Em 10 anos, representatividade racial avança pouco na política

01/11/2024, às 21:31 | Tempo estimado de leitura: 12 min
Após uma década de luta, resultado nas urnas revelam que o racismo e sexismo à brasileira são imunes às medidas do TSE em prol da equidade na política

Após 10 anos de lutas históricas dos movimentos negros e feministas pela equidade racial e de gênero nos cargos políticos, a representatividade de mulheres e pessoas negras nos poderes Legislativo e Executivo ainda registra avanços limitados no Brasil. A população negra ocupava, em 2016, 42,1% das cadeiras no Legislativo e 29,2% no Executivo Municipal. Nas últimas eleições, esses percentuais chegaram a 45,9% e 33,5%, respectivamente. No Congresso Nacional, enquanto 20% dos deputados e senadores eram negros, em 2014, essa população representava, em 2022, 26,2% do legislativo federal. A análise faz parte de um levantamento do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) em parceria com o coletivo Common Data.

2014: autodeclaração de raça das candidaturas

Para Carmela Zigoni, assessora política do Inesc, o ano de 2014 foi icônico para as organizações e movimentos antirracistas, em virtude da decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) de exigir que os candidatos informassem sua raça no momento do registro. “A inclusão da autodeclaração racial foi um passo essencial para que tivéssemos dados objetivos sobre a presença de pessoas negras nos espaços de poder”, afirma ela. “Com isso, ficamos mais próximos de entender e enfrentar as desigualdades que ainda tornam a política brasileira tão homogênea e predominantemente branca.”

Naquele ano, foi possível constatar o tímido percentual de candidaturas da população negra, bem como o baixíssimo número de pessoas pardas e pretas que conseguiram ser eleitas, conforme os dados abaixo:

Gráfico 1. Proporção de candidaturas e eleitos na Câmara dos Deputados em 2014, por gênero e raça/cor.

Gráfico 2. Proporção de candidaturas e eleitos no Senado Federal em 2014, por gênero e raça/cor.

 

 

2016: tema ganha força

Em 2016, dado o impacto da coleta dos dados raciais pelo TSE, o tema da sub-representação ganhou força na sociedade. No entanto, o debate não se refletiu em mudanças concretas: para as prefeituras, menos de 1% de candidaturas de mulheres negras (pretas + pardas) e menos de 0,1% autodeclaradas pretas foram eleitas. Para vereança, foram eleitas 32,9% mulheres, mas somente 15,3% de mulheres negras, das quais, apenas 2,8% se declararam pretas. Nenhuma mulher negra foi eleita para chefiar as prefeituras das capitais, e apenas 32 vereadoras negras foram eleitas no universo de todas as câmaras legislativas das capitais do país.

2018: decisão sobre repasse de recursos para candidatas

Em 2018, o TSE decidiu que os partidos deveriam repassar 30% dos recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC) e do tempo da TV e rádio para as candidaturas femininas. Do total de candidaturas para todos os cargos, 69% eram homens e 31% mulheres. No comparativo com a eleição de 2014, cresceu em 70% o número de candidatas que se autodeclaram pretas, e 23%  que se autodeclaram pardas, expressividade percentual que ficou conhecida como “Efeito Marielle”: as mulheres negras se apresentavam para as eleições como forma de resposta à cruel execução da vereadora negra do Rio de Janeiro, Marielle Franco (PSOL).

 

Porém, ao olharmos para o total das candidaturas, que também cresceu em 22%, a proporção de mulheres negras se manteve relativamente estável: de 13% em 2014 para 14% em 2018. O Congresso Nacional passou a ter 15% de mulheres. Dentre elas, apenas 13 deputadas negras (9 pardas e 4 pretas) e 1 senadora parda. Juntas, elas representaram 2,5% de mulheres negras no Parlamento em 2018 (um aumento de apenas 0,5% em relação a 2014).

 

Gráfico 3. Proporção de candidaturas e eleitos na Câmara dos Deputados em 2018, por gênero e raça/cor.

Gráfico 4. Proporção de candidaturas e eleitos no Senado Federal em 2018, por gênero e raça/cor.

2020: recursos continuam nas mãos de homens brancos

Em 2019, Benedita da Silva realizou consulta ao TSE para distribuição proporcional dos recursos do FEFC para pessoas negras, o que foi acatado pelo TSE em 2020, com aplicação naquele mesmo ano.  Das mais de 88 mil mulheres negras candidatas naquele ano, 4,5% (4.026) foram eleitas (3.510 pardas e 516 pretas). As mulheres venceram em 12,1% dos municípios (659), e destas, 32% eram mulheres negras e 66,5% brancas. Para o cargo de vereadora, foram 16% de mulheres eleitas, das quais, 39,3% eram negras e 59% brancas.

Faltando duas semanas para as eleições de 2020, as mulheres pardas receberam 52% a menos de recursos que as mulheres brancas, e as mulheres pretas menos da metade de recursos do que as pardas. Os homens brancos receberam 10 vezes mais do que os homens pretos, e os homens pardos 61,5% menos que os homens brancos. No grupo de candidaturas pretas, 616 homens e 316 mulheres não receberam recurso algum. Ao final do pleito, a distribuição dos recursos não foi cumprida pela maioria dos partidos, alguns não cumpriram a cota de gênero, outros a cota racial, outros ambas, como apontam os dados do relatório da Plataforma 72 Horas. No cômputo geral, as pessoas autodeclaradas brancas ficaram com 72% dos recursos e os homens com 73,4%.

