Nas últimas semanas, o orçamento público movimentou o Planalto e o Congresso Nacional. No centro do debate estava o veto do presidente Bolsonaro às mudanças realizadas pelo Legislativo na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2020, que obrigavam o governo federal a liberar os recursos para emendas parlamentares, antes submetidos às negociações com o Executivo.
Os ânimos se acirraram com a declaração do general Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência, afirmando que os parlamentares estão fazendo “chantagem” com o governo. Além disso, manifestações contra o Congresso, apoiadas pelo presidente Bolsonaro, foram convocadas para o próximo dia 15 de março (leia a nota do Inesc em repúdio).
Historicamente, as emendas parlamentares, que são uma parte do orçamento federal destinado ao Legislativo, foram utilizadas pelo Executivo para a compra de votos no parlamento. Para citar um exemplo, um dia antes da votação da previdência, em 2019, o governo federal liberou 4,3 bilhões em emendas. A impositividade das emendas de comissão e do relator-geral representam R$ 30 bilhões do orçamento que passariam às mãos do Legislativo, diminuindo o espaço do Executivo para realizar tais manobras políticas.
Essa batalha entre os poderes pelo orçamento acarreta discussões profundas sobre a política brasileira, como a questão da separação de poderes. Contudo, o que não tem aparecido nos debates é o papel fundamental do orçamento público: a garantia de direitos. O Inesc defende que o orçamento público, longe de ser um mero palco da disputa política entre Executivo e Legislativo, deve refletir a diversidade da população brasileira e garantir qualidade de vida para toda a população, especialmente em seus setores mais vulneráveis.
O processo de apropriação do orçamento pelo Legislativo
Em cada Lei Orçamentária Anual (LOA), os congressistas, por meio das emendas parlamentares, garantem uma parcela do orçamento para executar programas e ações presentes na LOA, de acordo com seus interesses. Todos os parlamentares possuem o mesmo valor para execução de emendas.
Em sua criação, essas emendas possuíam caráter autorizativo, como a princípio é o conjunto do nosso orçamento público. Nos últimos anos, porém, o Legislativo foi se apropriando do orçamento da União, ao transformar o caráter das emendas parlamentares de autorizativo para obrigatório, independente das negociações com o Executivo. Em 2015, o Congresso aprovou uma emenda na Constituição (86/2015) tornando obrigatória a execução das emendas individuais, no valor de 1,2% da receita corrente líquida (RCL)[1] do ano anterior. Metade desse valor, porém, deve ser direcionado à área da Saúde, com objetivo de garantir o gasto mínimo constitucional nessa área.
Em 2019, o Legislativo estabeleceu, por outra emenda constitucional (nº 100/2019), que as emendas de bancadas também deveriam ser obrigatoriamente pagas. O valor fixado a partir de 2021 é de 1% da RCL de 2019, corrigido anualmente pela inflação – para 2020, o valor é de 0,8% da RCL. Outra movimentação importante em 2019 foi a aprovação da Emenda Constitucional (105/2019), que autorizou a transferência direta a estados, municípios e ao Distrito Federal de recursos de emendas parlamentares individuais, flexibilizando e facilitando o acesso a esses montantes.
Por fim, ao aprovar a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) em 2020, o Congresso Nacional estendeu, no final do ano passado, essa obrigatoriedade de execução para todas as emendas parlamentares, incluindo as do relator-geral e as de comissão. Além disso, a mudança fornece um tratamento particular às emendas do relator-geral, que terão de ser empenhadas em no máximo três meses.
Entendendo a disputa pelo orçamento impositivo
A partir dessas ações transcorridas nos últimos cinco anos, aumentou o valor gasto com emendas parlamentares, e a aprovação da LDO 2020 seria a “vitória final”, pois as emendas de relator-geral são as de valor mais expressivo.
Porém, com esse último movimento do Congresso na LDO 2020, o Executivo se mobilizou, vetando a mudança legislativa e alegando que o Congresso estaria controlando parcela demasiada do orçamento público, e, assim, diminuindo o poder do Executivo em definir os gastos do Orçamento da União.
Para além de uma disputa política pontual, esse debate nos leva a questionamentos mais profundos sobre o papel do orçamento público na economia e na promoção de gastos sociais e direitos humanos. Veremos alguns deles a seguir.
Despesas obrigatórias são sempre negativas?
