Adolescentes do sistema socioeducativo também são humanos!

Na semana da consciência negra, o Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) apresenta Nóis Também É Humano – uma campanha de educomunicação feita por adolescentes que cumprem medida socioeducativa no Distrito Federal.

Nela, cerca de 120 adolescentes contam um pouco de suas histórias e cotidiano em poesias, fotografias, boletins, vídeos e programas de rádio – materiais produzidos durante as oficinas realizadas em seis turmas nas unidades de internação de Planaltina (UIP), Recanto das Emas (UNIRE), Santa Maria (UISM) e São Sebastião (UISS), durante o ano de 2019.

A campanha é fruto de encontros, oficinas, diálogos e experiências, no âmbito do projeto Vozes da Cidadania/Onda – Adolescentes em Movimento pelos Direitos, iniciativas do Inesc.

“Com essa mensagem ