e cidadania ativa necessita urgentemente de diretrizes e normas, que legalizem e lhes dêem segurança jurídica. É urgente modificar a legislação fiscal abrindo uma oportunidade para os brasileiros (de maior posse) de ter um aprendizado da solidariedade nacional, onde cada cidadão (ã) possa doar dinheiro para esse tipo de organizações (ODSC) a fim de garantir o investimento maior no desenvolvimento solidário e na construção de uma verdadeira cidadania. Isto contribuiria para ajudar o Brasil a construir um projeto de sociedade mais justo. Os doadores poderiam ter abatimento fiscal na declaração do imposto de renda, como existe, por exemplo, na França e em outros países europeus. Se eu dôo 100 Reais para uma organização, esta soma pode ser deduzida em 60% do imposto de renda. Além disso, posso exercer meu controle social acompanhando o andamento das atividades da organização do qual deposito confiança.

Devo acreditar que a Presidente Dilma tem confiança nessas organizações históricas e não vai continuar permitindo certos amálgamas que desacreditam suas ações junto à opinião publica. A sobrevivência destas organizações sociais é necessária, as atividades, os projetos que elas desenvolvem são compatíveis com o projeto de construção de um país sem misérias. Os dez anos de governo Lula e Dilma vêm se desenhando a nova cara do Brasil, sem duvida nenhuma, graças à ação de pressão da sociedade civil organizada.

Resgate do papel histórico.

Não podemos esquecer que essas organizações de desenvolvimento solidário participaram ativamente na elaboração da nova Constituição brasileira, elas foram propositivas, por esta razão vale à pena recorrer à memória de muitas temáticas que foram bandeiras de luta, algumas delas foram inseridas em agendas governamentais, tais como: democracia participativa, orçamento participativo nas prefeituras, conferências das cidades, fóruns sociais, reforma urbana, reforma agrária, agro-ecologia, questão de gênero, articulação da água, lixo seletivo, desenvolvimento com sustentabilidade, reconhecimento da causa indígena, das populações negras, democratização dos meios de comunicação, ética na política, sem contar com as campanhas como a da luta contra a fome e tantas outras temáticas, algumas transformadas em políticas públicas. Quantos anos de luta por um desenvolvimento brasileiro que seja compatível culturalmente, socialmente, ambientalmente!

Aos poucos, o país caminha por um mundo melhor, mas o combate continua, tendo em vista, que o Brasil ainda vive confrontado com muitos problemas: Falta e manutenção de infra estrutura básica, estradas, portos, rede de esgotos pluviais e sanitários, acesso à água potável, tratamento de águas usadas, pavimentação de ruas e construção de calçadas, extensão e renovação da rede elétrica, extensão dos meios de telecomunicação (banda larga inclusive), construção de sinalizações com acostamento nas rodovias, autopistas dentro das normas internacionais de segurança; despoluição de rios, reflorestamento de zonas  degradadas, descontaminação de solos, construção e reformas de escolas, hospitais, equipamentos hospitalares etc, etc. Existem tantas urgências para que o Brasil seja considerado um país desenvolvido, e não somente uma potência mundial econômica, que os recursos alocados pelo Estado devem ser mais bem utilizados, melhor priorizados e melhor compartilhados. Para investir num projeto global de sociedade com outra concepção de desenvolvimento, o governo federal necessita consolidar parcerias com organizações sociais comprometidas com a educação política da cidadania e capazes de elaborar projetos de forma articulada com todos os setores, dentro de uma visão integrada e solidaria do desenvolvimento territorial.

Desde 2006, as pequenas e micros empresas foram beneficiados com novas modalidades para as licitações de pequenos valores. É um grande avanço, mas seria ótimo que as   autoridades responsáveis pudessem realizar um trabalho urgente em diferentes favelas, por exemplo, no Rio de Janeiro para verificar as dificuldades e a falta de formação desses pequenos atores locais para que eles entendam a formalidade do mundo do trabalho e o funcionamento da economia formal. A informalidade permeia as relações sócio-econômicas nas favelas. Como ajudar, por exemplo, a rede de economia solidaria presente nessas favelas, a ter melhor organização? Como favorecer a economia local, se estas pequenas e micro empresas não possuem notas fiscais? Mudar a lei de licitação é uma coisa, capacitar os funcionários para entender, explicar o cumprimento da lei já é outra exigência. Talvez os editais / convites / convênios / contratos entre os governos e ONGs de desenvolvimento poderiam ter maior flexibilidade e quem sabe mais adaptado à realidade local.

Será tão difícil para o Estado equacionar este problema que já vem durando desde o primeiro mandato do governo Lula? Por que tanto tempo? Elaborar uma legislação mais especifica capaz de nortear uma legislação mais pragmática em que os termos de compromissos sejam mais bem precisos e os contratos/convênios mais flexíveis parece não ser tão complexo. Um governo que tanto enalteceu a participação popular não pode inviabilizar a participação de ODSC- Organização de Desenvolvimento Solidário e da Cidadania. Não se deve esquecer que elas foram protagonistas de uma visão integrada e solidaria do desenvolvimento e na formação da cidadania política no Brasil. Daí uma parceria estreita com o mundo associativo comprometido é necessária. A alta administração federal deve adaptar seus critérios de qualidade na gestão de logística publica. A burocracia nasceu como suporte de boa administração do Estado e não para dificultar a gestão publica.