As despesas do governo se dividem entre obrigatórias e discricionárias. As obrigatórias são aquelas que devem ocorrer independente das vontades do governo, sob risco do Executivo ser processado judicialmente ou ser alvo de um processo de impedimento. O gasto com a Previdência Social e o pagamento de salários aos funcionários públicos são alguns dos exemplos. Receitas vinculadas, por sua vez, ao destinarem recursos a gastos específicos, também são consideradas gastos obrigatórios.
As despesas discricionárias, por sua vez, são aquelas em que o governo tem margem de manobra, podendo alocar recursos anualmente a partir da LOA. Todos os investimentos, por exemplo, são despesas discricionárias – assim como eram todas as emendas antes de 2015. Esse tipo de despesa é o único que pode ser contingenciado, isso é, congelado ao longo do ano pelo Executivo para o ajuste às receitas disponíveis ou para o cumprimento de metas fiscais.
Segundo o Instituto Fiscal Independente, 94% do orçamento para 2020 é de despesas obrigatórias, sobrando apenas 6% (R$ 126,1 bilhões) para serem manejados. Além disso, os R$ 126,1 bilhões contém um volume relevante de gastos predestinados, como os alocados à Saúde nas emendas individuais. É por isso que os R$ 30 bilhões das emendas do relator-geral, que a partir de 2020 passariam a ser gastos obrigatórios, representam tanto para o orçamento público.
O argumento que mais aparece na mídia e na fala dos políticos é a negatividade dessa rigidez orçamentária, que impediria o gasto com investimentos e a imposição das vontades do executivo na alocação orçamentária. De fato, a retomada dos investimentos públicos é fundamental para o crescimento econômico, e dado que a participação de despesas obrigatórias em relação ao Produto Interno Bruto (PIB) saltou de 89% para 95,4% entre 2010 a 2018, temos um movimento crescente no sentido dessa rigidez.
Esse discurso, porém, abre espaço para medidas radicais e contrárias à justiça fiscal[2]. Isso porque o objetivo primordial do governo com a manutenção das despesas discricionárias é a utilização dos contingenciamentos para o cumprimento das metas fiscais do governo, como o Teto dos Gastos, e não a garantia de direitos.
Por exemplo, as soluções apontadas pelas PECs enviadas por Guedes ao Senado são reducionistas e mantém os privilégios da elite burocrática brasileira. A extinção dos fundos pode ser o caso mais emblemático: em vez de uma revisão abrangente desses recursos, em prol da manutenção daqueles fundamentais para a garantia de direitos, o proposto é a extinção total de todos os fundos não-constitucionais. A produção audiovisual e o desenvolvimento científico e tecnológico são algumas das áreas que serão fortemente afetadas pela extinção de seus respectivos fundos, prejudicando os direitos à cultura e à educação.
As obrigações e vinculações orçamentárias são, em parte, conquistas históricas em prol da garantia de direitos. Os mínimos constitucionais para a saúde e a educação e a criação de contribuições para a salvaguarda da Seguridade Social[3] são reivindicações da sociedade que agora estão ameaçadas pelo discurso simplório de necessidade de redução das despesas obrigatórias.
São necessários, portanto, debates aprofundados sobre o que deve ser gasto obrigatório no orçamento público, com foco na garantia de direitos. Além disso, precisamos de mecanismos eficazes de participação popular, com objetivo de garantir que as prioridades da sociedade estejam no orçamento público, independente de quem o execute, seja Executivo ou Legislativo. No caso específico das emendas parlamentares, portanto, devemos nos perguntar se a obrigação de execução das emendas parlamentares é positiva ou não na ótica da garantia de direitos.
Qual deve ser o papel das emendas parlamentares?
Tradicionalmente, as emendas parlamentares surgiram da necessidade dos deputados e senadores garantirem recursos para seus redutos eleitorais. Os congressistas defendem as emendas ao analisá-las como polos geradores de resultados na ponta. Seu novo caráter impositivo seria, portanto, uma evolução federativa, ao retirar o efeito “toma-lá-dá-cá” das emendas e fortalecê-las como gastos prioritários e obrigatórios do governo federal.
A defesa das emendas parlamentares abre, ainda, uma discussão sobre a divisão de poderes. Adotamos atualmente no Brasil o sistema presidencialista, que considera que o Executivo é, por essência, o executor de políticas públicas, após a aprovação de seus gastos pelo Legislativo. Sendo assim, a imposição das emendas parlamentares seria um desvio dessa divisão, pois o Legislativo passa a deter um controle expressivo de recursos.
