*Com informações da Rede Brasil Atual
Desde 2015, o transporte entrou para o elenco de direitos sociais do artigo 6º da Constituição Federal. Mas quem vive nas grandes cidades brasileiras sabe: longe de ser um direito social de fato, o transporte tem participação crucial na manutenção e reprodução da sociedade tal como ela está, com todas as suas desigualdades e perversidades.
Essas e outras questões foram debatidas durante a audiência pública “Transporte como direito social” realizada na última terça-feira (19), na Câmara dos Deputados. A atividade foi uma iniciativa do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc).
Para o ex-secretário de Transportes da cidade de São Paulo na gestão de Luiza Erundina (1989-1992), Lúcio Gregori, ao mesmo tempo em que o transporte coletivo é fundamental para a economia – principalmente num país como o Brasil, onde 80% da população vive em áreas urbanas – também é por meio do transporte que se mantém a discriminação entre as periferias e o centro da cidade. “Tem gente em São Paulo que nunca foi e nunca irá ao parque Ibirapuera no fim de semana. O preço da tarifa é proibitivo para muitas famílias”, exemplificou.
Tarifa subsidiada
Frente ao discurso recorrente de país “quebrado” e sem recursos para investimento social, Lúcio Gregori propôs a utilização mais inteligente de todos os impostos sobre o preço dos combustíveis para financiar o transporte coletivo, algo que vá além da proposta relacionada à Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide), que está sujeita às variações da conjuntura.
Para ele, é necessária uma redistribuição de impostos de modo a garantir o financiamento do usuário do transporte coletivo.“O transporte como direito social, no limite, quer dizer mais recursos para o transporte. Significa uma tarifa de transporte coletivo fortemente subsidiada, que não deixe ninguém de fora do exercício desse direito”, defendeu.
O representando do Movimento Passe Livre (MPL), Paíque Duques Santarém, destacou que a atividade do transporte está ligada as famílias detentoras de poder político e econômico, que utilizam empresas de transporte para lavagem de dinheiro, prática de “Caixa 2” e financiamento de campanhas políticas.
“Transporte faz parte do exercício de poder. Ele está ligado à reprodução da sociedade como ela funciona hoje: colonialista, capitalista e patriarcal. É contra isso que estamos lutando”, afirmou. Paíque lembrou ainda que, por meio de pressão e ações diretas, o MPL já alcançou conquistas como passe livre estudantil e redução de tarifa em diversas cidades.
Em consonância com as demais avaliações, a arquiteta e urbanista Ermínia Maricato definiu como o “exílio da periferia” a situação do transporte coletivo nas grandes cidades brasileiras. Como exemplo, citou os ônibus que param de circular à meia noite, impedindo que jovens da periferia possam usufruir de cinema, teatro e outras formas de cultura, em geral, localizadas na zona central da cidade.
“Temos no Brasil leis avançadas de mobilidade urbana para realidades atrasadas”, afirmou, enfatizando que todo município do país com mais de 20 mil habitantes tem plano diretor. “Não há falta de lei.”
Segregação racial e de gênero
Ex-secretária executiva do Ministério das Cidades e professora aposentada da Universidade de São Paulo (USP), Ermínia Maricato definiu como uma “tragédia” a situação da mobilidade urbana no Brasil, destacando as muitas horas que as pessoas passam no trânsito, principalmente a população mais pobre. “A senzala urbana existe e está fora da cidade dos brancos endinheirados, que vivem onde está o mercado de trabalho e imobiliário.” Segundo ela, cerca de 30% das famílias da região metropolitana de São Paulo são chefiadas por mulheres que precisam diariamente ficar longe dos filhos para ir trabalhar, perdendo horas do dia apenas no trânsito.
O impacto do transporte coletivo na vida das mulheres foi a análise feita por Letícia Bortolon, coordenadora de políticas públicas do Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento (ITDP-Brasil). De acordo com ela, apenas 13% das mulheres se locomovem de carro, bem abaixo dos 27% de homens. E entre as “viagens” realizadas de carro por mulheres, somente 3% são feitas por mulheres pobres, contra 45% de viagens feitas por ricas.
Citando a pesquisa Origem Destino (OD) 2017, da Companhia de Metrô de São Paulo, Letícia Bortolon enfatizou que 74% da locomoção das mulheres são feitas em transporte público ou a pé. “A experiência das mulheres nos ônibus é horrível”, ponderou, lembrando os recentes casos de assédio sexual em São Paulo que obtiveram visibilidade na imprensa. “Se tiverem dinheiro, muitas mulheres preferem uma opção de transporte mais cara, ainda que mais ineficiente, se perceberem que é mais seguro”
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Lançamento do MobCidades
Durante a audiência foi lançado o projeto MobCidades – Mobilidade, orçamento e direitos que será implementado pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) em parceria com dez organizações integrantes da Rede Social Brasileira por Cidades Justas, Democráticas e Sustentáveis.
A educadora e assessora política do Inesc, Cleo Manhas, explicou que um dos objetivos do MobCidades é justamente fazer um levantamento do orçamento da mobilidade vinculado à reflexão sobre o direito à cidade e ao transporte. “Quando falamos em transporte como direito social estamos falando de cidades mais inclusivas, de combate à segregação socioespacial, ao racismo e à desigualdade de gênero”, refletiu
O MobCidades é financiado pela União Europeia e contempla os municípios de Belo Horizonte, Brasília (DF), Ilhabela (SP), Ilhéus (BA), João Pessoa (PB), Piracicaba (SP), Recife (PE), Rio de Janeiro (RJ), São Luís (MA) e São Paulo (SP).
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