Desde o dia 9 de agosto, acontece em Brasília a I Marcha das Mulheres Indígenas, cujo lema, “Território: nosso corpo, nosso espírito”, sintetiza as principais bandeiras dos povos originários do país, a partir da perspectiva das mulheres. A marcha conta com a participação de cerca de 2 mil mulheres de todo Brasil, e é resultado de um longo processo de articulação e mobilização das indígenas dentro de suas comunidades e do movimento.
Se a luta pelo reconhecimento enfrenta desafios no âmbito das próprias organizações e comunidades, as mulheres que essa semana tomam Brasília têm também enfrentado os crescentes índices de violência infligidos às terras indígenas. Ataques às comunidades vem se multiplicado, guiados pela sanha de quem vê nos territórios não corpos e espíritos, mas mercadoria. O rastro de morte do capital se espalha com a anuência, estímulo e aprovação do governo brasileiro – que põe em dúvida assassinatos, desdenha pesquisas, incentiva a violação de direitos conquistados, e ofende a autonomia dos povos originários em nome de um projeto econômico desastroso não apenas para os indígenas, mas para todas nós e para o próprio planeta.
Da mesma forma, também as mulheres estão na mira do Brasil do bolsonarismo: a negação do debate de gênero é uma das plataformas políticas do governo, no mesmo país em que 67 % das agressões físicas acontecem contra mulheres.
Mais do que “cortinas de fumaça”, tais discursos estão bem casados com os desmontes das políticas públicas, em curso há alguns anos e agravado nos últimos oito meses. Como escrevemos em outro artigo, as políticas de garantia de direitos sofreram especialmente com os contingenciamentos do governo federal. Por exemplo, as políticas da área de “Direitos da Cidadania” tiveram 27% dos seus recursos contingenciados – área que abrange, entre outras, políticas relacionadas à garantia dos direitos das mulheres e dos povos indígenas.
Cortes na política indigenista
Se entendemos os cortes orçamentários dentro do contexto das políticas indigenistas, o quadro se torna ainda mais grave. Segundo o Sistema Integrado de Planejamento e Orçamento (SIOP), há apenas um Plano Orçamentário (PO) que prioriza explicitamente a dimensão de gênero e da garantia dos direitos das mulheres indígenas dentro do Programa 2065 (Promoção e Proteção dos Direitos dos Povos Indígenas). Isso demonstra a invisibilidade da pauta enfrentada há longa data nas próprias instâncias indigenistas.
Além disso, esse mesmo Programa vem sofrendo há anos com a falta de investimentos (gráfico a seguir): com as dotações iniciais e orçamentos autorizados já em queda desde 2014, a execução orçamentária permanece baixa desde então, oscilando entre os 5 e 6 milhões de reais, salvo pequena exceção em 2016. Os cortes orçamentários atuais, assim, vêm para terminar de sufocar os parcos esforços de incluir a luta das mulheres indígenas nas políticas públicas federais.
Enquanto o Estado revela sua incapacidade de garantir direitos, a I Marcha das Mulheres Indígenas mostra sua urgência nas ruas de Brasília, desafiando ao mesmo tempo às instância de poder e ao próprio movimento indígena. Em evento histórico, explicita que não há contradição entre lutar pelos direitos específicos das mulheres e lutar pelos direitos dos povos indígenas. Desmonta a narrativa que trata os indígenas em seus territórios como animais enjaulados, explicitando a prisão que o capital nos impõe em um modelo perverso de destruição. Acende, por fim, as faíscas de esperança diante da necropolítica de nossos tempos, quando ecoam as vozes alertas na Esplanada: tem gente que chegou há pouco tempo e tem data marcada para sair. Os povos indígenas, esses estão aqui há muito mais de 500 anos.