A chegada da Covid-19 promoveu profundas mudanças nas formas de trabalho em todo o mundo, inclusive no âmbito do Poder Legislativo brasileiro. Muitos arranjos foram feitos, a fim de que se garantisse o funcionamento da instituição. A necessidade inicial de manter as pessoas em isolamento exigiu uma resposta rápida do Congresso. Assim nascia o Sistema de Deliberação Remoto (SDR) da Câmara e do Senado[1], que permitiu a votação das proposições sem que os parlamentares estivessem presentes em Plenário. Não obstante, o novo regramento criado e suas posteriores modificações[2] impactaram significativamente a participação social no processo legislativo, pois aceleraram, sobremaneira, os procedimentos de apreciação das matérias, assim como reduziram a natureza democrática do rito de aprovação dos projetos de lei, ao dificultar a atuação da Oposição ao governo. Essa é uma realidade observável sobretudo na Câmara dos Deputados, onde a edição de atos autocráticos, encabeçadas pelo Presidente, deputado Artur Lira, vêm institucionalizando práticas centralizadoras de decisão.
A exemplo do fechamento dos espaços de participação social que o Executivo promoveu com a dissolução e reestruturação dos Conselhos participativos[3], o Legislativo vem promovendo, cada vez mais, a centralização do poder de decisão. Passado o período mais crítico da pandemia, o último ato da Mesa da Câmara (Ato n. 227/22), por exemplo, determinou a manutenção do trabalho remoto por tempo indeterminado – ao contrário dos atos anteriores-, facultando-se aos deputados a possibilidade de permanecerem em seus estados. Todavia, pelas novas regras, apenas têm direito a voz, aqueles que estiverem presentes em Plenário, o que nos faz pensar na distinção de duas categorias de parlamentares, os aptos a falar e os sem direito de expressão nas votações. A oposição, que já é numericamente menor, deverá empreender maiores esforços para se fazer ouvir no Plenário, ultimamente, bastante esvaziado.
Com o horizonte de menos intervenções durante as discussões, a tendência é que as matérias sejam aprovadas mais rapidamente, sem muito contraditório e transparência. A esse fato, soma-se a decisão do Presidente da Câmara de retardar a instalação das comissões temáticas[4], segundo Lira, por problemas políticos relacionados à troca de partidos e disputas eleitorais. Contraditoriamente, ao tempo em que se mantém o sistema de deliberação remoto, há algumas semanas, Artur Lira autorizou a entrada e trânsito de pessoas na Câmara sem o uso de máscaras, escancarando-se, desse modo, o fundamento meramente político e autocrático de suas últimas decisões.
No Senado Federal, o ímpeto pela aprovação célere das matérias, a miúde é contido pelo Presidente Rodrigo Pacheco. Mesmo assim, tramita naquela Casa, ainda sem deliberação, o projeto de resolução n°1/2021, que inclui no Regimento Interno do Senado normas para permitir a convocação de sessões remotas de forma definitiva. Se institucionalizado permanentemente esse sistema de deliberação, oficializar-se-ia a restrição que a pandemia impôs à participação da sociedade civil organizada nos processos decisórios do legislativo. A comunicação com os parlamentares – antes acessíveis nas Comissões, nas audiências públicas, pelos corredores, salões e até cafés, por onde, outrora, qualquer cidadão poderia transitar -, ficou comprometida. A presença física das organizações da sociedade civil e de defesa de direitos humanos na Câmara está ameaçada pelas novas regras de acesso às dependências do Congresso e pela possibilidade de que as normas criadas durante a pandemia sejam incorporadas definitivamente pelos regimentos internos.
Por conseguinte, reduzidos os espaços de participação e controle social, compromete-se também a transparência do processo legislativo. O exemplo mais notório disso é a criação recorrente dos chamados grupos de trabalho (GTs). Se antes as discussões das matérias eram abertas ao público que acudia às Comissões e às galerias do Plenário, hoje, os GTs confinaram as decisões sobre as proposições a espaços desconhecidos do público, cujas regras de funcionamento não encontram amparo do regimento interno da Câmara (RICD). Com isso, ficam em suspenso, ou dependente de acordos momentâneos, os prazos para apresentação dos relatórios, a realização de audiências públicas e, não menos importante, coloca-se em xeque a determinação constitucional (art.58,§1°), segundo a qual a composição das mesas e de cada comissão devem obedecer a regra da representação proporcional dos partidos ou dos blocos parlamentares que participam de ambas as Casas legislativas. A proporcionalidade partidária norteia o estabelecimento do número de deputados, de situação e oposição, que comporão os colegiados. Essa é uma das regras mais importantes também do RICD[5], pois, ao nortear a participação dos parlamentares nas comissões, determina também a correlação de forças no jogo político.
Recentemente, tais GTS trataram de temas bastante sensíveis e com grande impacto na vida das pessoas e do meio ambiente, como foram os casos do projeto que flexibiliza as regras de licenciamento ambiental no País e do que revogou a Lei de Segurança Nacional. Recentemente, o Presidente Lira também recorreu à constituição de um GT para oferecer uma solução para os impasses e conflitos em torno ao PL 191/20 que permite o garimpo e a realização de grandes empreendimentos em terras indígenas, sem a devida consulta aos povos originários.
