É provável que no dia 12 de junho, Dia Mundial de Combate ao Trabalho Infantil, uma criança lhe ofereça flores ou chocolates no bar, e que um adolescente vigie seu carro enquanto você sai para celebrar o também dia dos namorados. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad Contínua), de 2016, o Brasil tem cerca de 1,8 milhão de crianças e adolescentes (5 a 17 anos) em situação de trabalho infantil – o que mostra que nós estamos em descumprimento da lei e naturalizando um problema que deveria ser prioridade absoluta de luta.
A Constituição Federal de 1988 afirma que é dever da família, da sociedade e do Estado “assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão” (art. 227).
Assim, somos todos responsáveis por garantir que a infância e adolescência sejam resguardadas, assegurando proteção e espaços favoráveis ao seu pleno desenvolvimento. O não enfrentamento e a não erradicação do trabalho infantil são crimes. Compreende-se por trabalho infantil toda forma de trabalho realizado por crianças e adolescentes abaixo de 14 anos. Dos 14 aos 16, é permitido trabalhar apenas na condição de aprendiz.
Perfil socioeconômico do trabalho infantil
Historicamente, o Brasil tem um legado de violências à infância. Desde os tempos de colônia, um recorte social foi feito, tolerando que crianças indígenas e negras fossem levadas ao trabalho, escancarando uma estrutura classista vergonhosa. O trabalho infantil constitui-se como mecanismo de sobrevivência às desigualdades sociais, ora como alternativa para garantir a renda familiar, ora para alcançar condições de consumo de itens que se estabelecem como elementos de inclusão social em determinados grupos, como roupas de marca, celulares e outros.
Essa realidade, em si, é um indicador latente de que o país falhou em políticas de inclusão socioeconômicas, pois as crianças e adolescentes hoje em situação de trabalho infantil são filhos de pais que estiveram na mesma condição, uma herança de violação à infância e exclusão de direitos.
De acordo com o Plano Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil e proteção ao Adolescente trabalhador, o perfil socioeconômico das famílias das crianças e adolescentes, entre 5 a 17 anos, em situação de trabalho infantil, revela que 49,83% têm rendimento mensal per capita menor que 1/2 salário mínimo e 27,80% inferior a 1 salário mínimo, o que prova que o trabalho infantil tem relação direta com a pobreza. Portanto, a partir desses dados, é possível concluir que 77,63% das crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil são de famílias vulneráveis, com renda per capita inferior a 1 salário mínimo.
E se a pobreza no Brasil tem cor, o trabalho infantil também. Segundo dados da PNAD/IBGE Contínua 2016, entre as crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil, 64,1% são negras. Isso é uma das comprovações da formação sócio histórica estruturada nas relações de poder racista, classista que seleciona os corpos, as cores que terão oportunidade de vivenciar a infância.
“Vai trabalhar, vagabundo!”
Uma narrativa assimilada pela cultura do país é que: “é melhor estar trabalhando do que vagabundando na rua”, o que se apresenta como elemento para justificar o trabalho infantil. Pois bem, a questão é que essa narrativa se aplica apenas aos menos favorecidos economicamente, em sua maioria crianças e adolescentes negras. Tal conduta ignora de forma violenta a condição do corpo infantil e adolescente, compromete seu pleno desenvolvimento, cria e estabelece mecanismos contínuos de uma vida de exclusão.
Se o trabalho enobrece e “dignifica o homem”, no que se refere às crianças, ele mortifica suas possibilidades de uma vida digna, visto que essa situação limita, restringe ou até impede o acesso a direitos como saúde, educação, profissionalização, convivência familiar e comunitária. Ademais, o corpo infantil e adolescente, se estiver trabalhando, não desfruta de espaço e tempo oportuno para se desenvolver em suas dimensões “físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade” (art. 3 ECA).
Crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil pagam um alto preço, tanto com seus corpos, quanto com suas mentes. Suas capacidades de criar, imaginar, experienciar e ter perspectivas ficam prejudicadas, rompendo com possibilidades de construções cognitivas e psicopedagógicas. Essa ruptura impactará esses sujeitos durante a vida adulta.
Romper o ciclo das desigualdades para erradicar o trabalho infantil
O Brasil assumiu o compromisso de erradicar o trabalho infantil até 2025. No que se refere a nossa legislação, temos leis que colocam a infância e adolescência na centralidade das políticas públicas e sociais e favorece o respeito às diversas infâncias e adolescências. No entanto, os retrocessos que estamos testemunhando ao longo do ano de 2019 impactam essas políticas.
Cortes nos recursos destinados à educação, assistência social e à fiscalização do trabalho escravo, são ações que contribuem para a invisibilização das crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil, violando direitos fundamentais.
Por que trabalha uma criança? Se a conclusão é que seja para garantir sua sobrevivência, tem-se aqui a ausência da responsabilidade como sociedade. Há, portanto, urgência em cumprir a legislação e exigir que a infância seja prioridade na execução e planejamento do orçamento público. Um esforço sério ao enfrentamento do trabalho infantil exige uma dinâmica de políticas integradas, com enfoque na redução das desigualdades sociais e combate à pobreza, visto que o trabalho infantil segue como uma herança na família de baixa renda. Segue também lado a lado com a baixa escolaridade.
Cada criança e adolescente em situação de trabalho infantil é um indicador vivo que falhamos em assegurar direitos, comprova que o Estado não conseguiu romper com o ciclo de desigualdades, tão pouco garantiu condições de inclusão desses sujeitos.
A infância não pode esperar, ela tem urgência em viver, ocupar cidades, campos, aldeias, e quilombos, tecer, descobrir e experienciar sua identidade real, que são o riso, o brincar, o aprender e ensinar, com as cores, o afeto, a convivência familiar. Ela está em todo lugar nos provocando e nos inspirando a tecer dias melhores. O futuro da infância não é a vida adulta, o futuro da infância é o presente, é presença. A nós, cabe a responsabilidade de garantir a presença de seus direitos de forma a respeitar seu tempo, seu desenvolvimento. Criança não trabalha!
De igual modo, cabe atenção e reflexão sobre como nosso país tem concordado com a criminalização da adolescência, sem, contudo, observar o grupo alvo desse discurso, pois mesmo o termo adolescente é negado aos adolescentes periféricos, eles seguem nas narrativas como “de menor”. Adolescência não é crime, adolescência pede proteção, estímulos, incentivos, educação, cultura, arte, direito à saúde, à cidade, à sua identidade sociocultural e profissionalização.
Aos adultos desse país está dada a responsabilidade em monitorar e cobrar pela efetivação dos direitos das crianças e adolescentes, que não podem esperar. A eles e elas nenhum direito a menos, proteção integral.
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