R$ 31 bilhões. Este é o valor contingenciado pelo governo Bolsonaro até agora. Mas para onde foram direcionados os cortes exatamente? O Portal de Orçamento do Senado (Siga Brasil) mudou recentemente a forma de divulgar os contingenciamentos, o que permite responder a essa pergunta.
Contingenciamento é prática costumeira dos governos e corresponde ao ajuste das despesas ao volume de receitas arrecadado pelo Tesouro. O encontro de contas acontece por meio dos Decretos de Programação Orçamentária. Até o momento, três decretos foram emitidos pelo governo, nos meses de fevereiro, março e maio.
O problema é que esses decretos contêm informações somente referentes aos cortes por órgão, ou seja, por Ministério, o que torna a transparência “opaca”, na medida em que não é possível visualizar em quais políticas públicas os ajustes foram feitos.
Desde junho isso mudou. O Siga Brasil passou a divulgar os dados do contingenciamento a partir das classificações orçamentárias (programa, ação, plano orçamentário etc.), tornando possível maior controle social. Na presente nota, todos os dados foram extraídos desse portal, no dia 12 de junho de 2019, com seus valores indexados pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA).
É possível agora saber, por exemplo, quais programas foram atingidos com os cortes na Educação e os valores exatos. O levantamento do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) revela que o programa de Bolsa Permanência no Ensino Superior e o de Apoio à Infraestrutura da Educação Básica tiveram 100% de seus recursos congelados. O programa Minha Casa Minha Vida e as políticas de proteção aos direitos indígenas também estão entre os que mais sofreram com os cortes, como veremos a seguir.
Analisando de maneira ampla, os contingenciamentos pouparam áreas governamentais que historicamente possuem muitos privilégios, com o Legislativo e o Judiciário, e atingiram fortemente áreas relacionadas com a garantia de direitos humanos, que já vinham sofrendo com a diminuição de recursos nos últimos anos. Com as atuais prioridades do governo e o Teto de Gastos vigente, poucos serão os recursos para a garantia de direitos das minorias brasileiras.
Contingenciamentos por Função: uma visão abrangente dos cortes governamentais
O contingenciamento afetou praticamente todas as áreas de atuação da União (chamadas de Funções), com exceção das funções Legislativo, Judiciário, Saúde e Reserva de Contingência, como pode ser observado na Tabela 1. Contudo, alguns setores foram mais afetados do que outros.
Quando analisamos as funções que mais contribuíram para o total contingenciado (ver a coluna P2 da Tabela 1), observamos que cerca de um terço foi direcionado a políticas sociais (educação, trabalho, assistência social, direitos da cidadania, segurança pública, habitação, saneamento e organização agrária, entre outras). Entre essas, o maior corte foi na Educação, que sozinha representou 18% do total contingenciando, evidenciando o pouco caso desse governo em relação à realização dos direitos constitucionais.
Outra função atingida foi a de Encargos Especiais, que perdeu cerca de R$ 8,1 bilhões, equivalentes a 27% do total contingenciado. Os maiores cortes nessa função, que aglutina gastos governamentais não-finalísticos, ocorreram na participação acionária do governo em empresas. As empresas atingidas foram a Infraero, a Eletrobrás, a Emegepron, a Telebrás, a Pré-Sal Petróleo, as Companhias Docas do Rio Grande do Norte e de São Paulo e os Correios.
O maior contingenciamento de participação da União no capital de empresas foi o da Eletrobrás, contabilizando R$ 3,5 bilhões de reais, 11,27% do total contingenciado pelo governo em 2019.
E, finalmente, a Defesa também viu seu orçamento encolher em R$ 5,8 bilhões, ou seja, 19% do total contingenciado. Essa área teve aumento de gastos governamentais entre 2014 e 2018, principalmente no que se refere a despesas com pessoal. O contingenciamento da Defesa Nacional, porém, não focou no gasto com pessoal, e sim em investimentos de material bélico, como detalha reportagem do site DefesaNet.
Quando se analisa o que a redução do orçamento representa em relação ao que havia sido inicialmente previsto (ver coluna P1 na Tabela 1), vê-se que a função mais afetada pelos cortes foi a Habitação: o contingenciamento levou mais de 90% dos seus recursos. Tal medida significou, na prática, o desaparecimento do Programa Minha Casa Minha Vida, que está passando por um processo de revisão e foi noticiado que só dispõe de recursos até julho.
A segunda área mais atingida é a dos Direitos da Cidadania, que viu seu orçamento encurtar em 27%. Neste setor estão as políticas relacionadas com defesa dos direitos de minorias e setores vulneráveis da sociedade, como mulheres, população indígena e negra, migrantes, consumidores e pessoas com deficiência. Os programas que mais sofreram com cortes nessa função foram “Justiça, Cidadania e Segurança Pública”, e “Proteção e Promoção dos Direitos dos Povos Indígenas”, que tiveram seus orçamentos contingenciados em 44,9% e 32,86%, respectivamente.
