Por Leila Saraiva, assessora política do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc)
Durante essa semana, as discussões sobre a água vieram ao centro do debate público no país. Não foi, ao contrário dos últimos anos, a chamada “crise hídrica” e seus desdobramentos no cotidiano de moradores/as das cidades brasileiras o que motivou o debate. Foi a realização do 8º Fórum Mundial da Água (FMA) – que reuniu chefes de Estado e grandes empresas em Brasília – que fez com que o tema voltasse à tona.
Desde sua primeira edição, em 1997 no Marrocos, o FMA é organizado pelo autointitulado Conselho Mundial da Água, uma organização internacional coordenada principalmente por grandes corporações e que, como bem disse o professor de física e deputado espanhol, Pedro Arrojo, se propõe a ocupar o lugar que deveria pertencer às Nações Unidas na urgente discussão sobre o acesso a água para todos/as.
Apesar do slogan da oitava edição do evento ter sido “compartilhando água”, não é como bem comum, direito fundamental de todos/as, que o FMA enxerga a água. O encontro trata da água como recurso ou, como tantas vezes foi dito em seus painéis, como “capital natural”, apostando em negociatas e transações financeiras como solução para as dificuldades crescentes de acesso à água. Uma descrição detalhada desse processo nos valerá outro artigo, a ser somado às dezenas de análises críticas feitas pelos participantes do evento opositor, o Fórum Alternativo Mundial da Água – organizado por movimentos sociais, sindicatos e populações tradicionais.
A questão que tem encontrado pouco ou nenhum espaço na ampla cobertura midiática do Fórum e para qual queremos chamar atenção nessa ocasião é: quanto custou o 8º Fórum Mundial da Água? E, ainda mais importante: quem, afinal de contas, está pagando por ele?
Segundo a prestação de contas feita publicamente pelo próprio Conselho Mundial da Água, o custo total do evento – entre montante já arrecadado e estimativas com inscrições a serem realizadas ao longo do evento e patrocínios ainda não confirmados – ultrapassa os R$ 100 milhões. Destes, mais de 51,8% (R$52.687.641,67) foram pagos diretamente com dinheiro público, por meio da Agência Nacional das Águas (ANA), que contribuiu com R$22.015.324,70; e a Agência Reguladora de Águas, Energia e Saneamento Básico do Distrito Federal (ADASA), agência distrital de função análoga à da ANA, responsável pelo investimento de R$30.672.316,97.
O evento conta ainda com outras fontes de recursos, sobre os quais não temos informações detalhadas: patrocínio de empresas públicas como a Eletrobrás e a Companhia de Saneamento Ambiental do Distrito Federal (Caesb), e ainda o apoio da Associação Brasileira de Indústrias de Base (ABDIB), apresentada como o braço privado entre os colaboradores, mas que também tem entre suas associadas várias empresas públicas de saneamento. Em todo caso, a utilização de R$52 milhões que já sabemos serem oriundos do orçamento público, em tempos de cortes de gastos e direitos, já é bastante representativa em si.
Se analisarmos mais detalhadamente o investimento feito especificamente pela ADASA, os gastos se tornam ainda mais desproporcionais. Para termos uma ideia, o orçamento total da ADASA em 2017 foi, segundo o portal da transparência do Governo do Distrito Federal (GDF), de pouco mais de R$57 milhões, destinados a todos os gastos da agência: pagamento de funcionário, fiscalização, gestão dos recursos hídricos no Distrito Federal. A julgar por esse dado, em três anos, a ADASA gastou o equivalente a 53% de seu orçamento anual em um evento que durou menos de sete dias, de acesso bastante restrito (as taxas de inscrição para participar efetivamente do evento variavam entre R$525 e R$2.625). Tudo isso, é bom lembrar, em meio a maior crise hídrica já vivida no DF, cujo manejo está entre as responsabilidades da Agência.
Mantendo nossos olhos sob o GDF, chama ainda atenção que, entre os R$30 milhões investidos pela ADASA no FMA, ao menos R$14 milhões tenham sido pagos diretamente para o Conselho Mundial da Água, também segundo dados coletados no Portal da Transparência. Trata-se de uma transferência direta de recursos dos cofres públicos para a articulação das grandes empresas e corporações da água no mundo, sem maiores explicações. Mais uma vez, investimento feito em momentos de alegada crise econômica.
A própria ADASA parece reconhecer que há algo de complicado em suas prioridades. Ao ser solicitada, por meio da Lei de Acesso à Informação, sobre o total a ser gasto no evento, a Agência saiu pela tangente: alegou que, como o evento ainda não havia sido realizado, não poderia informar quanto seria gasto e continuou insistindo nessa resposta, mesmo depois de afirmarmos que o orçamento público não pode ser feito sem planejamento e que eram as previsões que nos interessavam. Chama a atenção que, enquanto o Conselho Mundial da Água faz questão de exibir os montantes milionários investidos no evento – quase como uma vitrine do potencial de lucro do encontro – os órgãos governamentais, apesar de sua obrigação legal, se furtem de nos dar as devidas explicações.
Seguindo a lógica de outros megaeventos que o país tem recebido nos últimos anos, o Fórum Mundial da Água implicou em grandes investimentos públicos e deixa legado, no mínimo, duvidoso. Se é verdade que ainda não sabemos exatamente como as articulações feitas durante o evento irão afetar nossas vidas, podemos afirmar sem ter dúvidas: mais da metade do 8º Fórum Mundial da Água foi pago por nós, cujo direito a água foi explicitamente alvo de negociações durante o encontro.
Vamos falar sobre Orçamento Público?
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