Ademais, no que se refere à tramitação das medidas provisórias, também houve modificações que restringiram a transparência e o exercício da democracia participativa. Via de regra, a tramitação das Medidas Provisórias, encaminhadas pelo Executivo, começava pelas Comissões Mistas, compostas por deputados e senadores. Elas também consistiam em espaço de debate político, realização de audiências públicas e apresentação de relatório a ser apreciado, posteriormente, pelos Plenários da Câmara e do Senado. Embora as Comissões do Senado estejam funcionando normalmente e as da Câmara aguardem reinstalação após o início do ano legislativo, as Comissões Mistas continuam sem funcionar desde o início da pandemia. As novas regras regimentais levaram o debate diretamente para os Plenários, diminuindo-se, assim, o tempo para a propositura de emendas (propostas de modificação de texto) e para a apresentação do relatório final.
Por conseguinte, temas importantes, que possuem efeito de lei assim que a medida provisória é publicada, estão sendo pouco debatidos e, não raro, parlamentares se queixam em Plenário do pouco tempo que tiveram para estudar os textos em votação, muitas vezes, disponibilizados encima da hora no sistema interno da Câmara.
O tempo das sessões e o uso da palavra.
Entre as modificações regimentais recentes, promovidas pelo Congresso, a que melhor exemplifica o caráter centralizador das decisões do Presidente da Câmara é a Resolução 21/2021[6]. O texto da resolução modifica o RICD para reordenar o uso da palavra, durante a deliberação das matérias, e modificar o tempo de duração das sessões. A restrição do tempo de fala e da duração das sessões tem impactos importantes no uso de estratégias e mecanismos que têm como objetivo protelar ou impedir a votação de uma proposição, quando há divergências de mérito e de conveniência política na apreciação de um tema. Refiro-me aqui ao uso do chamado kit obstrução, que consiste, grosso modo, em requerimentos procedimentais, cuja apresentação permitem prolongar o debate sobre um tema, abrindo-se espaço para a expressão de divergências, típicas do jogo democrático. Na prática, o kit obstrução protela o término da discussão e votação, possibilitando à oposição esgotar os argumentos contrários à aprovação de uma política ou medida.
No que se refere ao prazo para duração das sessões, o texto do regimento estabelecia que as sessões ordinárias deveriam ter cinco horas de duração, admitindo-se a prorrogação por tempo não superior a uma hora[7]. As novas regras regimentais[8] permitem que o Presidente da Câmara estenda a discussão das matérias pelo tempo necessário à conclusão da apreciação dos itens constantes da pauta. As sessões ordinárias, portanto, passaram a ter duração indeterminada, facilitando-se a aprovação de matérias, que antes podiam ter sua apreciação interrompida pelo término da sessão plenária[9].
As alterações promovidas para votar as matérias em regime de urgência, recurso utilizado para levar os projetos de lei direto a Plenário, também importaram na perda de espaço para o debate político, celeridade na aprovação das matérias, menos transparência das negociações e alijamento da sociedade do seu direito constitucional de participação no processo de elaboração das políticas públicas. Enquanto as Comissões estavam impossibilitadas de funcionar em função da pandemia, o uso do regime de tramitação de urgência fora utilizado para votar em Plenário exclusivamente matérias que não poderiam esperar. O acordo era que se manteriam os critérios de urgência e excepcionalidade para votar matérias relacionadas ao estado de calamidade pública no qual nos encontrávamos. Entretanto, prontamente, extrapolou-se os motivos iniciais que possibilitaram a votação de matérias urgentes, de forma que todo tipo de matéria adquiriu um tempo reduzido de tramitação.
Passados os momentos mais críticos da pandemia, e mesmo as comissões voltando a funcionar no ano passado, a urgência continuou a ser utilizada para votar propostas que muitas vezes não se encaixavam nos pressupostos constitucionais estabelecidos para a votação em regime de urgência. É o caso do PL 191, que permite a mineração em terras indígenas. Além disso, pelas regras do novo sistema, o próprio processo de votação sofreu alterações, uma vez que se proibiu, por exemplo, a votação das matérias de forma parcelada, pois extingue-se a possibilidade de votação de proposição, artigo por artigo, ou de emendas, uma a uma. Tampouco sobreviveram as regras de urgência que permitiam a apresentação de retirada de pauta ou adiamento de discussão.
Em resumo, ao reordenar o uso da palavra durante a deliberação das matérias e modificar o tempo de duração das sessões, as alterações promovidas reduziram o número de deputados habilitados ao direito de orientação de requerimentos procedimentais, revogaram dispositivos que impunham limites para o tempo de duração das sessões, agora autorizadas a durarem até que se esgote a pauta do dia. Além disso, como mencionado, o regime de urgência aprovado para tornar a tramitação de um projeto mais célere, também sofreu modificações, de maneira que uma proposição que vai direto a Plenário não pode mais ser fragmentada.