Vamos analisar mais profundamente três áreas relacionas com a garantia de direitos que sofreram com os cortes: educação, políticas para mulheres e políticas para os povos indígenas.
Educação: ações tiveram 100% de recursos contingenciados
A execução orçamentária da educação vem caindo em tempos recentes. Entre 2014 e 2018, a queda foi de 13,5% em termos reais, como pode ser observado no Gráfico 1. No primeiro semestre de 2019, o contingenciamento retirou 5% do que foi autorizado inicialmente.
Quando da aprovação da Emenda 95, conhecida como Teto dos Gastos, houve a promessa de que os setores de Saúde e de Educação não seriam afetados. Mas não é o que os números dizem no caso do MEC.
No âmbito da Função Educação, algumas ações foram zeradas, sendo 100% contingenciadas. Se tal medida não for indicador de que não realizarão as políticas, que outros sinais precisarão dar para que se entenda quais as intenções do governo? Vejamos alguns exemplos.
A ação “Apoio à Infraestrutura da Educação Básica”, direcionada para implantação e adequação de estruturas esportivas escolares, é um exemplo de contingenciamento total dos recursos autorizados. De acordo com o IBGE, em apenas 27% das cidades brasileiras escolas possuem campo de futebol, ginásio, pista de atletismo ou piscina. O Brasil sediou as Olimpíadas com apenas 43 pistas de atletismo e 265 piscinas em escolas, em todo o país. Além disso, as desigualdades regionais ficam explícitas, visto que a maior parte dos equipamentos se concentra nos estados de Santa Catarina, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Ceará e Paraná. Nos estados de Rondônia, Amapá, Pernambuco e Mato Grosso do Sul, não há escolas estaduais com equipamentos esportivos. Apesar disso 100% dos recursos estão contingenciados.
Outra ação com 100% de corte é a “Concessão de Bolsa Permanência no Ensino Superior”. O governo já havia enviado orçamento zerado para esta ação, contudo, houve um esforço no Congresso de se fazer emenda do relator e de comissão para garantir a permanência de indígenas, quilombolas e estudantes de baixa renda nas universidades, que teve todo o recurso suspenso. Como este é um gasto necessário todos os meses, na prática estas bolsas não atenderão ao seu público. O próprio portal do MEC diz que o programa foi instituído para minimizar as desigualdades sociais, étnico-raciais e contribuir com a permanência e diplomação de estudantes em situação de vulnerabilidade socioeconômica. O fato de não se destinar recursos para a ação é um sinal de que as desigualdades vão se ampliar e isso não é preocupação dessa gestão.
As demais ações com 100% de corte relacionam-se com os exames de avaliação da educação básica, Educação de Jovens e Adultos (EJA), educação profissional, dentre outras. Ou seja, nem aquilo que o governo diz priorizar está isento de cortes, como educação profissional, por exemplo. Além disso, cortar recursos da EJA, que é a parte mais fragilizada da educação, é vulnerabilizar ainda mais os vulneráveis, pois sem conclusão da educação básica, a maioria entra para as estatísticas do desemprego.
Casa da Mulher Brasileira teve 54% dos recursos contingenciados
O Inesc vem denunciando há algum tempo o progressivo desmonte das políticas para as mulheres em função de diversas medidas de austeridade, como contingenciamentos e a Emenda Constitucional 95, que congelou as despesas da União por 20 anos. Assim, entre 2015 e 2018, os gastos da Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres (SPM) caíram 65% em termos reais.
Em 2019, foram autorizados R$ 48,2 milhões para o Programa “Políticas para as Mulheres: Promoção da Igualdade e Enfrentamento à Violência”, praticamente metade do que foi alocado em 2017. Destes, R$ 21,5 milhões seriam para o Disque 180, mas foram cortados R$ 4,5 milhões. Esse programa – que é a principal porta de entrada da política de enfrentamento a violência, o número para o qual todas as brasileiras podem ligar em caso de sentir-se ameaçada ou de ser agredida – teve uma redução de 20,7%.
Para se ter uma ideia comparativa, em 2017 o recurso autorizado para o Disque 180 foi de R$ 36,4 milhões e o executado de R$ 31,7 milhões, o que corresponde a 87% de execução. Em 2017 foi autorizado o montante de R$ 39,4 milhões e executado R$ 30,8 milhões (78% de execução). Em 2018 nada foi autorizado, nem gasto.
