10 anos da Lei de Acesso à Informação: as barreiras ao direito de se informar se mantém, como mostram os incentivos fiscais brasileiros - INESC

10 anos da Lei de Acesso à Informação: as barreiras ao direito de se informar se mantém, como mostram os incentivos fiscais brasileiros

06/10/2021, às 11:12 (updated on 12/08/2025, às 11:01) | Tempo estimado de leitura: 13 min
Por Cássia Lopes, estagiária, e Livi Gerbase, assessora política do Inesc
Incentivos fiscais federais ainda são protegidos por sigilo fiscal, apesar da LAI colocar que a publicidade deve ser a regra. É no sentido de superar as barreiras impostas por instituições públicas e enfatizar a necessidade de expandir a transparência que lançamos a Campanha #SóAcreditoVendo.
Marcelo Camargo/Agência Brasil

Em novembro deste ano a Lei de Acesso à Informação (LAI) completará 10 anos de sua promulgação. A norma regulamentou o direito de acesso à informação previsto na Constituição Federal e, de lá para cá, vem estimulado a participação popular e abrindo espaço para o controle social de políticas públicas.

O texto normativo da LAI determina, em seu art. 3º, que os procedimentos de acesso à informação devem seguir o princípio constitucional da publicidade, como regra. Este princípio é o pilar fundamental da ordem democrática, pois tanto é uma obrigação do Estado viabilizar aos indivíduos maior participação na condução das políticas públicas, como é expresso o direito do cidadão de se informar e ser informado recebendo dos órgãos públicos informações de seu interesse particular ou de interesse coletivo ou geral. A única hipótese em que a transparência pode ser relativizada é quando o sigilo demonstra-se imprescindível à segurança da sociedade e do Estado, nos termos do art. 5º, XXXIII, da Constituição Federal. Isto é: o sigilo deve ser a exceção!

A LAI trouxe elementos positivos, mas ainda falta muito para ela ser de fato efetiva. É no sentido de superar as barreiras impostas por instituições públicas e enfatizar a necessidade de expandir a transparência que lançamos, recentemente, a Campanha #SóAcreditoVendo. A campanha defende a  transparência dos incentivos fiscais por meio da aprovação e sanção do PLP 162/2019, uma iniciativa do Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC), ACT Promoção da Saúde, FIAN Brasil e Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos, com o apoio da Purpose. Até o momento, a campanha conta com a adesão de mais de 50 organizações da sociedade civil.

Nossa Constituição Federal prevê que o Estado pode abdicar do seu direito de tributar em situações específicas, por meio da implementação de mecanismos de exceção às regras e princípios do direito tributário. Essas exceções operam no campo das amplas possibilidades de renúncias de receitas que compõem benefícios de natureza financeira, tributária e creditícia, de acordo com o previsto no art. 165, § 6º, da Constituição Federal. Essas renúncias são políticas públicas tributárias realizadas por meio de gastos públicos indiretos que beneficiam algumas poucas empresas, devendo, em tese, incentivar boas práticas em determinadas atividades ou setores econômicos. O Programa Simples Nacional, que simplifica e reduz a carga tributária das Microempresas e Empresas de Pequeno Porte, é um exemplo de um programa de forma geral bem avaliado pela população.

Mas qual o problema dos incentivos fiscais?

No Brasil, país onde apenas seis pessoas possuem riqueza equivalente à dos 50% mais pobres da população, os incentivos fiscais aprofundam ainda mais a desigualdade social. Segundo estimativa  da RFB, em 2021 o governo terá gastado a importância de R$ 307,9 bilhões em Gastos Tributários. Esse valor é 11,5 vezes maior que o Programa Bolsa Família e representa 20,71% da arrecadação total do Governo Federal estimada para o ano.

Na Lei de Responsabilidade Fiscal é explícita a preocupação com a transparência dos incentivos, assim como o equilíbrio das contas públicas, cumprimento de metas e obediência as condições no que tangem as renúncias de receitas. No art. 1º, § 1º, temos:

A responsabilidade na gestão fiscal pressupõe a ação planejada e transparente, em que se previnem riscos e corrigem desvios capazes de afetar o equilíbrio das contas públicas, mediante o cumprimento de metas de resultados entre receitas e despesas e a obediência a limites e condições no que tange a renúncia de receita, geração de despesas com pessoal, da seguridade social e outras, dívidas consolidada e mobiliária, operações de crédito, inclusive por antecipação de receita, concessão de garantia e inscrição em Restos a Pagar. (LC 101/2000, art. 1º)

 

Em resumo: a renúncia fiscal não pode ser considerada sigilosa!