Desde o começo, as organizações que compõem a sociedade civil organizada veem com preocupação a redução dos espaços de participação. O Pacto Pela Democracia, por exemplo, que agrega diversas organizações, produziu nota chamando a atenção para o fechamento dos espaços de participação democrática[10]. A Plataforma dos Movimentos pela Reforma do Sistema Político, ressente-se do pouco espaço de debate com os movimentos sociais quando da apreciação dos projetos que importaram as últimas mudanças no sistema partidário brasileiro. A Coalizão Direitos Valem Mais, por outro lado, que atua no acompanhamento do Orçamento da União, não conseguiu espaço para promover audiências públicas para levar ao parlamento sua análise técnica dos gastos e prioridades orçamentários. A Comissão Mista de Orçamento (CMO) não realizou nenhuma audiência pública com esse caráter participativo no ano passado. A votação de créditos adicionais, extraordinários e das emendas de relator, as chamadas RP09, foram protagonistas indiscutíveis do debate político na comissão, não havendo espaço, em resumo, para o exercício da democracia participativa no Parlamento.
A simples entrada da sociedade civil no espaço físico do Congresso ficou atrelada à autorização dos gabinetes que não podem liberar mais que o acesso de 05 pessoas por dia. Há relatos de que as organizações sociais não têm conseguido cadastrar-se no sistema da Câmara para ter acesso livre às dependências da Câmara. Mesmo antes da pandemia, a presença de grandes grupos (sindicalistas, indígenas, por exemplo) nas dependências da Casa já vinha sendo limitada. Nos dias atuais, uma vez nos recintos do Parlamento, o trânsito livre das pessoas fica também limitado pela ação da Polícia Legislativa.
Por conseguinte, claro está que as normas de deliberação e decisão política ficam cada vez mais concentradas nas mãos do Presidente Lira, aliado inconteste de Bolsonaro. Suas ações na condução da Mesa da Câmara vêm diminuindo as possibilidades de um debate adequado e transparente das matérias, evitando a intervenção da sociedade civil organizada e a prática de controle social. Ademais, ele dificulta a ação da Oposição no debate, ao reduzir seu tempo de fala e trazer para o Plenário matérias que deveriam seguir o rito processual regular. Essa tendência centralizadora ganhou novas dimensões com a criação de um grupo de trabalho que deve discutir a implementação do semipresidencialismo o no país. Embora haja previsão de que sua implementação aconteça apenas em 2030, nada impede, sendo a Oposição vitoriosa nas eleições presidenciais, que esse prazo seja encurtado e tenhamos, no final das contas, que enfrentar um novo golpe parlamentar.
[1] Resolução da Câmara n°14/20 e Ato da Comissão Diretora n° 7/20.
[2] Ato da Mesa 123/2020 e, sobretudo, a resolução 21/2021.
[3] Decreto n° 9759/2019. O chamado decretaço extinguiu os Conselhos criados por decreto e modificou a composição de outros tantos criados por lei.
[4] As Comissões temáticas são órgãos de deliberação do Parlamento para onde são encaminhados os projetos de lei, distribuídos por assunto. Elas são compostas por um número bem menor de deputados, em comparação com o Plenário e estão encarregadas de emitir um parecer técnico sobre o mérito das matérias, que, posteriormente, podem ser apreciadas pelo Plenário. Os plenários das Comissões se constituem em espaços de transparência e participação social, na medida em promovem audiências públicas com a presença de experts, membros da sociedade civil organizada, entidades, sindicatos e órgãos públicos, que emitem parecer técnico e político sobre as matérias que lhes dizem respeito. Muitas vezes, suas opiniões e pareceres acabam fundamentando propostas de alteração dos projetos em votação (emendas). Em resumo, são espaços em que a sociedade pode contribuir e influenciar o processo legislativo.
[5] Regimento Interno da Câmara dos Deputados. Art.8°, arts.21, §1°, arts 23 e 25,§1° e art.224, §único.
[6] https://www2.camara.leg.br/legin/fed/rescad/2021/resolucaodacamaradosdeputados-21-12-maio-2021-791358-publicacaooriginal-162824-cd-presi.html Acessado em 17/03/2022.
[7] Regimento Interno da Câmara dos Deputados. Art. 66, caput, art.72, caput e art.181, §1°.
[8] Trata-se da redução dos habilitados ao direito de orientação de requerimentos procedimentais. Os requerimentos procedimentais (usados como mecanismo de obstrução) só poderão ter a sua votação encaminhada por apenas um orador favorável e um orador contrário, por três minutos cada um. Isso implica, na prática, uma mordaça na oposição.
[9] Ademais, o Presidente poderá suspender a sessão por uma única vez, pelo prazo máximo de uma hora, findo o qual considerar-se-á encerrada. A suspensão das sessões a miúde era recurso utilizado para realização de acordos e consensos em torno às matérias. Considera-se que tais modificações podem prejudicar o jogo democrático.
[10] https://www.pactopelademocracia.org.br/blog/silenciar-a-oposicao-na-camara-e-ataque-a-democracia Acessado em 04/02/22.