Lucídio Bicalho
Assessor Político do Instituto de Estudos Socioeconômicos
A atual crise na Zona do Euro é mais um estágio da crise capitalista que teve como agente catalisador as falências de bancos e seguradoras nos Estados Unidos em 2008 em função de negociações de hipotecas imobiliárias podres.
A crise americana de 2008 estabeleceu rupturas. As recomendações liberais que pregavam a desregulamentação dos mercados fracassaram na medida que o mercado não foi capaz de se auto-regular e o Estado não supervisionou a especulação bancária baseada em hipotecas imobiliárias podres. Mas o sistema já era disfuncional mesmo antes da crise devido aos juros norte-americanos próximos de zero mantidos por Alan Greenspan à frente do Federal Reserve que criou uma bolha especulativa. Também os déficits de George W. Bush para financiar as guerras do Iraque e do Afeganistão empurraram as contas públicas dos EUA para o precipício.
Portanto, os Estados Unidos já possuíam uma dívida alta quando tentou salvar seu sistema bancário e a quebra do Banco Lehman Brothers, por sua vez, apertou o botão que implodiu os pilares do sistema financeiro. Naquela época, o crédito bancário mundial travou, os empréstimos e investimentos foram suspensos e houve contração do emprego e da renda.
O ano de 2011 vai terminar sem que a crise capitalista tenha sido superada. Por culpa do governo Obama e do Partido Republicano, os EUA não conseguiram superar o endividamento da sua população, não houve solução para o desemprego e há ameaça de longos anos de baixo crescimento. Nesse caminho, o movimento Occupy Wall Street, entre outros no mundo, só expressa a insatisfação de milhões de pessoas que perceberam que “o almoço” está sendo pago somente por trabalhadores, principalmente, na forma de desemprego e dívidas, enquanto os bancos e o mercado financeiro continuam a ter lucros.
Zona do Euro
Já naquela época, a crise norte-americana rompeu fronteiras e atingiu economias em outros continentes – em 2008, por exemplo, o Reino Unido nacionalizou Northern Rock Bank. O contágio da crise americana foi transmitido para diversos países na Europa, especialmente aqueles chamados de forma depreciativa de PIIGS (Portugal, Irlanda, Itália, Grécia e Espanha).
Em 2011, a crise na Europa se manifesta principalmente como uma crise de solvência de dívidas soberanas dos países – isto é, as dívidas públicas – e também do próprio sistema bancário europeu. Ambos estão imbricados em suas dívidas pois elas se cruzam. Ao final de 2010, os bancos europeus detinham € 744 bilhões (de euros) só de dívidas desses países (PIIGS). Se forem considerados outros países, esse estoque soma € 845 bilhões. Somente os papeis relativos às dívidas de Espanha e Itália chegam a 70% do total carregado.
Se as projeções de endividamento apresentadas pelo presidente do Banco Central do Brasil, Alexandre Tombini, estiverem corretas, numa tentativa de os Estados financiarem suas dívidas, nos próximos anos pode haver o aumento da tributação sobre a população ou/e corte de direitos sociais.
Hoje, a dificuldade em salvar países endividados é maior porque muitos governos socorreram seus bancos na crise financeira de 2008 e aumentaram seus déficits para enfrentar a recessão de 2009. Além disso, as dívidas soberanas aumentaram no período recente na Europa principalmente porque houve elevação do rendimento (yield) cobrado pelo mercado para renegociar os títulos públicos. Esta alquimia ou artificialidade criou uma dívida (ilegítima) cujo fardo recai sobre o povo europeu.
A crise também colocou em evidência como a arquitetura do Euro favoreceu a Alemanha, detentora de mais tecnologia e produtividade, em detrimento de países menos ricos, que passaram a acumular déficits nos seus balanços de pagamento. E já surgem análises que apontam que a solução para os países em dificuldade é o abandono da moeda única.
Em busca de uma solução institucional
No fim do mês de outubro, França e Alemanha lideraram junto ao mercado financeiro o cancelamento de 50% da dívida grega. Mas a reestruturação da dívida grega, que era de € 350 bilhões em outubro, ainda terá desdobramentos.
A população daquele país ainda está revoltada com o fato de políticos e bancos terem endividado e levado o país à falência. O remédio imposto à população grega tem sido políticas recessivas, corte de empregos e de direitos. Com isso, o endividamento do governo grego só piorou desde o início da solução fiscal contracionista aplicada.
Na região do Euro, o grande desafio é a construção de uma solução institucional para prevenir uma crise sistêmica. Mesmo com uma elevação para € 1 trilhão (de euros) aprovado pela UE, o Fundo Europeu de Estabilidade Financeira (EFSF) não possui recursos suficientes para socorrer vários países concomitantemente. Na verdade, o aumento do EFSF não significa que esse dinheiro está disponível. De fato, somente algo em torno de € 250 bilhões de euros estão disponíveis para socorrer os países.
