A boa nova na crise de duas cabeças do Brasil

25/04/2016, às 13:15 | Tempo estimado de leitura: 10 min
Melhores práticas orçamentárias têm ajudado a revelar a desigualdade e a política disfuncional do país.

Artigo de  Vivek Ramkumar em coautoria com Carmela Zigoni e Grazielle David, assessores políticos do INESC.

O último ano tem sido tumultuado para o Brasil. A queda dos preços globais das commodities gerou uma recessão econômica no país. Um escândalo de corrupção de grandes proporções e ao longo de muitos anos em torno de contratos de compra da Petrobras, a petrolífera estatal, foi descoberto e tem dominado a mídia nacional.

Na frente política, a crise é ainda mais profunda. No fim de semana passado, a Câmara dos Deputados do Brasil aprovou uma moção de impeachment contra a Presidente Dilma Rousseff. Seu destino está agora nas mãos do Senado do país. O processo de impeachment baseia-se em acusações de que o governo fraudou suas contas para camuflar a real magnitude do déficit orçamentário. Muitas pessoas no país veem o esforço a favor do impeachment como uma manobra cínica para desviar as atenções do escândalo da Petrobras, que implica algumas das mesmas pessoas que estão conduzindo o processo de impeachment contra a presidente.

Além de rápida, a queda em desgraça do Brasil foi também surpreendente, já que o país ocupava um espaço quase sagrado entre os países do Sul global e despertava um sentimento de orgulho e admiração entre eles por seus avanços econômicos, culturais e democráticos.

O Brasil é um país de contrastes. Uma parte da sua sociedade goza de um estilo de vida comparável ao observado em países ocidentais ricos, enquanto uma parcela muito maior vive em condições de pobreza e privação extremas. Embora o país tenha tomado algumas medidas importantes na última década para reduzir seus níveis de pobreza, ainda há muito a ser feito nessa área. O Brasil é uma democracia relativamente nova, conquistada após décadas de sofrimento sob um regime militar. O país desenvolveu um serviço público moderno e profissional rapidamente e suas instituições de governança apresentam características amplamente reconhecidas como modelos dignos de serem replicados em outros países.

Ainda que os dois escândalos mencionados acima apontem para falhas graves na gestão financeira pública, o Brasil tem obtido, rotineiramente, pontuações muito altas no Índice do Orçamento Aberto da Parceria Internacional para Orçamento, que mede até que ponto os países são transparentes em relação aos seus orçamentos nacionais. Na verdade, o Brasil promulgou uma lei de acesso à informação em 2011 que exige que todos os dados relativos ao orçamento sejam publicamente divulgados e desenvolveu também dois portais na internet que oferecem acesso imediato a documentos orçamentários abrangentes para um período de até 25 anos anteriores e atualizações diárias para todas as rubricas de gastos governamentais.

Por mais de duas décadas, o modelo inovador de orçamento participativo do Brasil que é aplicado no nível municipal empoderou centenas de milhares de cidadãos em municípios para definir, diretamente, dotações orçamentárias para suas localidades. Pesquisas recentes revelaram que esse modelo de envolvimento direto com cidadãos gerou melhorias significativas nos resultados do desenvolvimento para pessoas afetadas pela pobreza. O modelo do Brasil já se espalhou para mais de 100 países em todo o mundo. O próprio governo nacional estabeleceu sistemas de consultas junto à população para colher suas opiniões sobre prioridades públicas para gastos do governo federal, embora esses mecanismos não sejam amplamente conhecidos ou usados pelos cidadãos.

A legislatura nacional do Brasil é uma das poucas no mundo que adota a prática de votação sobre uma declaração pré-orçamentária que estabelece as bases para o Executivo elaborar seu orçamento detalhado. Na maioria dos países, as legislaturas só são envolvidas no planejamento orçamentário após o Executivo ter desenvolvido um orçamento detalhado. Além disso, o Tribunal de Contas da União e o Judiciário do Brasil são órgãos independentes que contam com os recursos necessários para suas atividades e gozam de uma boa reputação.