Por outro lado, essa movimentação pode ser interpretada como um encolhimento das atribuições do Legislativo, pois direcionaria os esforços parlamentares apenas para a execução de suas emendas. Na análise do consultor do senado Fernando Moutinho: “o Congresso Nacional deveria estar decidindo se vai alocar R$ 5 bilhões para o submarino nuclear ou R$ 2 bilhões para contribuições às Nações Unidas. Se ele se autolimita às emendas, está abrindo mão de decidir sobre 90% para ficar com 1%. Não tem como não achar que tem uma motivação clientelista”.
No foco na garantia de direitos, o ponto principal que devemos analisar, porém, é como as emendas estão sendo gastas. De acordo com matéria do jornal Os Fatos, de 2017 a 2019, a maioria das verbas foram alocadas em saúde, urbanismo, educação, transporte e segurança pública. O “Fortalecimento do SUS” foi o programa orçamentário que recebeu o maior valor em emendas nesse período. Um relatório recente do TCU, entretanto, analisou as emendas entre 2014 e 2017 e concluiu que os recursos não contribuem para melhorar a vida das pessoas, pois as necessidades reais da população são ignoradas em prol de financiamentos a demandas imediatas e a eventos e outras ações de visibilidade do parlamentar. Nesse sentido, o aumento do poder do Congresso na alocação de recursos não seria positivo para a garantia de direitos.
Deixar toda a decisão de gasto para o Executivo, porém, não é a solução para a ineficácia do gasto das emendas parlamentares. O Legislativo tem um poder de representatividade próprio, que deve aparecer nas decisões de gasto, e nada garante que o gasto de um poder é melhor que o do outro. É necessária, desse modo, uma revisão radical das nossas políticas fiscais, em prol da justiça social e da garantia de direitos humanos.
Para além das emendas: como direcionar o orçamento para a garantia de direitos?
A briga por uma parcela do orçamento pequena, mas crucial, para além das questões discutidas aqui, reflete uma lógica do nosso sistema político brasileiro onde o povo é afastado das grandes decisões. Não temos, apesar das demandas e lutas feitas pela sociedade civil, espaços institucionais de participação na definição do orçamento. Além disso, estamos hoje em um cenário de auto amarras, onde as três regras fiscais – Teto dos Gastos, Meta de Resultado Primário e Regra de Ouro – são tão intrínsecas à gestão da política fiscal que praticamente não são questionadas.
O Executivo e o Legislativo brigam por fatias cada vez menores do orçamento públicos, pois sabem que, devido às regras fiscais, o montante de recursos disponíveis para as despesas discricionárias é anualmente reduzido. Não existe espaço para uma política fiscal propositiva, que ataque a crise econômica brasileira e garanta os recursos para gastos sociais. Estamos há cinco anos nos aprofundando no receituário de austeridade, na esperança que o mercado responda à retirada do Estado da vida das pessoas. Os recursos são direcionados à manutenção de privilégios e ao pagamento de juros, com parte do que resta sendo usado para garantir a existência de um sistema político que não representa a diversidade e a riqueza que é o povo brasileiro.
Portanto, a questão não é, como a grande mídia tenta passar, quem tem razão: Executivo ou Legislativo. Nenhum dos dois tem. O que precisamos ter como estratégia é a fundação de um novo sistema político que enfrente todas as formas de desigualdades. Precisamos de um sistema político onde realmente o povo seja o poder e que possa exercer a sua soberania. Sem isso e sem o rompimento com uma política econômica destruidora da soberania nacional, vamos ficar vendo uma eterna briga das elites por um recurso que pertence, em essência, à população.
É por isso que o Inesc propõe, em sua Metodologia Orçamento e Direitos, uma mudança radical em como enxergamos o orçamento público. Precisamos que o orçamento seja financiado com justiça social; que realize direitos de maneira progressiva e com o máximo de recursos disponíveis; e que tenha como princípios fundamentais a não-discriminação e a participação social. Nada além de vontade política impede este olhar ao orçamento público. Para isso, todas as amarras e correntes precisam ser rompidas.
[1] Receita corrente líquida é o somatório das receitas tributárias de um Governo, referentes às contribuições, patrimoniais, industriais, agropecuárias e de serviços, deduzidos os valores das transferências constitucionais.
[2] Justiça Fiscal pode ser entendida aqui como a promoção de justiça por meio da política de gasto governamental e de arrecadação tributária.
[3] A Seguridade Social é composta pela Previdência Social, Assistência Social e Saúde. Ela é financiada principalmente pela Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (COFINS).
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