Além disso, identificou-se que os partidos demoraram mais de 15 dias, do início do cronograma oficial para liberação dos recursos, para realizar o repasse financeiro para mulheres e pessoas negras, alegando problemas de “adequação interna”. A punição para essa “inadequação” dos partidos simplesmente não existiu, pois foi aprovada uma anistia no Congresso Nacional eximindo os partidos de multas pelo não cumprimento da decisão do TSE (PEC 18/2021). Para coibir essa prática nas eleições seguintes, o TSE determinou que os partidos seriam obrigados a repassar, um mês antes das eleições, 100% do recurso da cota de gênero e raça/cor às candidaturas de mulheres e pessoas negras.

Em 2022, a Câmara dos Deputados passou a contar com 91 mulheres (17,7%) e 422 homens (82,3%), sendo 13 mulheres pretas e 16 pardas, o que representou 5,7% de mulheres negras no parlamento (o dobro de 2018). No Senado, foram eleitos 23 homens (85,2%) e 4 mulheres (14,8%). Entre os homens, apenas 6 (22,2%) homens negros (3 pretos + 3 pardos), e as 4 (14,8%) mulheres eleitas senadoras eram brancas. No cômputo geral, o Congresso Nacional, alcançou 17,6% de mulheres eleitas em 2022.

Gráfico 5. Proporção de candidaturas e eleitos na Câmara dos Deputados em 2022, por gênero e raça/cor.

 

Gráfico 6. Proporção de candidaturas e eleitos no Senado Federal em 2022, por gênero e raça/cor.

2024: retrocessos e anistia aos partidos

O ano de 2024 manteve os retrocessos: a aprovação da PEC 9/2023, uma nova anistia aos partidos, consolidou um processo de recorrentes perdões àqueles que descumprem a regra de distribuição dos recursos. Além disso, um grupo de partidos (PT, Solidariedade, PSD, PSOL e PSB) solicitou extensão de prazo para repasse de recursos para mulheres e pessoas negras, alegando “dificuldades técnicas”, e antecipando o que já é a regra na prática: os partidos políticos não repassam os recursos de acordo com as regras estabelecidas pelas cotas de gênero e raciais.

Os resultados também não foram animadores. Considerando todos os cargos, foram eleitos em 2024, 54,6% brancos, 37,8% pardos e 6,4% pretos (ou seja, 44,2% de pessoas negras). As pessoas negras representam 33,5% de eleitos(as) na prefeitura e 45,8% para vereança. As prefeituras serão chefiadas por mulheres em apenas 13,2% dos municípios (729 eleitas + 5 sub judice), mas apenas 243 (4,3%) mulheres negras chegaram a esse cargo.

Das 79 mil (34,2%) mulheres negras candidatas para todos os cargos em 2024, 5.006 (6,3%) foram eleitas, ou 7,2% se considerarmos o total de eleitos. Isso é um aumento de 1,4% da proporção de mulheres negras eleitas em relação a 2020, quando tivemos 4,9% (4.254) de mulheres negras eleitas, ou 6,1% do total. Considerando 2016, o aumento foi de 2,5%, ou 4,8% do total de eleitos.

Os homens negros representaram, em 2024, 33,9% do total de candidaturas para todos os cargos, sendo 23,4% eleitos, 38,4% para vereador e 29,3% para prefeitos. Isso é um aumento de 10,2% da proporção de homens negros eleitos em relação a 2020, quando tivemos 13,2% dos homens negros eleitos em 1º turno, ou 35,5 do total de eleitos. E, considerando 2016, o aumento foi de 8,4% ou 35,6%do total de eleitos.

Considerando homens e mulheres, e perfil raça/cor, os prefeitos brancos eleitos são quase o dobro dos negros (pretos+pardos). Se considerarmos somente a cor/raça preta, a proporção é de mais de 28 brancos para 1 preto nas eleições de 2024.

Gráfico 7. Proporção de eleitos para as câmaras legislativas por raça/cor (2024)

“Se olharmos o espectro ideológico dos partidos, se tem pouca diferença entre esquerda, centro e direita”, avalia Cristiane Ribeiro, do colegiado de gestão do Inesc. “Além disso, são justamente estes corpos que são as maiores vítimas de violência política de gênero e raça, seja durante a corrida eleitoral, seja quando são eleitos.” Para ela, os avanços risíveis nessa série histórica de 10 anos (2014 a 2024) “demonstram a decidida posição do racismo e sexismo à brasileira. A mesma legislação que criminaliza e encarcera jovens negros, que não atua diante do crescente número de feminicídio de mulheres negras, que não pune a violência política racial e de gênero, ou seja, que não enfrenta de forma efetivas as estruturas que sustentam as desigualdades raciais e de gênero, é àquela que impede que pessoas negras, sobretudo mulheres, de chegarem aos espaços de poder e decisão institucional”.

 

 

 

 

Categoria: Notícia
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