Por Cleo Manhas, assessora política do Inesc e integrante do Movimento Nossa Brasília
Publicado originalmente no Outras Palavras
Estamos em mais um 8 de março e precisamos novamente refletir sobre o mundo machista no qual convivemos, circulamos, trabalhamos. Sempre um desafio, pois apesar de estarmos atravessando uma era de intensa velocidade do espaço/tempo devido ao avanço tecnológico, o tempo histórico nos lembra que faz menos de um século que as mulheres começaram a votar no Brasil.
De lá pra cá, as relações sociais alteraram-se significativamente. Antes, a maioria da população vivia no meio rural, agora, cerca de 85% residem em cidades, onde as interações são mais intensas, visto que nos relacionamos frequentemente com mais pessoas em todos os aspectos de nossas vidas.
Ao longo desses anos, o fenômeno da metropolização extrapolou o limite das cidades, gerando a necessidade de planejamento na área de mobilidade urbana – o que raramente ocorre ou, quando ocorre, é realizado por homens brancos, que ainda constituem a maioria dos gestores eleitos.
Hoje, as mulheres são maioria entre eleitores: 54% contra 47% de homens. Contudo, no Congresso Nacional são apenas 51 deputadas em um total de 513; no Senado, 12 senadoras em um universo de 81. Por aí dá para se ter uma ideia de como as relações de gênero são desiguais desde a representação. Então, o que esperar das políticas públicas aprovadas por um parlamento com esta conformação?
A falta de planejamento e a consequente concentração de postos de trabalho e equipamentos públicos deixou a vida das pessoas ainda mais difícil ao longo dos anos, especialmente daquelas que mais utilizam transporte público e se deslocam mais vezes – o caso da população que recebe até cinco salários mínimos, onde se situam a maior parte das mulheres negras.
Ora, quem mais se desloca pela cidade são as mulheres. Na sociedade machista, recai sobre elas a responsabilidade de levar os filhos para creches e escolas, fazer compras para a casa, além de se deslocarem para o trabalho e locais de estudo. Na maioria das vezes, circulam a pé por seus bairros, sofrendo com a insegurança e a falta de infraestrutura, visto que a situação das calçadas, principalmente nos bairros periféricos, é deplorável, dificultando a mobilidade a pé ou de bicicleta, especialmente, de pessoas idosas e com deficiência.
Registremos ainda que aquelas que estão em maioria no transporte público, caminhando dos pontos até suas casas, utilizando as (não) calçadas, são as mulheres negras, que ao contrário dos “planejadores”, estão no lado oposto da cadeia de privilégios, sendo muitas vezes assediadas nos ônibus ou nas ruas.
Em um estudo de caso realizado pelo ITDP no Recife, vários depoimentos demonstram que a maior parte das mulheres têm medo tanto de ficar esperando o transporte nas paradas quanto de caminhar da parada até suas casas. Vejam um trecho desse estudo: “Dentre todas as questões manifestadas por essas mulheres, destaca-se a percepção sobre os pontos de ônibus, considerados, na experiência delas, como o local da cidade onde sentem mais medo e estão mais vulneráveis à violência urbana e de gênero. A violência de gênero, sobretudo o assédio, faz parte da experiência cotidiana das mulheres nas cidades e no transporte público”.
Ainda de acordo com o estudo do ITDP, a partir de dados produzidos pela Actionaid , 86% das mulheres do Recife foram assediadas no espaço público e 40% no transporte público. Além disso, 80% já foram assediadas por agentes de segurança pública, que deveriam garantir que elas não fossem assediadas.
Se não há planejamento metropolitano, o que dizer de planejamento considerando diferentes públicos? Para piorar a situação, o planejamento não é participativo e muito pouco é feito pensando em longo prazo, até porque, o objetivo é sempre o próximo processo eleitoral. E agora vamos chover no molhado ao dizer o que sempre constatamos nestes períodos: no entendimento dos gestores de ocasião, a prioridade vai para ações que geram mais votos, como as grandes obras, que trazem visibilidade para quem as executa e ainda são muito “rentáveis”.
Além de os planejadores serem os gestores de ocasião, no caso da mobilidade, são em sua maioria homens brancos, ou seja, aqueles que ocupam o topo da cadeia de privilégios, que circulam menos e sofrem menos com a falta de segurança e iluminação das cidades. Ou sequer vivenciam os espaços públicos, pois saem de suas casas e entram em carros com ar-condicionado e películas nos vidros, vão até as garagens dos prédios de seus trabalhos, pegam elevadores até suas salas e, no final do dia, voltam para o carro com ar condicionado para se deslocarem até restaurantes fechados, também com ar-condicionado, etc. Não entendem sequer para que serve um poste de luz iluminando as calçadas e, por isso, priorizam a iluminação das vias por onde circulam os carros.
Escrevendo esse artigo reflito sobre o cansaço da repetição. Todos os anos precisamos falar as mesmas coisas e os dados refletem as mesmas desigualdades. Com alguma melhora do tempo em que as mulheres não votavam para cá, é verdade, mas em termos civilizatórios, ainda estamos na barbárie.
Sendo assim, não escrevemos somente para informar a quem é de direito, ou a quem pode mudar os números, porque estas já sabem. Escrevemos também para gritar e incomodar: as mulheres têm direito a se sentirem confortáveis e seguras no lugar em que vivem! Especialmente nas cidades onde também trabalham, estudam, se divertem, vão e vêm utilizando ruas, calçadas, transporte, cruzando com pessoas, vivenciando o espaço público da forma lhes dê mais prazer.
Se interessou pelo tema? Inscreva-se para receber nosso boletim por email!