A Alemanha e a França, credores das dívidas soberanas de outros países, criaram condições para anunciar a reestruturação da dívida da Grécia. Os países membros da zona do euro aprovaram a ampliação do Fundo Europeu de Estabilidade Financeira (EFSF, na sigla em inglês), para € 1 trilhão de euros.
Mas, o socorro só vai minimizar a crise. A taxa de juros ainda será elevada na Zona do Euro por bastante tempo. Além disso, há uma relação estreita entre a saúde financeira de bancos, detentores de títulos da dívida, e dos países em crise. Não será surpresa se um conjunto grande de bancos manifestar problemas de solvência.
Os representantes do G-20, reunidos em Cannes na primeira semana de outubro, não chegaram a uma solução para a dívida na região do Euro. A despeito do cancelamento de 50% da dívida grega, a solução escolhida pelos policy makers deverá passar pela recapitalização dos bancos e países endividados. Portanto, novamente a população pagará pelos erros do setor financeiro, bancário e de governos irresponsáveis.
Os líderes mundiais ainda tentaram sem sucesso buscar recursos dos países em desenvolvimento, principalmente da China, Rússia e Brasil, para reforçarem o EFSF. Ainda que se consiga capitalizar o EFSF em até € 1 trilhão de euros, esse teto é insuficiente no caso de uma quebra coletiva de grandes países, como a Itália. O fato é que os líderes do G-20 também fracassaram em fechar um acordo para reforçar o caixa do Fundo Monetário Internacional-FMI para que o organismo venha a emprestar dinheiro aos países europeus endividados. No entanto, é completamente ilegítimo a população pobre de países em desenvolvimento emprestar dinheiro ao FMI para ajudar países ricos em crise.
É assim que a falta de coordenação e a protelação, em parte por falta de apoio político interno devido à impopularidade de medidas ousadas, tem elevado o valor necessário para socorrer as economias.
Assim, crise na zona do Euro evidenciou a perigosa combinação entre a desregulamentação financeira e o endividamento ilimitado de Estado.
Taxação do Fluxo Financeiro, transparência bancária…
Talvez, por populismo, os líderes europeus tentam passar a impressão de que o mercado financeiro, responsável pela crise, contribuirá com os prejuízos dos governos. Nessa direção, no dia 28/09, em Estrasburgo (França), o presidente da Comissão Européia, José Manuel Durão Barroso, propôs a criação de um imposto dentro da UE sobre transações financeiras a partir de 2014. Mas, as finanças públicas sobreviverão até lá? A idéia é taxar o setor financeiro para ajudar a pagar parte do prejuízo europeu. O imposto pode chegar em 2014 a € 55 bilhões (R$ 137 bilhões) por ano. Esse tema deveria ter sido um dos grandes temas do G-20 em Cannes.
Ainda é cedo para afirmar se um Financial Transaction Tax (FTT) será implementado na UE, já que é necessária a aprovação dos 27 países-membros. No entanto, para milhões de pessoas já é bastante tarde a adoção de medidas heterodoxas para regular o capitalismo. No Brasil, o Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) começam a ser utilizado para taxar fluxos de capitais. O IOF recolhido sobre as operações de crédito para pessoa física é de 3%. Já o IOF sobre empréstimos externos com menos de 720 dias é de 6%. Recentemente o Congresso Nacional aprovou a Medida Provisória n° 539 que determinou a taxação de especulação financeira no mercado futuro de dólares (1% sobre diferença entre posições compradas e vendidas).
A Europa busca agora minimizar os efeitos de uma crise que é inerente à economia de mercado. É claro que as medidas para minimizar crises são complexas e não se esgotam em poucas linhas. De qualquer forma, entre outras agendas, no mínimo, deveriam estar à mesa temas como: crédito de longo prazo para os países endividados; reestruturação das dívidas com os bancos privados aceitando a maior parte do prejuízo; financiamento das dívidas soberanas a partir da taxação do capital financeiro (FTT); políticas de fortalecimento da renda da população; o combate aos paraísos fiscais; a preservação dos direitos sociais e; a regulação do sistema financeiro, entre outras razões, para evitar a exposição à ativos tóxicos, revenda de títulos pobres, alavancagem, especulação etc.
No médio prazo, é possível que a Europa reforme sua arquitetura institucional. Afinal, os membros com déficits “programados” nos seus balanços de pagamento sobreviverão a quantas crises até abandonarem o Euro? Olhando o plano mundial, os ministros de finanças devem estar ansiosos esperando o dia quando será possível avançar na discussão sobre a substituição do dólar como principal moeda de reserva mundial em favor de uma cesta de moedas.
Enfim, se a população da Europa não sair às ruas, arcará com cortes de políticas e a elevação de tributos. Se os políticos insistirem com cortes de direitos, há riscos reais de uma crise social (que parece dada). A certeza é que os efeitos desta tragédia se arrastarão por vários anos.