Assassinato de reputação: sigamos em busca de dissensos democráticos

01/07/2019, às 17:07 (atualizado em 02/07/2019, às 18:47) | Tempo estimado de leitura: 13 min
Por Tatiana Lionço*
Em tempos de ódio disseminado como o que nos encontramos, faz-se urgente a reflexão coletiva sobre ponderações éticas no uso da palavra enunciada para expressar dissenso. Leia no artigo de Tatiana Lionço, psicóloga e professora da UnB.
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Não há consenso no debate acadêmico sobre a liberdade de expressão e seus limites. Há relativo consenso, no entanto, de que este debate se organiza em torno de duas proposições distintas, protagonizadas por Ronald Dworkin, por um lado, e Jeremy Waldron, por outro. Dworkin defende que a liberdade de expressão deve ser garantida de modo amplo, não devendo ser cerceada pois todo argumento pode ser combatido por meio de argumentos contrários. Seria próprio ao regime democrático o dissenso e, portanto, a liberdade na expressão seria fundamental inclusive para que a coletividade disponha de referências sobre a multiplicidade de visões de mundo. Nesta perspectiva, caso se limitem certos discursos, qualificando-os como odiosos, perder-se-ia a oportunidade de argumentar contrariamente a eles, carecendo assim da possibilidade de justificação da recusa de certos modos de agir e de se relacionar dos quais se discorda em princípios morais.

Contrariamente, a proposição de Waldron é a de que o discurso de ódio, por exemplo, não deve ser entendido como livre expressão do pensamento, já  que carregaria em si potencial danoso e decorreria em efeitos materiais lesivos a seus destinatários, devendo, portanto, ser evitado por meio de cerceamentos à liberdade de expressão.

Ainda que não seja fácil dirimir tais controvérsias acadêmicas e na interpretação do Direito, fato é que o Código Penal estabelece limites para a liberdade de expressão, incidindo sobre a tipificação de enunciados como ilícitos passíveis de julgamento e de reparação na forma da lei. É o caso dos crimes contra a honra, que violariam o direito à dignidade. São três os tipos penais em nosso ordenamento jurídico: a calúnia (atribuição de crime sem provas); a difamação (disseminação de representações desqualificadoras sobre alguém, violando assim sua integridade moral ou reputação), e a injúria (violação da reputação de um sujeito decorrente da anunciação direta de uma ofensa dirigida à sua pessoa). A existência destes tipos penais, contudo, não resolve a controvérsia sobre os limites na liberdade de expressão, já que pressupõe o julgamento da expressão sobre alguém após sua  enunciação.

 O discurso de ódio, o governo Bolsonaro e o assassinato de reputação

O discurso de ódio não é de fácil tipificação. A fronteira entre o direito à expressão de opinião e o direito a não ser ofendido pela opinião de outra pessoa, ou seja, o caráter subjetivo da injúria, recai também sobre a tipificação do discurso de ódio contra grupos sociais. Existem divergências epistemológicas sobre a pertinência ou não da limitação do direito à expressão, em tempo em que também se faz necessário refletir sobre os efeitos decorrentes das palavras dirigidas com intencionalidade de provocar danos.

Exemplo de tipificação do discurso de ódio é a injúria racial, pois por meio das palavras se coloca em ato o racismo, discriminando por meio da violação dos direitos associados à honra e à dignidade. Importante mencionar que o discurso de ódio, a difamação, a calúnia e a injúria racista podem decorrer, inclusive, em outras formas de discriminação, tais como perda de emprego por demissão ou mesmo abandono do cargo por assédio, rompimento de vínculos com pessoas, grupos e/ou instituições decorrentes da deterioração da reputação, entre outros. Recentemente, o entendimento jurídico dos limites da liberdade de expressão foi estendida, na lógica da tipificação do racismo e os modos como pode se praticar por meio da fala, para a população LGBT, em importante decisão da suprema corte brasileira. No geral, no entanto, o discurso de ódio se mantém como de difícil tipificação, e contamos com uma proposição legislativa que tramita no Congresso Nacional, apresentada pela Deputada Federal Maria do Rosário.

Podemos refletir sobre este dissenso no entendimento do discurso de ódio a partir da prática do assassinato de caráter ou de reputação. No contexto estadunidense, a expressão “assassinato de caráter” tem sido acionada para se referir a expressões de difamação agravadas, que consistiriam em tentativa de destruir a representação moral de um sujeito ou de grupos sociais por meio de narrativas depreciativas ao seu respeito. O assassinato do caráter é praticado por meio de uma campanha de difamação dirigida a uma pessoa, instituição ou a um grupo social. Trata-se de ação deliberada, ou seja, premeditada e intencionada, visando o prejuízo do objeto da difamação.

O assassinato de reputação envolve a disseminação de informações inverídicas, e/ou distorcidas, visando consequências na lógica da perda de outros direitos, tais como trabalho, participação política, liberdade de associação, entre outros. A pessoa, grupo ou instituição que se torna objeto de uma campanha para que seu caráter seja destruído pode perder imediatamente direitos, sem que haja tempo hábil para a verificação do caráter ilícito das expressões que a condenaram ao descrédito público. Isso significa que estamos diante de uma prática organizada para o agenciamento da precarização do gozo de outros direitos, tendo como consequências discriminações não passíveis de reparação por meio indenizatório senão como medidas paliativas diante dos agravos decorrentes da campanha difamatória. Como reparar a destruição de reputação de uma pessoa, por exemplo, que decorreu na impossibilidade de inserção no mercado de trabalho, ou que se materializa em conteúdos que permanecerão durante muitos anos no ciberespaço?

