Às vésperas da 26ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP 26) organizações da sociedade civil e de povos e comunidades tradicionais, movimentos sociais e pesquisadores do Grupo Carta de Belém (GCB) e mais de 30 outras organizações da sociedade civil brasileira lançam manifesto para a COP 26, que terá lugar entre 31 de outubro e 12 de novembro em Glasgow, no Reino Unido.
A principal expectativa para a COP 26 é que os negociadores concluam o chamado “livro de regras” do Acordo de Paris sobre o Clima (2015), e avancem na aprovação de mecanismos de financiamento climático para os países, o que envolve instrumentos de mercado e não mercado. Esta discussão acontece no âmbito da regulamentação do polêmico artigo 6º. No entanto, historicamente, os instrumentos de mercado têm sido defendidos como medidas de financiamento, mas que na verdade se transformaram em distrações e licenças de poluição no enfrentamento das mudanças climáticas. Além de ineficazes para a redução real de emissões, o mercado de gases de efeito estufa implica, na verdade, novas formas de perdão a grandes poluidores, além de produzirem a submissão dos territórios do Sul global à condição de sumidouros de carbono.
No manifesto, as organizações signatárias apontam preocupações com as florestas, os ecossistemas e a agricultura que nesses instrumentos viram os sumidouros da compensação de emissões (offsets). E, nesse sentido, o conceito de emissões líquidas zero (net zero) que aparece como grande agenda nesta COP, encobre esses mecanismos de compensação (offset) que perpetuam as injustiças e atentam contra a integridade ambiental. “Quando falamos dos mercados de carbono e compensação por offset, estamos falando de mecanismos contábeis de registro e relato de emissões. Por exemplo, uma indústria da Inglaterra, que emite muitos gases de efeito estufa para a atmosfera, pode comprar créditos de carbono no Brasil e, por uma operação contábil, registrar uma porcentagem de redução das emissões. Isso não significa que a indústria implementou processos e tecnologias que, efetivamente, reduzem os níveis de poluição”, explica Tatiana Oliveira, assessora política do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) e integrante do GCB.
Do ponto de vista da eficácia é importante indicar as diversas críticas levantadas de que esses mercados acabam por retardar a adoção de medidas efetivas para alterar o modo de produção e consumo, que seriam essenciais para diminuir a escala e a intensidade da degradação e da poluição das emissões”, explica Larissa Packer, integrante do GCB e advogada do Grain. A visão crítica do Grupo foi expressa em audiência pública sobre o Projeto de Lei nº 528/21, que pretende regulamentar o Mercado Brasileiro de Redução de Emissões (MBRE), em meio a defesa da bancada governista de que o PL avançasse antes mesmo da realização da COP26.
Transformar a natureza num ativo financeiro é uma falsa solução climática
Para além do posicionamento crítico ao mercado de carbono como solução climática, o manifesto ainda aponta que a COP 26 pretende dar um passo definitivo para cristalizar uma arquitetura de governança ambiental global baseada na financeirização da natureza. Segundo o documento, atores como Fundo Monetário Internacional (FMI) e Banco Mundial (BM) estão buscando apoiar essa nova engenharia financeira para viabilizar um novo pacto social verde (Green Deal). Este transforma a terra, o carbono, a biodiversidade e a natureza de forma geral em títulos negociados no mercado financeiro.
O Grupo denuncia, ainda, que o conceito de Soluções baseadas na Natureza (NbS, por sua sigla em inglês), entendida como o uso da tecnologia para reproduzir funções da natureza aplicadas em grande escala: “As NbS fazem com que as ações de mitigação passem a depender prioritariamente do acesso e o controle da terra, em um contexto no qual os mecanismos de governança territorial públicos estão cedendo lugar às lógicas privadas e privatizantes que acirram os conflitos de terra e a violência”, explica o manifesto.
“Para atingir as emissões líquidas zero, países e corporações vêm apostando nas Soluções baseadas na Natureza, que escondem propostas que vão desde a compensação florestal até plantação em grande escala de monoculturas de eucalipto, velhas saídas com novas roupagens”, aponta Maureen Santos, coordenadora do Grupo Nacional de Assessoria da FASE.
A luta contra a mudança climática precisa da participação dos povos indígenas, populações tradicionais, rurais e trabalhadores/as
Os assinantes do manifesto apontam que o debate sobre mudanças climáticas não pode ser reduzido à uma avaliação economicista nem à mera busca de financiamento por fontes privadas, e deve ter como centro o desenvolvimento socioeconômico com justiça ambiental e climática.
Para isso, a discussão precisa incluir amplamente a classe trabalhadora, populações rurais e povos indígenas e tradicionais. São estes os mais afetados pelos efeitos da mudança climática, assim como pelas consequências de uma possível concentração de créditos de carbono nas mãos de setores econômicos altamente poluentes.
O manifesto também aponta verdadeiras soluções e, entre elas, destaca a agroecologia; a implantação de planos de gestão territorial, que reformam a comunalidade e a autonomia dos povos, além de valorizar suas práticas ancestrais de conservação ambiental; e as economias populares e solidárias.
Como consequência das restrições de mobilidade provocadas pela pandemia do coronavírus, os países do Sul global enfrentam maiores dificuldades de participação e isso vai se traduzir numa injusta representatividade na negociação da COP 26, motivo pelo qual o manifesto defende que o evento seja adiado.
“Precisamos respostas urgentes para a crise climática, mas não podemos pensar as transformações necessárias sem garantir uma transição justa para aqueles trabalhadores e trabalhadoras que dela fazem parte. A pouca participação na próxima COP 26 coloca em risco esta e outras questões”, aponta Daniel Gaio, secretário de meio ambiente da CUT.
“A finalização do livro de regras de Paris, durante a COP 26, deverá apontar para um novo paradigma de desenvolvimento que tem o meio ambiente no centro da elaboração política, ao mesmo tempo que aprofundará o processo de financeirização da economia e da vida. Esse quadro trará consequências dramáticas para os povos do campo-floresta-águas. E, por isso, não pode ser decidido sem esses povos”, argumenta Kátia Penha, da coordenação da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ).