O estupro é uma das violências mais bárbaras que a humanidade é capaz de cometer contra si mesma.
A violência sexual tem uma direção: dos mais fortes e poderosos para as pessoas em condições fragilizadas ou subalternizadas. Inclui-se nessa lógica a força física, idade, cor da pele, etnia, desigualdades econômicas, gênero, sexualidade, questões culturais e morais. Cada aspecto desses, e tantos outros, implica a configuração de assimetrias e opressões que dão suporte para a ocorrência da violência sexual. Com o acúmulo dessas dimensões, o estupro de crianças é especialmente grave e produz efeitos irreparáveis, marcando vidas inteiras de forma irreversível, quando não a morte.
Com a licença do povo Yanomami, tomemos a sua dor para pensar sobre todas as infâncias brasileiras. Em abril de 2022, o estupro e a morte de uma menina Yanomami foram amplamente noticiados. Essa não foi a primeira vez que uma criança indígena foi violada; aliás, desde que Brasil é Brasil, a violência sexual se faz presente. O contato entre os colonizadores europeus e os povos originários já sinalizava o trágico destino de mulheres indígenas, violência essa que se estendeu mais tarde às escravizadas, aquelas que foram arrancadas de suas terras para serem exploradas pelos que aqui chegaram. Embora protegidas por privilégios, as mulheres brancas também não foram poupadas.
Ao longo da história, são incontáveis os casos de meninas indígenas sequestradas de suas comunidades para casar e servir aos seus agressores, assim como os de homens brancos usufruindo à força de corpos de meninas e mulheres negras. Muitas crianças nasceram desses estupros dando início a uma miscigenação que foi tratada, por muito tempo, como fruto da cordialidade brasileira, discurso que camuflou um mundo de perversidades.
A violência sexual não vem sozinha. Está sempre associada a muitas outras agressões e violações de direitos, mas na sua base podemos dizer que a desumanização é condição para que a bestialidade se consolide. “Os garimpeiros são homens, né? Eles vão atrás de riqueza, e isso gera muitos conflitos. Eles não respeitam as mulheres. As mulheres dentro dos garimpos estão na prostituição, estão ali fazendo o serviço que eles querem. Não há respeito porque eles veem as mulheres como um objeto que eles têm ali dentro e que serve a eles” explica Telma Taurepang, coordenadora geral da União das Mulheres Indígenas da Amazônia Brasileira (UMIAB).[1]
O garimpo ilegal, geralmente associado a facções criminosas, avança rapidamente sobre o território Yanomami. Além de degradar o ambiente com desmatamento e contaminação do solo e das águas com mercúrio trazendo seríssimas agravos à saúde, favorece a ocorrência de estupros e da exploração sexual de crianças. Estabelece dinâmicas destruidoras nas comunidades. Estudos e reportagens mostram a estreita relação entre garimpo ilegal e violência.
O relatório da Hutukara Associação Yanomami (2021) denuncia a barganha que os garimpeiros fazem com a comida: “Após os Yanomami solicitarem comida, os garimpeiros rebatem sempre. (…) ‘Vocês não peçam nossa comida à toa! É evidente que você não trouxe sua filha! Somente depois de deitar com tua filha eu irei te dar comida!’”. Na percepção da maioria das mulheres indígenas, diz o relatório, os garimpeiros representam uma terrível ameaça, geram muito medo. São homens violentos que causam terror e angústia permanente nas aldeias. Ainda segundo o relatório, “este é o pior momento de invasão da Terra Indígena Yanomami, desde a demarcação e homologação há 30 anos”.
A pesquisa “Violência física e sexual em crianças e adolescentes no Amazonas, o panorama de uma década” (2022) – levantamento realizado por Patrícia Leite Brito, Rebeca Figueira da Costa, Rayane Thaise Neri de Souza e publicado no Brazilian Journal of Health Review – revela que os casos de estupro em crianças e adolescentes no estado do Amazonas – vêm demonstrando crescimento linear e contínuo.
