A cultura do estupro: uma culpa para a vítima

13/06/2016, às 16:30 | Tempo estimado de leitura: 5 min
Artigo de Márcia Acioli, assessora política do Inesc.

Como se não bastasse a absurda e monstruosa violência sofrida pela adolescente que foi estuprada por dezenas de homens no Morro da Barão (Rio de Janeiro), ela agora é apontada como suspeita de uma possível ligação com o tráfico de drogas.

O primeiro delegado que assumiu a investigação, Alessandro Thiers, foi afastado por tê-la constrangido e agora busca um motivo para desqualificar a adolescente.

Este é o comportamento clássico da cultura do estupro: busca na vítima alguma coisa que a condene, que justifique a violência sofrida, que atenue a responsabilidade de quem perpetrou a agressão e/ou desvia atenção do ato brutal sofrido. Ainda nessa lógica, o delegado afirmou em entrevista publicada no dia 9 de junho sobre o vídeo divulgado: “(…) se você conversar com qualquer especialista em Direito, da área penal, vai ouvir que não houve estupro ali, tecnicamente falando. O dolo não foi de satisfazer a lascívia sexual”, quando o que todos viram foi indubitavelmente cenas de abuso, exploração e violência.

Cabe lembrar que, desde 2009, o estupro está configurado no artigo 213 do Código Penal brasileiro: constranger alguém mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso.

Um operador da lei não pode relativizar a brutalidade e a dor perante um ato de tamanha violência, e quando o faz, estimula a banalização do estupro e ‘autoriza’ outros atos desta natureza.

Só quem é vítima de estupro sabe o quanto necessita de um ambiente de absoluta confiança e segurança para fazer a denúncia, revelar os detalhes e ser, mais uma vez, invadida na sua intimidade com o exame que comprova a violência sexual. Inclusive o impacto emocional e a pressão social podem levar a vítima a construir versões diferentes para o mesmo fato.

Segundo o antropólogo Roque Laraia, cultura é “um complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes e quaisquer outros hábitos adquiridos pelo homem como membro da sociedade.” O Mapa da Violência que mostra que, em 2014, o Sistema Único de Saúde (SUS) atendeu a 23.630 mulheres vítimas de violência sexual. Já a Central de Atendimento à Mulher, o Ligue 180 (serviço da Secretaria de Políticas para Mulheres), registrou em 2015 cerca de 10 casos de violência sexual por dia, computando a média de oito estupros diários, um a cada três horas. Diante desses dados podemos concluir facilmente a existência da cultura do estupro no Brasil.

A violência de gênero exige uma educação que trate diretamente do assunto. São meninas, mulheres e a dimensão feminina de meninos e homens que são violentadas diariamente no Brasil. É necessário e urgente educar novas sensibilidades e consciências. Educação de gênero nas escolas é condição para a superação desta modalidade de violência, compreendendo que o estupro não começa na conjunção carnal e nem termina ali. Começa quando uma pessoa é desprezada na sua condição humana e a sua sexualidade é tida como do domínio do outro.

Se cultura é uma construção humana, também é possível desnaturalizá-la e reconstruí-la em outras bases, em bases de respeito e compreensão em que todas as pessoas reconheçam suas autonomias para determinar as próprias regras sobre seus corpos e suas sexualidades.

Categoria: Artigo
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