A violência sexual que tem ocorrido nos abrigos que acolhem a população afetada pelas enchentes no Rio Grande do Sul (RS) é um reflexo da vivência diária de muitas meninas no Brasil. E essa realidade que constrange e indigna algumas pessoas, é fortalecida pela própria sociedade e pelo Estado.
Vivemos em uma cultura adultocêntrica, em que crianças e adolescentes são objetificadas e tratadas como inferiores aos adultos. Há uma concepção de não totalidade na infância e adolescência baseada no entendimento de que o adulto é a norma e que, portanto, a busca pelo vir a ser é o importante na vivência desse grupo. Nesse sentido, o adultocentrismo deslegitima tudo o que foge dessa centralidade e viola o direito das meninas(os) de existirem e serem consideradas como tal. Essa é uma das construções sociais que dá a sensação de permissividade para o adulto violentar a criança. No Brasil, em 2022, 61% das vítimas de estupro eram pessoas na faixa etária de 0 a 13 anos e 8 em cada 10 vítimas eram menores de idade, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública-2023.
Mesmo que a legislação brasileira seja avançada ao reconhecer crianças e adolescentes como sujeitos de direitos e que devem ter suas reivindicações reconhecidas, o assujeitamento no dia-a-dia das relações ainda é superior. As famílias, escolas, comunidades e igrejas pouco conhecem o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e como acionar o Sistema de Garantia de Direitos (SGD). Mantêm estigmas sobre o que é ser criança e adolescente a partir de ideologias moralizantes e colonialistas que retiram a autonomia e impossibilitam a emancipação desses sujeitos políticos. O que os vulnerabiliza ainda mais nas relações de poder assimétricas com os adultos para ocorrências de violências sexuais.
A intersecção com o gênero potencializa essa assimetria, pois também é marcado por hierarquias, em que o masculino exerce poder sobre o feminino. O entendimento da mulher como vulnerável e a serviço do homem, sexual e socialmente, fortalecido pelas desigualdades de gênero, gera a compreensão de permissividade para abusar sexualmente de meninas, que são as mais afetadas por essa violência.
Por conseguinte, ao invés de se investir na formação sobre gênero e sexualidade para que meninas saibam como se proteger e meninos comecem a produzir e reproduzir outros papéis diversos, que sejam saudáveis e se diferenciam do padrão de masculinidade imposto hoje, há um grande movimento de repressão dessa discussão nos espaços públicos. Logo, todas as pessoas e grupos que cerceiam ou compactuam com a coibição dos estudos de gênero e dos direitos sexuais nas escolas também são responsáveis pelos milhares de casos de violências sexuais contra crianças no Brasil.
Todas as meninas estão suscetíveis a violências sexuais, no entanto, as desigualdades de raça e classe no país redobram a vulnerabilização de crianças e adolescentes negras e empobrecidas. Desde a escravização, em que a crueldade com pessoas negras era permitida e naturalizada, o abuso sexual fazia parte dessa desumanização. Hoje, o racismo se mantém e traz os resquícios da busca pela dominação de pessoas não brancas. O Anuário Brasileiro de Segurança Pública também revelou que em 2022, nas faixas de idade de 6 a 17 anos, mais de 55% das meninas vítimas de estupro eram negras, dos 12 aos 14 anos mais de 59% eram negras e mais de 7% indígenas.
No que diz respeito à classe social, fatores como menor acesso à renda e a políticas públicas favorecem a ocorrência e manutenção de violências. A vulnerabilidade econômica facilita a coerção por parte de exploradores e abusadores para exploração e abuso sexual de crianças. A falta de acesso a creches, escolas em tempo integral, atividades culturais e de lazer no contraturno da escola dificultam que os casos sejam revelados. A baixa renda cria, muitas vezes, uma dependência financeira com o agressor, dificultando a realização de denúncias.
De 2019 a 2023, o governo federal não investiu um centavo para ações específicas de enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes. Para 2024, o governo atual autorizou R$ 3,3 milhões para o plano orçamentário intitulado: Enfrentamento às violências contra as crianças e adolescentes, como pode ser visto no Balanço do Orçamento da União elaborado pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc). O Plano Plurianual (PPA) 2024-2027 da União prevê, dentro desse objetivo de enfrentar violência, a equipagem de 10 Centros de Atendimento Integrados para Crianças e Adolescentes vítimas ou testemunhas de violência em 2024.
O planejamento dos governos ainda falha na perspectiva de prevenção, em que os gastos públicos estão direcionados para remediação das problemáticas e não para a erradicação delas. É importante ter todo o acolhimento e suporte para quem já vivenciou uma violação, mas sem abrir mão de priorizar políticas que tenham como objetivo o fim das violências e isso perpassa: 1) pelo trabalho integrado de todos os setores do Estado e da sociedade; 2) por mudanças estruturais das concepções sobre o que é ser criança e adolescente, sobre raça e sobre gênero, o que inclui aprovar no Plano Nacional de Educação, que será discutido no Congresso Nacional, metas antissexistas e antirracistas; e 3) pela eliminação das desigualdades. Enquanto não nos movermos intensamente nessa direção, também somos responsáveis pelas violências sofridas diariamente por meninas e meninos do nosso país.