Descaso do governo brasileiro
As violências crescentes revelam o descaso com que o governo brasileiro lida com o tema. A ex-ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, por exemplo, disse que as crianças da ilha do Marajó são estupradas por falta de calcinha, responsabilizando as meninas pela violência sofrida. Agora, diante da menina Yanomami ela diz: “-Lamento, mas acontece todo dia”, com uma frieza inaceitável. Damares cita o Plano Nacional de Enfretamento da Violência Sexual Contra Crianças e Adolescentes, como ação de sua pasta. No entanto, a falta de transparência da ação no Orçamento Público e sua execução orçamentária não mentem. De acordo com estudo produzido pelo Inesc – “Brasil com Baixa Imunidade, Balanço do Orçamento Geral da União (2019)” fica evidente a redução drástica de recursos públicos ao longo dos últimos anos destinados especificamente ao enfrentamento da violência sexual de crianças e adolescentes, chegando ao seu desaparecimento em 2019. E até os dias atuais, não há nenhuma ação específica na peça orçamentária para enfrentamento das violências contra crianças e adolescentes. E no que diz respeito ao trabalho infantil, os recursos para seu enfrentamento caíram 20 vezes em 2021 quando comparado com 2019. Ou seja, o orçamento para esta ação perdeu 95% de 2019 para 2021 (Balanço do Orçamento Geral da União – 2021).
A Execução da fiscalização para erradicação do trabalho infantil também chega a 2019 sem recursos.
O então ministro da Educação Abraham Weintraub disse em alto e bom som que odeia o termo ‘povos indígenas’ e ‘povos ciganos’, registrando o seu inequívoco desprezo pela diversidade brasileira.
No que diz respeito à Segurança Pública, a Polícia Federal declarou não ter encontrado indícios de crime onde a menina Yanomami foi estuprada e morta causando espanto a toda uma população que espera por justiça.
Já o chefe do executivo, quando candidato à Presidência da República, em 2018, afirmou durante a campanha eleitoral:“No que depender de mim, não terá mais demarcação de terra indígena”, anunciando sua intenção de usurpação de terras e desproteção dos povos, o que, já sabemos, implica diretamente na produção da violência.
Ironicamente, o presidente Jair Bolsonaro comprometido com tanto desmonte foi condecorado pelo Ministério da Justiça com a medalha Mérito Indígena mesmo defendendo exploração de minério em território protegido, não reconhecendo a autodeterminação dos povos (“índio é pobre coitado”). A medalha perde seu significado e se torna patética no pescoço de um ser desprezível que ancora seu governo em mentiras, desmontes e desprezo pela vida.
O complexo enfrentamento
Para enfrentar a violência e exploração sexual de crianças e adolescentes indígenas são necessárias diversas políticas públicas articuladas e um plano objetivo de prevenção, de amparo às vítimas e responsabilização dos agressores. Sugerimos algumas diretrizes:
- Formulação de um banco de dados criterioso, com levantamento de dados e análises periódicas, de modo a considerar territórios, etnias, perfis das vítimas, locais, situações e contextos que orientem a formulação das políticas públicas mais adequadas a cada realidade.
- Combate à fome e à pobreza que tanto vulnerabilizam diversos grupos sociais em diferentes territórios.
- Participação popular, especialmente de crianças e adolescentes, para que as vozes de cada comunidade ecoem, sejam respeitadas suas denúncias e que participem da elaboração de propostas de enfrentamento à violência e à exploração sexual infanto-juvenil.
- Ação firme do Estado para romper com a naturalização da violência sexual, com políticas educacionais e de comunicação, destacando a educação sexual e educação de gênero como direito.
- Prevenção e erradicação do trabalho infantil como formas de proteger crianças e adolescentes da exposição a múltiplos riscos.
- Fortalecimento e ampliação do alcance da campanha Faça Bonito – 18 de Maio – “Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes” entrando nas escolas privilegiando a formação de estudantes e educadores.
- Fomento de pesquisas acadêmicas sobre gênero, violências, infância e adolescência, segurança pública, educação e outros que deem subsídios para aprimorar as ações do Estado.
- Educação para crianças e adolescentes no campo da segurança digital, fortalecendo-as para o uso seguro da internet.
- Fortalecimento das políticas de assistência social para amparar e cuidar das vítimas.
- Formação de profissionais da saúde para, além de atender com dignidade e respeito às vítimas, fazer a notificação e alimentar os bancos de dados.
- Apuração e responsabilização de todas as notificações de violência sexual contra crianças e adolescentes, em especial, crianças indígenas.
Ressaltamos ainda que, de nada vale um plano, se não houver orçamento adequado e sua execução exemplar.
Lembrar é combater
Neste dia 18 de maio, trazemos à memória a menina Araceli para manter a indignação, não naturalizarmos a violência e sensibilizar a sociedade em geral.
Hoje, em nome da criança Yanomami, nossa indignação e tristeza intensificam a luta para que todas as crianças, com diferentes cores e sotaques, com diferentes jeitos, línguas e corpos, sejam reconhecidas nas suas diferenças e tenham uma infância disponível para a alegria.
(Publicado originalmente na Carta Capital Online)
[1] Brasil de Fato, 2 de maio de 2022