SÃO PAULO – Victor Oliveira nunca foi de sentar na primeira fileira nem no fundão da sala de aula. Ficava no meio. Falante, sempre rindo com os colegas, não escondia a contrariedade na hora da chamada. O nome dele não constava da lista de presença, mas sim o de batismo, no feminino. Aquela, diz ele, não existe mais. Aos 18 anos, o estudante do primeiro ano do ensino médio do Colégio Pedro II, na Zona Norte do Rio, acaba de conquistar o direito de ser tratado conforme sua identidade de gênero. Agora, quando o professor chama Victor Oliveira, ele não esconde a felicidade e responde: “presente”.
– A gente já é julgado por 24 horas. Se o colégio não estivesse ao meu lado, eu não teria seguido em frente – emociona-se Victor, após chorar pelo corredor do colégio ao saber que o requerimento para a mudança tinha sido aceito e que os documentos com seu nome estarão prontos em breve.
O primeiro semestre deste ano começou com pelo menos 703 matrículas com o uso do nome social em escolas públicas de sete estados brasileiros, além do Distrito Federal. Há dois anos havia cerca de 142 registros. Matricular o nome com o qual o aluno se identifica é direito desde 2015, a partir de uma resolução do Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos LGBT. De lá para cá, o número de inscrições feitas nas escolas estaduais de São Paulo saltou de 127 para 365. No Rio, de 4 para 9. Em Goiás, de 11 para 14.
Todas as secretarias de Educação do país foram procuradas, mas a maioria diz não registrar o nome social dos alunos no ato da matrícula. Outros estados informaram ter iniciado o processo recentemente. São oito em Minas Gerais, 69 em Pernambuco, 37 no Mato Grosso do Sul, 131 no Paraná e 70 no Distrito Federal.
Uso do banheiro é um dos desafios
Morador do Cachambi, na Zona Norte do Rio, Victor já havia adotado o uniforme masculino. Voltou das férias em janeiro certo de que mudaria o registro no colégio em que estuda desde pequeno, o primeiro federal do Rio a receber formalmente o pedido de inclusão de nome social, em 2016. Hoje há três alunos nesta condição:
– De cara os professores me trataram como Victor e fizeram alteração do meu nome na lista de chamada à mão – conta ele, que logo deve tomar hormônios masculinos e entrou com processo para mudar também o nome no CPF e no Sistema Único de Saúde (SUS).
O chefe do setor de Supervisão e Orientação Pedagógica da escola, Carlos Turque, disse que há debates constantes sobre o tema na unidade, e que o maior deasfio hoje é a questão do uso do banheiro.
– A orientação é que cada um use o banheiro de acordo com sua identidade de gênero, mas estamos discutindo como atender a isso de modo confortável e sem constrangimentos.
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Em São Paulo, o aluno do segundo ano do ensino médio do colégio estadual Rodrigues Alves, na região central, Fellipe dos Santos Martinez, 25 anos, diz que, dependendo do lugar, entra e sai correndo do banheiro. Ele começou sua transição aos 14 anos e abandonou os estudos no ensino fundamental após sofrer bullying. Colegas de classe chegaram a cercá-lo para uma sessão de maquiagem à força. Hoje o estudante sonha cursar Engenharia Naval:
– Tirei nota 10 esse ano em redação, um milagre – diz ele, que junta dinheiro para cirurgia de retirada de seio. No futuro, ele também quer fazer a mudança de sexo, “quando for segura”.
Esta mesma história aconteceu com Fernanda Gandini, de 47 anos, Loryane Cipriano da Silva, de 41 anos, e Eliza Coelho da Silva, de 54 anos. As três iniciaram sua transição ainda adolescentes e se afastaram da escola após as mais variadas agressões. Voltaram com a resolução que autorizou o uso do nome social no registro escolar.
– Quando entramos, perguntaram na aula: “mas a gente vai ter que estudar com essas travestis?”. A professora respondeu: “se estiverem incomodadas vocês podem se retirar”. Foi muito importante a escola ter nos defendido – afirma Fernanda.
– É gostoso ir para a escola assim. Você é tratado como uma pessoa normal. Aliás, eu sou normal – pontua Eliza.
Dados da Pesquisa Nacional sobre o Ambiente Educacional no Brasil 2016 revelam que 80% dos alunos que sofreram pouco ou nenhum tipo de agressão receberam notas entre 7 e 10. A média cai entre os que sofreram constrangimentos pela orientação sexual ou expressão de gênero.
A brasiliense Luise Fernandes, de 18 anos, afirma que desistiu esse ano de estudar “por não receber apoio dentro da escola”.
– Um grupo de alunas falou que usar o banheiro delas era ridículo. Não tive forças para continuar e parei – desabafa.
O apoio da família também tem peso fundamental na socialização, mesmo que esse suporte tenha alguns atos falhos como o da mãe de Victor, a enfermeira Sônia Valéria de Oliveira, 43 anos, que ainda o chama pelo nome de batismo.
– Quero que ela faça com que isso seja positivo para outras pessoas na mesma situação. Incentivo muito para ela seja a melhor em tudo, porque senão o preconceito será maior.
CNE quer padronizar registros escolares
O Conselho Nacional de Educação (CNE) está preparando uma norma para padronizar as informações referentes ao uso do nome social em todas as escolas do país. O texto será entregue ao Ministério da Educação (MEC) até outubro. Segundo Ivan Cláudio Pereira Siqueira, vice-presidente da Câmara de Educação Básica do CNE, a expectativa é de rápida aprovação”:
– É uma questão de sobrevivência, para que se evite evasão e outros males. Estamos falando de direitos humanos.
Siqueira explica que a resolução de 2015 sobre o uso do nome social nas escolas não tem efeito normativo e cada estado acaba fazendo sua própria regra, ditando, por exemplo, como as unidades devem agir nesses casos. Hoje, segundo ele, 24 das 26 unidades federativas adotam alguma medida.
Essa falta de uniformidade impede que o Inep, vinculado ao MEC e responsável pelo Censo Escolar e Prova Brasil, levante em todo o país o número exato de matrículas com o nome social. Já o MEC justifica que incentivar o registro do nome social no ato da matrícula seria o papel de cada secretaria de Educação.
Mesma regras para todos
Caso o MEC aprove o texto do CNE, aponta Siqueira, o documento vira lei e todos os estados terão de cumprir uma mesma regra para o uso do nome social.
A especialista em educação Márcia Acioli, do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), defende que “para alunos trans se adequar, a escola tem que fazer o mesmo”.
– É difícil para o aluno engrenar no colégio e na vida se estiver em situação de constrangimento e sofrimento – analisa Márcia.
O secretário de Educação da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT), Toni Reis, aponta ainda a necessidade de um acompanhamento constante:
– É importante saber como as crianças gostariam de ser chamadas. É um constrangimento tratar o João como Maria.
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