 

Vale à pena valorizar este capital social acumulado ao longo da historia da democratização do país, por essas organizações sociais. Trata-se de um aprendizado que pode ser socializado com alguns agentes do governo que não têm a mesma formação acadêmica e política para este tipo de pratica social junto aos excluídos do progresso econômico brasileiro. Sinceramente, nada disso é de ordem do bla bla bla. Intelectual de uma eterna militante da utopia do possível (como me caracterizo) posso testemunhar sobre esta historia do mundo associativo brasileiro, pois trabalhei muitos anos na cooperação internacional. Escrevo aqui apenas como um grito de alerta.

Conclusão: autonomia crítica

As organizações sociais, que tiveram um papel relevante no processo de democratização do Brasil e que participaram de muitas conquistas sociais, vivem hoje uma crise econômica e de reconhecimento social sem precedente. Primeiro, pelo fato de o Brasil ser hoje considerado um pais rico; segundo a imagem positiva do governo Lula na luta contra a miséria e pelo seu programa de inclusão social tiveram repercussão internacional importante e mudou a imagem do Brasil. Estes dois fatores levaram os organismos da cooperação internacional a retirar sua ajuda às ONGs de desenvolvimento. Os 35 milhões que saíram da pobreza extrema estão muito longe do pleno acesso aos seus direitos e de uma atuação cidadã digna desse nome. É extraordinário o que foi feito nesses 10 anos, mas isso apenas arranhou a superfície de uma desigualdade histórica que continua a ser escandalosa.

Mas existe um terceiro fator considerado grave, é que uma grande parte da opinião publica desconhece o papel importante dessas organizações. A grande mídia moldou uma imagem negativa, ao colocar no mesmo saco as organizações de desenvolvimento solidário e cidadania com as associações e fundações que desviaram dinheiro público em beneficio próprio e não em beneficio do interesse coletivo.

Essas ONGs históricas e comprometidas com a luta contra a miséria e pela dignidade humana passaram a depender dos recursos dos governos municipais, estaduais e federal, mas não se enquadram em um marco jurídico que levem em conta suas especificidades e originalidade na forma de intervir localmente. Muitas foram obrigadas a demitir parte de seus quadros, de se desfazer do patrimônio imobiliário adquirido com a ajuda internacional. Muitas atividades e projetos foram interrompidos. Apesar do avanço na luta contra a exclusão, o território brasileiro continua convivendo com desigualdades e desequilíbrios regionais.

O governo Lula prometeu estabelecer um marco regulatório para essas entidades, mas depois de dois mandatos nada tinha sido resolvido. Agora é a vez da Presidente Dilma tentar resolver as aberrações jurídicas e dar oportunidades a esses atores de continuarem atuando junto às populações carentes e sair deste imbróglio jurídico. Como continuar uma associação não governamental, se muitas passam a ser executoras de políticas publicas?  A própria Constituição Brasileira garante a liberdade e independência das associações no artigo 5 do parágrafo XVIII. (ver constituição).

Os cidadãos que integram uma Organização de Desenvolvimento solidário e de Cidadania têm direito a usufruir ao acesso de fontes de financiamento público, e de guarda, ao mesmo tempo, sua liberdade de atuação critica, no sentido de garantir o exercício da cidadania política. Os cidadãos são guardiões do bom funcionamento democrático das instituições republicanas e estes, enquanto contribuintes pagam impostos e taxas que mantém os serviços públicos. Se certas medidas assumidas pelo governo são contraditórias à sua visão de desenvolvimento territorial solidário, estes cidadãos estão no seu direito de tecer criticas construtivas. Ser um aliado do governo na luta por um desenvolvimento com inclusão social, não quer dizer ser instrumentalizado. Uma democracia sem a vitalidade dos movimentos sociais e da sociedade civil organizada é uma democracia amorfa e seus cidadãos vão continuar elegendo deputados, senadores, governadores, prefeitos, vereadores que nunca serão dignos da casa do povo.  Governar para o povo e com o povo soará sempre como demagogia e não como principio da democracia.

A presidente Dilma que possui uma visão política dos atores sociais no Brasil, sabe o quanto é necessário, às vezes, ter contra-poderes em sociedades conservadoras, principalmente numa jovem democracia não muito acostumada com a democratização dos poderes, infelizmente, ainda existem saudosistas da ditadura no Brasil. Para fazer evoluir a sociedade e para poder avançar nas reformas estruturais que espera fazer do Brasil uma grande Nação, a ação militante na luta por outro desenvolvimento continua sendo fundamental. Assim como é necessário uma pratica maior do exercício da cidadania para consolidar a democracia social, parceira ideal para o funcionamento da democracia representativa. O governo por enquanto não tem uma maioria politicamente coerente, ela é mais fisiológica que ideológica. Por isso, também, o governo precisa de uma sociedade civil mais combativa.

Marilza de Melo Foucher, especializada em questões de desenvolvimento territorial, é doutora em economia, analista política,  escreve para o Jornal Mediapart em Paris colabora com vários sites de informações na América latina, com o Le Monde diplomático do Brasil, Outras Palavras, Correio do Brasil, Adital.

 

Categoria: Artigo
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