O Brasil é um dos membros fundadores da Parceria para Governo Aberto – uma iniciativa global em prol de uma governança aberta e responsável que envolve múltiplos parceiros – e tem promovido a transparência fiscal em nível mundial, inclusive por meio de uma resolução adotada pelas Nações Unidas. As organizações da sociedade civil brasileira são amplamente respeitadas por suas profundas raízes na sociedade e por promoverem movimentos sociais focados em uma série de direitos humanos e questões sociais progressistas.

Por que todos esses importantes avanços não ajudaram a evitar a crise atual?

Em primeiro lugar, a corrupção e a má gestão dos recursos públicos são fenômenos generalizados no país, a despeito dos amplamente divulgados esforços envidados pelo Brasil no sentido de promover de uma maior transparência . Explicamos essa aparente contradição em uma postagem em blog feita há poucos meses. Na verdade, os elevados níveis de transparência fiscal observados nos últimos anos no Brasil constituem uma das principais razões pelas quais uma organização local da sociedade civil conseguiu aprofundar a análise da contabilidade do Tesouro e identificar a efetiva posição fiscal do país. Embora a transparência fiscal possa ajudar a lançar luz sobre o uso questionável de recursos públicos, ela não é, por si só, suficiente para erradicar o problema.

O combate à corrupção, especialmente da magnitude revelada no escândalo da Petrobras e da evasão fiscal, estimada em mais de US$ 200 bilhões, exige um ecossistema de prestação de contas que funcione bem e seja apoiado por diversas medidas sociais, políticas e legais e pela existência de uma sociedade civil e meios de comunicação de massa vigilantes e vibrantes. Como discutido acima, algumas dessas medidas já foram tomadas no Brasil. Outras, particularmente as relativas a uma reforma do sistema eleitoral e da administração fiscal e à promoção de modelos econômicos e sociais que efetivamente priorizem a erradicação da desigualdade na sociedade, ainda precisam ser adotadas ou reforçadas no país.

Em segundo lugar, muitos dos cidadãos do país estão preocupados com fato de os escândalos de corrupção no Brasil terem sido usados por uma oposição conservadora e oportunista e pelos que a apoiam nos meios de comunicação para deslegitimar um governo democraticamente eleito. Essa tática é assustadoramente semelhante à adotada em 1964 pelos militares brasileiros para derrubar um governo civil com base no pretexto de evitar atos futuros de corrupção.

Essa observação não tem a intenção de justificar as ações equivocadas dos que estão sendo questionados atualmente. Acreditamos fortemente que todas as formas de corrupção devem ser evitadas e que os culpados devem ser responsabilizados. Na verdade, o que nos preocupa é que, sendo bem sucedidos, os esforços para aprovar o impeachment da presidente Rousseff acabem sendo usados para desviar a atenção do público e da mídia dos efetivamente envolvidos no escândalo da Petrobras, deixando-os impunes. Para que avanços efetivos sejam logrados, não há dúvida de que o combate à corrupção exigirá a adoção de uma série de medidas no país que envolvem bem mais do que o discurso oficial sugere atualmente.

Todos os setores da sociedade brasileira devem usar a crise atual como mola propulsora para um debate abrangente em torno das reformas que devem ser priorizadas para que se possa, efetivamente, erradicar o flagelo da corrupção do país. Todos devem também manter-se vigilantes e evitar ações que possam minar os atuais pontos fortes das instituições brasileiras ou dar margem a retrocessos nos avanços conquistados pelo país na promoção da transparência e na participação pública no governo. Isso permitirá que o Brasil aproveite sua extraordinária agenda de governo aberto como base para caminhar na direção de uma sociedade que vive à altura das crenças de igualdade e justiça para todos.

Categoria: Notícia
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