Dentre os vários tópicos debatidos durante a 72ª Assembleia Mundial da Saúde (AMS), que aconteceu em maio, em Genebra, um dos mais controversos foi sobre transparência. Apesar de toda a polêmica, uma resolução que pedia mais clareza no mercado de medicamentos, vacinas e outras tecnologias em saúde foi aprovada e considerada um avanço pelas organizações da sociedade civil.
A resolução foi proposta inicialmente por Itália, Grécia, Malásia, Portugal, Sérvia, Eslovênia, África do Sul, Espanha, Turquia e Uganda, e outros países somaram seu apoio ao longo das negociações, incluindo o Brasil. Realizada anualmente, a AMS é o órgão decisório da Organização Mundial da Saúde (OMS) e conta com a participação de delegações de todos os países que integram a Organização das Nações Unidas (ONU).
A decisão inédita dos países surge devido a um dos principais problemas globais em saúde atualmente: o alto preço dos medicamentos. Os gastos com saúde são centrais em qualquer país, devido a seu grande volume e ao vasto número de necessidades que precisam ser atendidas. Os medicamentos são um componente significativo deste gasto, e o preço elevado vem colocando os orçamentos, inclusive dos países de renda mais alta, em situação crítica.
Nem sempre os preços pagos pelos ministérios da Saúde e os praticados pela indústria são disponibilizados de forma clara. Além disso, a indústria adota diferentes preços entre os países, sendo criticada por não considerar a discrepância de renda entre eles. Ademais, o preço varia na medida em que o produto passa pelas etapas da cadeia produtiva, da empresa produtora até chegar ao paciente, passando por distribuidoras e farmácias. A transparência com relação aos diferentes preços, e a disponibilidade de informação que permita realizar comparações entre as etapas e países, pode facilitar o acesso aos produtos em saúde, ao estimular mercados globais funcionais e competitivos.
Negociação complicada
O processo de negociação da resolução foi longo e conturbado. O texto inicial foi proposto pelo ministro da Saúde italiano em fevereiro e, em abril, recebeu apoio de diversos países para entrar na pauta da AMS. Inicialmente, ele incluía medidas concretas e avançadas para maior transparência relativa a quatro pontos: custos de pesquisa e desenvolvimento (P&D), resultados de ensaios clínicos, patentes de medicamentos e preços.
No entanto, recebeu grande oposição de países com forte presença da indústria farmacêutica, em especial Alemanha e Reino Unido, que propuseram diversas alterações visando diluir seu conteúdo. A discussão em plenário da resolução foi adiada até o último dia da Assembleia, em 28 de maio, e quase foi transferida para 2020.
As organizações do movimento por acesso a medicamentos acompanharam o processo de perto, lançando no início de maio uma carta aberta que alertava para a tentativa de alguns países de desandar os avanços para maior transparência. No documento, os delegados eram convocados “a defender uma resolução que seja eficaz em capacitar os governos e o público a ter maior transparência e acesso mais igualitário à informação, a fim de ter maior poder em lidar com a crise no preço das tecnologias médicas”. As assinaturas de mais de cem grupos e indivíduos mostram a importância do tema e do apoio existente. A sociedade civil desempenhou papel importante nas negociações.
Um dos principais avanços da resolução foi a concordância de que os Estados membros devem tomar medidas apropriadas para compartilhar publicamente informações sobre preços. Todavia, em relação à divulgação de custos e resultados de ensaios clínicos, foi adotada uma linguagem que reforça sua natureza voluntária.
De acordo com declaração do Médicos Sem Fronteiras, a resolução é um primeiro passo bem-vindo para corrigir o desequilíbrio de poder que existe hoje durante as negociações entre os compradores e vendedores de medicamentos, dando aos governos as informações de que precisam para negociar de maneira justa e responsável pela saúde de seus povos. No entanto, apesar de ser o resultado de uma mobilização histórica, a resolução não é suficiente. É necessário saber a margem de lucro das empresas, os custos de produção e dos testes clínicos, quanto investimento é realmente aplicado pelas empresas e quanto é financiado pelos contribuintes e grupos sem fins lucrativos, que não são abordados.
A mobilização da sociedade civil e o engajamento nas redes foi tão intensa que incomodou alguns países, que solicitaram que a OMS revise suas regras para o envolvimento de ONGs e de outros “atores não-estatais” em reuniões públicas.
Transparência também a nível nacional
A transparência é fundamental para maior eficiência e responsabilidade (accountability) na execução das políticas públicas. Assim, a discussão sobre este tema nos fóruns globais reverbera também à nível nacional. Por exemplo, o estudo do Inesc sobre a execução orçamentária do Ministério da Saúde brasileiro mostrou um crescimento contínuo dos gastos com medicamentos nos últimos anos.
De acordo com o estudo, entre 2008 e 2015, o Orçamento Federal do Acesso a Medicamentos no Brasil (OTMED) aumentou 64,9% em termos reais, uma elevação muito superior à observada no orçamento da Saúde, de 36,7% no mesmo período. Assim, a participação percentual do OTMED no orçamento do Ministério da Saúde, que passou de 11,6% para 14,6% no mesmo período, se aproximava da média calculada para os países de renda média-alta, que é da ordem de 15%.
Além disto, os gastos tributários com medicamentos e produtos químicos e farmacêuticos passaram, em termos reais, de R$ 6,17 bilhões em 2014 para R$ 7,63 bilhões em 2015, um aumento real da ordem de 23,5%.
Transparência é o ponto central para saber se esses incentivos se convertem em benefícios para a população. Jogar luz sobre o mercado de medicamentos e dos preços praticados em compras públicas também é imprescindível para garantir a eficiência e controle social destes gastos.