Como efeitos das campanhas de difamação voltadas para o assassinato de caráter ou de reputação, podemos citar o rompimento de vínculos sociais, a privação do direito à participação em condição isonômica em organizações e agravos à saúde mental, no caso de sujeitos e grupos sociais. O assassinato de caráter de uma pessoa ou de um grupo social, no limite, pode decorrer na perda do direito à vida. No caso de instituições, consequências decorrentes das campanhas de difamação podem se traduzir na perda de oportunidades que colocam em risco a manutenção da organização, levando à sua liquidação, ou no caso de instituições públicas, à supressão da manutenção de setores, programas e projetos.

Podemos identificar que o governo Bolsonaro adota a estratégia do assassinato de reputações como forma de legitimar seus próprios posicionamentos políticos. A campanha política fora organizada em torno da destruição da reputação não apenas do ex-presidente Lula e da ex-presidenta Dilma, mas também do candidato Fernando Haddad. Em uma perspectiva mais ampla, o bolsonarismo tem apostado no assassinato de reputação de ativismos políticos, no geral, e mais especificamente daqueles voltados à defesa dos direitos relativos à terra, à preservação de culturas e saberes de povos tradicionais, da preservação do meio ambiente, dos direitos sexuais e dos direitos reprodutivos.

Para tanto, organiza junto a seus aliados e apoiadores uma campanha permanente de destruição da reputação de movimentos sociais tais como Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), movimentos sociais dos povos indígenas, movimentos feministas, movimentos negros, movimentos de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais. Para tanto, deturpa informações para acusá-los de criminosos, conspiradores contra a pátria, terroristas, oportunistas que visariam regalias em benefício próprio, invertendo perversamente a lógica dos privilégios de sua cultura branca, patriarcal, racista e misógina, ávida por explorar e manter as desigualdades econômicas que também são tão profundamente marcadas por determinações sociais da iniquidade.

Em busca de consensos sobre a manutenção dos dissensos democrático

Em tempos de ódio disseminado como o que nos encontramos, faz-se urgente a reflexão coletiva sobre ponderações éticas no uso da palavra enunciada para expressar dissenso. Faz-se imprescindível que possamos pactuar coletivamente, por meio do debate público permanente, as responsabilidades éticas no uso da palavra diante das posições contrárias, promovendo responsavelmente a permanência dos dissensos democráticos. A ruína da democracia é também passível de imaginação em uma sociedade em que, legitimamente e sem amplo debate crítico, se apela para o extermínio do direito à dignidade de pessoas, grupos ou instituições.

Precisamos nos preocupar com a questão de que o assassinato de reputação ou de caráter não é uma estratégia que tem sido apenas usada pelo governo Bolsonaro, consistindo em uma prática que tem se tornado relativamente comum entre movimentos sociais e ativistas, mesmo à esquerda. Exemplo disso são os escrachos públicos como estratégia para a exposição de denúncia ou afirmação de divergência política e de princípios.

Podemos pensar que o escracho sistemático e organizado é uma forma de assassinato de reputação que tende a se assemelhar a uma perspectiva punitivista diante de injustiças. Por outro lado, precisamos defender o Estado democrático de direitos, interpelar as instituições públicas para que cumpram sua função investigativa e judicial, reservando à coletividade amplo direito à participação política nos mais diversos espaços, o que implica direito à liberdade de expressão para todas as pessoas, diante dos mais variados conflitos e dissensos, inclusive entre movimentos e grupos sociais.

Tendemos a polarizar de modo binário as divergências políticas, mas a democracia exige que abramos vetores para multiplicidades, requerendo, assim, que vozes possam circular em jogos permanentes de interpelação recíprocas. Acusações sumárias, muitas vezes organizadas em campanhas para a destruição do caráter de uma pessoa, grupo ou instituição, não coaduna com uma perspectiva de justiça em que se garante amplo direito de defesa, de associação e de participação paritária. Finalizo esta reflexão fazendo um apelo para que, especialmente ativistas de direitos humanos, renunciem ao escracho e às campanhas de escracho como estratégia de afirmação do dissenso, procurando caminhos de interpelação junto às pessoas, grupos e instituições das quais discordam, ou mesmo diante das quais haveria necessidade de expor insatisfação, entendimento de violação ou prejuízo sofrido, de modo a promover reflexão e mover resposta, diante da qual acordos se estabelecem nos termos de limites e possibilidades a criar conjuntamente.

Não precisamos adotar as mesmas estratégias daqueles dos quais discordamos em princípios. Isso também significa que não precisamos destruir quando nos sentimos de algum modo destruídas, que não precisamos ferir como resposta ao nosso próprio ferimento. O que poderia mover transformação é romper o ciclo estabelecido da violência e, mesmo que não possamos evitá-la absolutamente, podemos decidir não praticá-la como estratégia política.

 

*Tatiana Lionço é doutora em Psicologia e professora da UnB.

 

Categoria: Artigo
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