O Inesc também divulgou que o Relatório Balanço Disque 180, elaborado pelo Governo, não está mais disponível ao público. Na pesquisa que realizamos em 2017, onde citamos o Balanço de 2016, observamos que, em 10 anos, foram 5 milhões de acessos ao serviço, com uma média anual de 500 mil ligações. Tais dados revelam a importância do programa para combater a violência contra as mulheres.
Em relação à Casa da Mulher Brasileira, equipamento fundamental para abrigar mulheres em situação de risco, foram contingenciados 54% dos recursos, já insuficientes, de R$ 1,3 milhão: hoje, são sete unidades construídas que necessitam de verbas para manutenção, e apenas duas em funcionamento, de uma promessa de 27 casas, uma por Estado, presente no PPA – Plano Pluri Anual 2016-2019.
Orçamento Indígena
No que tange aos povos indígenas, as principais ações do programa “Proteção e Promoção dos Direitos dos Povos Indígenas” também sofreram com os contingenciamentos, à exceção da ação destinada à promoção da saúde indígena – que, no entanto, tem passado por outra ordem de desmontes. Tais cortes orçamentários compõem o quadro de etnocídio em curso no país: eles atingem tanto a garantia aos direitos territoriais indígenas como esvaziam políticas de participação, de incentivo à autonomia econômica das comunidades, preservação do patrimônio cultural indígena, além de políticas elaboradas para grupos específicos como os grupos indígenas de recente contato.
Nesse contexto, uma política que sofreu com o contingenciamento foi a “Preservação Cultural dos Povos Indígenas”, destinada a salvaguardar o patrimônio cultural indígena por meio de pesquisas, divulgação e documentação. O corte atingiu 34% de seu orçamento autorizado. Essa política vem apresentando queda constante de seus gastos desde 2016 (ver Gráfico 3). Na ação “Direitos Sociais e Culturais e a Cidadania”, relacionada a instâncias de monitoramento, acompanhamento e participação nas políticas voltadas aos povos indígenas, o corte foi de 31%.
Nessa ação, chama atenção a retirada de R$ 161 mil dos parcos R$ 475 mil autorizados para o Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI), principal órgão consultivo das políticas públicas para os povos indígenas, cujas reuniões estão suspensas desde 2016. Junto com as demais instâncias participativas, o conselho sofreu recentemente o ataque do governo Bolsonaro por meio do Decreto 9.759/19, que extinguiu os órgãos colegiados da esfera pública. A liminar concedida pelo STF no dia 13 de junho suspendeu o efeito da lei para instâncias citadas por lei, como é o caso CNPI, porém seu esvaziamento segue em curso com o minguar de recursos.
A ação “Gestão Ambiental e Etnodesenvolvimento” sofreu contingenciamento de 35%. Trata-se de ação relacionada à concretização da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (PNGATI), alicerçada nas reivindicações indígenas e que promove autonomia produtiva para as comunidades em consonância com suas tradições culturais. É também com recursos desta ação que a FUNAI deve fazer o acompanhamento do componente indígena no licenciamento ambiental. O Plano Orçamentário destinado a esse acompanhamento teve 47% de seus recursos contingenciados.
Os cortes de recursos não surpreendem, pois o atual governo advoga sem pudores a expansão do agronegócio e da mineração em terras indígenas. A fragilização de projetos econômicos alternativos como os promovidos pela PNGATI e dos procedimentos de licenciamento de empreendimentos são imprescindíveis para esse projeto.
Ações importantes para as garantias territoriais indígenas também sofreram cortes. A ação “Proteção aos povos indígenas de recente contato” foi contingenciada em 34%, consolidando o desmantelamento da antes admirada política brasileira de proteção aos povos de recente contato e em isolamento voluntário. A falta de investimento em tais políticas tem aumentado as invasões de garimpeiros e madeireiros a esses territórios, muitas vezes resultando em mortes por doenças e assassinatos de grupos indígenas.
Da mesma forma, é preocupante o corte de 38% na ação “Regularização, Demarcação e Fiscalização de Terras Indígenas” em um momento em que os conflitos fundiários e os ataques aos territórios indígenas atingem níveis alarmantes. Os cortes orçamentários caminham junto com as iniciativas em curso de desmontar a demarcação e fiscalização das Terras Indígenas, tentando transferi-las para órgão com interesses claramente opostos à sua realização, o MAPA. Tais iniciativas ocorreram primeiramente por meio da MP 870 e, depois de sua derrota no congresso, pela edição de nova medida provisória. Além disso, se olharmos a execução financeira das ações agora contingenciadas, vemos que há necessidade de recomposição orçamentária para que elas saiam do papel e que, apesar do breve respiro de 2018, a opção pelo contingenciamento prejudicará ainda mais a necessária recuperação da Funai.