 A Receita Federal não divulga os beneficiários dos incentivos fiscais e vem, recorrentemente, defendendo a tese de que esses benefícios estariam sujeitos ao sigilo fiscal previsto no art. 198[1], caput, do Código Tributário Nacional. Entretanto, este entendimento não se sustenta, pois vai contra o princípio da publicidade e impede o controle democrático, principalmente por se tratar de recursos públicos, gastos indiretos, portanto, passíveis de serem informados à sociedade.

 A norma que regulamenta o sigilo fiscal é a Portaria de nº 2344 da Receita Federal, sendo as informações protegidas[2] são: as relativas a rendas, rendimentos, patrimônio, débitos, créditos, dívidas e movimentação financeira ou patrimonial; as que revelem negócios, contratos, relacionamentos comerciais, fornecedores, clientes e volumes ou valores de compra e venda; e as relativas a projetos, processos industriais, fórmulas, composição e fatores de produção. Essa regulamentação apresenta um rol exaustivo de possibilidades e, em nenhuma delas, consta a informação de que benefícios tributários ou incentivos fiscais estariam ali incluídos.

A Controladoria Geral da União – CGU, alinhada com o texto constitucional, concedeu, em pelo menos duas oportunidades, determinações em favor da divulgação de informações sobre imunidade tributária e renúncia fiscal. Em 19 de março de 2014, no processo 16853.007356/2012-15, determinou que a Receita Federal e o Ministério da Fazenda-Economia divulgassem informações sobre pessoa jurídica. A ementa do processo explica a necessidade de conceder “publicidade”, como regra, não como exceção, mesmo quando o assunto é a imunidade de tributos. Em 11 de setembro de 2018, no processo 16853.005745/2018-00, a CGU chegou a essa mesma conclusão e ordenou que ao Ministério da Economia que prestasse informações sobre renúncias fiscais separadas por empresa.

Em 2015, o Supremo Tribunal Federal (STF) se manifestou a favor do acesso aos dados sobre gastos tributários pelo Tribunal de Contas da União (TCU), entendendo que “o sigilo de informações necessárias para a preservação da intimidade é relativizado quando se está diante do interesse da sociedade de se conhecer o destino dos recursos públicos”.

No âmbito do julgamento da ADPF 129/DF, o Ministro Edson Fachin consignou que “a publicidade é a regra, o sigilo, a excepcional exceção”.

 

Quais as consequências desses altos incentivos e a falta de sua transparência?

Essa prerrogativa de conferir tratamento tributário desigual entre os contribuintes, deveria estar alinhada aos objetivos fundamentais da República: constituição de uma sociedade livre, justa e solidária, garantia do desenvolvimento nacional, erradicação da pobreza, redução das desigualdades sociais e regionais e promoção do bem-estar de todos, independente de quaisquer formas de discriminação. Mas na prática isso não se verifica, pois estes incentivos são concedidos com pouquíssima transparência e sem monitoramento. Tal situação cria privilégios que aumentam as injustiças de nossa política tributária

Um exemplo deste privilégio: Enquanto a Lei Orçamentária de 2021 não reservou recursos para combater a pandemia da Covid-19 e cortou verbas  importantes das áreas de saúde, educação, meio ambiente e da política indigenista, os incentivos fiscais seguem sem limite de prazo e nem teto fiscal.  De acordo com cálculos do Inesc, feitos a partir do Demonstrativo de Gastos Tributários de 2021 da Receita Federal, 74,32% dos Gastos Tributários vigentes hoje não possuem prazo para expirar, traduzindo-se em uma prática irregular e contrária a Lei de Responsabilidade Fiscal (LC 101/2000), pois em uma leitura literal do caput do art. 14 os incentivos fiscais não poderiam ter prazo de vigência superior a 3 anos.

Outro problema é referente ao financiamento das políticas públicas. O governo isenta, por exemplo, uma empresa de refrigerantes de pagar impostos importantes, como o Imposto de Renda de Pessoa Jurídica (IRPJ), as Contribuições Sociais (Pis/Cofins), o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), Imposto de Importação (II) e Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI). Grande parte desses impostos são fundamentais para o financiamento da educação pública e da seguridade social. Logo, é necessário que as contrapartidas estejam em evidência, para que se possa avaliar se a empresa está gerando, de fato, mais empregos, ou incrementando no crescimento econômico da região ou do país.

Por isso, é muito importante que haja transparência. É preciso, também, que os valores que as empresas deixam de recolher quando recebem isenção de impostos sejam de conhecimento público, de modo que os reais ganhos para sociedade sejam avaliados e as injustiças possam ser combatidas.

