Em 2017, o orçamento federal destinado a programas de acesso a medicamentos sofreu queda de 14% em relação ao ano anterior, interrompendo uma tendência de crescimento orçamentário de dez anos. Na proporção inversa, o faturamento da indústria farmacêutica cresceu 13% no mesmo período.
Os dados são do estudo “Brasil: recursos federais destinados à assistência farmacêutica em tempos de austeridade”, lançado pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) nesta terça-feira (19). O documento alerta para a instabilidade da assistência farmacêutica do governo federal no período recente, analisando os impactos da política de austeridade no Orçamento Temático de Acesso a Medicamentos (OTMED) entre 2015 e 2017.
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Impacto da austeridade
De acordo com o documento, em 2016, os recursos alocados na assistência farmacêutica tiveram elevação real de cerca de 20%, alcançando 19,2 bilhões em valores constantes, a maior alta registrada na série analisada. No ano seguinte, a queda foi de 14,4%, muito maior que a do orçamento da Saúde, que foi de 3%.
O corte orçamentário coincide com as medidas de austeridade implantadas pelo Governo Federal desde 2015, sendo a Emenda Constitucional 95 (Teto dos Gastos) a mais extrema delas, congelando as despesas orçamentárias não financeiras por 20 anos. A determinação interrompeu uma tendência de aumento sistemático do OTMED que financiava importantes avanços institucionais no direito à saúde, como a ampliação da lista de medicamentos do SUS, o aumento da cobertura de vacinas e o acesso universal ao tratamento do HIV/Aids.
Mercado imune à crise
Apesar da crise fiscal e do corte de orçamento, estima-se que em 2021 o Brasil será o quinto maior mercado mundial de medicamentos. O estudo do Inesc chama a atenção para o fato de que “o acesso precário a medicamentos em decorrência da pobreza contrasta com o tamanho e dinamismo do setor farmacêutico no Brasil”. Dados do próprio setor revelam que em 2017 as vendas registraram alta de 13%, auferindo um faturamento de vultosos R$ 98,3 bilhões.
Além disso, o estudo lembra que o setor farmacêutico é agraciado com crescentes subsídios do governo pela via dos gastos tributários. São recursos anuais superiores a R$ 9 bilhões, que são concedidos sem que a população saiba que empresas são beneficiadas e com que valores.
Um exemplo de subsídios ao mercado de medicamentos foi a desoneração de PIS/Cofins para 65,5% das embalagens comercializadas em 2016. Apesar do objetivo pretendido na Lei que instituiu esse benefício, a redução no preço do medicamento para o consumidor final não ocorreu. Em 2017, a Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (Cmed) autorizou reajuste de até 4,76% nos preços do medicamentos – acima da inflação, que foi de 2,95% naquele ano.
“Os gastos tributários com medicamentos aumentam, mas o preço de medicamentos para compra direta pela população não reduz. Enquanto isso, o faturamento das farmacêuticas segue crescendo”, concluiu Grazielle David, uma das autoras do estudo. “Precisamos de transparência nos gastos tributários para saber se as empresas agraciadas pelos subsídios de fato trazem benefícios para a população brasileira”, questionou.
É por cenários como esse que o Inesc lançou no ano passado a campanha #SóAcreditoVendo, que pede o fim do sigilo dos gastos tributários no Brasil. De acordo com o manifesto da campanha, a falta de transparência e monitoramento dos gastos tributários acaba “gerando alterações de mercado e criando privilégios que aumentam a injustiça do sistema tributário brasileiro”.
Cortes atingem mais vulneráveis
Ainda que os recursos alocados em todos os componentes da assistência farmacêutica tenham caído, o principal retrocesso foi observado no Componente Especializado (CEAF), que teve queda de 25,86%. A consequência foi a diminuição de 61,7% nas quantidades adquiridas de remédios como a Betainterferona, utilizado no tratamento de pacientes com esclerose múltipla e do Daclastavir e Sofosbuvir, utilizados no tratamento da hepatite C.
O estudo também evidencia que os programas voltados a grupos sociais mais vulneráveis – ainda que historicamente subfinanciados e representando uma porcentagem pequena da totalidade do orçamento – tiverem cortes expressivos que agravam ainda mais a situação de uma população cada vez mais desprotegida. Em 2017, o orçamento voltado à saúde indígena, por exemplo, teve queda de 65% em relação ao orçamento de 2015. Já o programa Farmácia popular caiu 28% em relação a 2015 e foi extinto.
Metodologia
O Inesc analisa o orçamento de políticas e serviços públicos de modo a averiguar se o orçamento federal realiza os direitos humanos. Para isso, desenvolveu a Metodologia Orçamento & Direitos, disponível no site do Inesc.
A ferramenta dos Orçamentos Temáticos (OT) utilizada metodologicamente nesse estudo para a elaboração do OTMED – Orçamento Temático de Medicamentos, é construída por meio de agrupamentos de despesas utilizando-se plataformas de dados abertos e pedidos de informação via Lei do Acesso à Informação (LAI).