Queremos que toda a população esteja apta a exercer o controle democrático que nos é garantido no texto da Constituição da República Federativa do Brasil e na Lei de Acesso à Informação para, no âmbito das renúncias de receitas, incentivos e benefícios fiscais, avaliá-los e reformá-los em prol da justiça fiscal e social.

Considerando a crise que o Brasil enfrenta, a transparência dos recursos públicos é tema importante e urgente, queremos a aprovação e sanção do PLP 162/2019 que permitirá que a Fazenda Pública informe quais pessoas jurídicas são beneficiárias das políticas públicas de renúncias tributárias, incentivos e benefícios fiscais. O parecer do projeto foi aprovado na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania – CCJC no dia 15/07/2021 e o próximo passo será a análise junto ao Plenário da Câmara dos Deputados.

Assine o manifesto #SóAcreditoVendo e vamos, juntos, cobrar mais transparência e monitoramento dos incentivos fiscais!

 

 

[1]  CTN, art. 198. Sem prejuízo do disposto na legislação criminal, é vedada a divulgação, por parte da Fazenda Pública ou de seus servidores, de informação obtida em razão do ofício sobre a situação econômica ou financeira do sujeito passivo ou de terceiros e sobre a natureza e o estado de seus negócios ou atividades. (Redação dada pela Lcp nº 104, de 2001)

[2] RFB, Portaria nº 2344/2011 – Art. 2º São protegidas por sigilo fiscal as informações sobre a situação econômica ou financeira do sujeito passivo ou de terceiros e sobre a natureza e o estado de seus negócios ou atividades, obtidas em razão do ofício para fins de arrecadação e fiscalização de tributos, inclusive aduaneiros, tais como: I – as relativas a rendas, rendimentos, patrimônio, débitos, créditos, dívidas e movimentação financeira ou patrimonial; II – as que revelem negócios, contratos, relacionamentos comerciais, fornecedores, clientes e volumes ou valores de compra e venda; III – as relativas a projetos, processos industriais, fórmulas, composição e fatores de produção. Disponível em < http://normas.receita.fazenda.gov.br/sijut2consulta/link.action?visao=anotado&idAto=30552> Acessado em 26/03/2021.

Categoria: ArtigoBlog
Compartilhe

Conteúdo relacionado

  • Foto: Junior Bazek
    Juventudes periféricas do DF vivem com até...
    Uma nova nota técnica do Instituto de Estudos…
    leia mais
  • À margem do orçamento: juventudes periféri...
    Nova nota técnica evidencia como o orçamento público…
    leia mais
  • Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil
    O Plano Nacional de Educação que precisamos
    A Comissão Especial que analisa o novo Plano…
    leia mais
  • Movimentos entregam a Alcolumbre mais de 2 milhões de assinaturas do Plebiscito Popular. Foto: Assessoria PT
    Reforma da Renda é um avanço, mas a justiç...
    Ontem (05/11), o Senado Federal aprovou a reforma…
    leia mais
  • Foto: Joédson Alves/Agência Brasil
    PLOA 2026: avanços para quilombolas limita...
    O Projeto de Lei do Orçamento 2026 (PLOA)…
    leia mais

PLOA 2026: avanços para quilombolas limitados pelo orçamento

30/10/2025, às 10:34 | Tempo estimado de leitura: 6 min
Por Carmela Zigoni, assessora política do Inesc
Carmela Zigoni, do Inesc, analisa impactos do arcabouço fiscal no orçamento voltado a quilombolas
Foto: Joédson Alves/Agência Brasil

O Projeto de Lei do Orçamento 2026 (PLOA) enviado pelo governo ao Congresso Nacional prevê recursos específicos para a promoção dos direitos das comunidades quilombolas. No que se refere à principal política pública para este público, regularização fundiária, houve redução no comparativo com a PLOA 2025: de R$ 103,6 milhões para R$ 92,3 mihões, uma queda de  11%. No entanto, este valor ainda pode aumentar  uma vez que o autorizado em 2025 foi de R$ 108,6 milhões,  R$ 5 milhões a mais que a proposta do Executivo  para aquele ano.

Aquém do necessário

Esses valores, no entanto, estão muito aquém do que seria uma política pública real de titulação dos territórios quilombolas, que aguardam desde a Constituição de 1988 pela regularização de seus territórios. Atualmente, são 345 processos abertos junto ao INCRA, sendo que o atual governo publicou 32 decretos de regularização, 4 deles de titulação total. A Fundação Cultural Palmarescertificou 4.171 mil comunidades no Brasil. De acordo com a ONG Terra de Direitos, em levantamento publicado em 2023, no ritmo de titulações que precedeu aquele ano, o Brasil demoraria mais de 2 mil anos para titular todos os territórios quilombolas.

Se considerarmos os vultosos recursos destinados ao agronegócio, na casa dos bilhões de reais, vê-se como a estrutura das políticas públicas pensadas para o campo não priorizam a reparação histórica necessária e reconhecida constitucionalmente para essas populações, nem o seu papel crucial para a agricultura familiar,  a preservação ambiental e o combate às mudanças climáticas. Ao mesmo tempo, iniciativas em âmbito estadual tentam facilitar a aquisição de terras devolutas para latifundiários, como é o caso de São Paulo, estado que tem 56 comunidades certificadas e 27 aguardando regularização.

Para fomento a produção local, essencial para a soberania alimentar e nutricional assim como para a autonomia econômica dessas comunidades, existem três ações orçamentárias que podem impactar as comunidades quilombolas, todas de responsabilidade do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA) . Para Apoio e fortalecimento ao etnodesenvolvimento e ao acesso à terra e ao território dos povos e das comunidades tradicionais e quilombolas (21GB), o PLOA 2025 previu R$ 16 milhões, e o PLOA 2026, R$ 9,8 milhões, uma queda de 38,7%. Para Promoção e fortalecimento da comercialização, do abastecimento e do acesso aos mercados para a agricultura familiar e povos e comunidades tradicionais (21B9), o corte foi maior: de R$ 37,5 milhões na PLOA 2025 para apenas R$ 2,8 milhões na PLOA 2026 (92,5% menos). Para Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER), para todos os públicos, também houve redução de 51%, de R$ 253,1 milhões na PLOA 2025 para R$ 121,6 milhões na PLOA 2026. Em 2024, apenas 0,3% do recurso de ATER foi direcionado especificamente para comunidades quilombolas.

Falta recursos para combater a fome

Para alimentos a serem distribuídos para grupos específicos em situação de insegurança alimentar, entre eles os quilombolas, a proposta do governo para o próximo ano também é inferior à de 2025: de R$ 120,7 para R$ 109 milhões, uma diminuição de 9,6%. Uma redução no combate emergencial à fome só faz sentido se o fomento à produção local, principalmente de alimentos, tiver investimento, e não é o que verificamos com os dados do parágrafo anterior.

No âmbito do Ministério da Igualdade Racial (MIR), estão previstos R$ 42,1 milhões, R$ 4,1 milhões adicionais em relação à  PLOA 2025, porém R$ 3,2 milhões a menos que o orçamento autorizado pelo Congresso Nacional o ano passado. Se a tendência se mantiver, isso significa que há margem para negociar aumento de recursos junto aos parlamentares.

É inegável o compromisso do presidente Lula com as comunidades quilombolas, cujas políticas públicas foram completamente desmontadas nos governos Temer e Bolsonaro. Este compromisso está materializado nos decretos de regularização fundiária publicados em número recorde em relação a governos anteriores, a criação de áreas específicas para gestão dessas políticas no MIR e no MDA, a criação de políticas específicas de saúde e educação, e a retomada de ações integradas como o Programa Aquilomba Brasil e o Quilombo das Américas. No entanto, quando o Arcabouço Fiscal fala mais alto, é no orçamento para este público que identificamos cortes em ações que já estão sub-financiadas há anos. Este caminho, infelizmente, está na contramão da urgente realização dos direitos para as comunidades quilombolas.

Categoria: Inesc
Compartilhe

Conteúdo relacionado

  • Foto: Joédson Alves/Agência Brasil
    PLOA 2026: avanços para quilombolas limita...
    O Projeto de Lei do Orçamento 2026 (PLOA)…
    leia mais
  • Marcha das Mulheres Negras, em Copacabana (2025). Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
    PLOA 2026: o necessário investimento na Ig...
    O orçamento para políticas públicas voltadas especificamente para…
    leia mais
  • Foto: Freepik
    Plebiscito Popular será decisivo na vida d...
    Este ano, diversos movimentos sociais estão organizando um Plebiscito…
    leia mais
  • Foto: Arquivo/Agência Brasil
    Investimentos do governo federal em iguald...
    Os investimentos do governo federal em políticas de…
    leia mais
  • Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil
    Execução orçamentária de novos programas d...
    A execução orçamentária dos novos programas do Ministério…
    leia mais

Cadastre-se e
fique por dentro
das novidades!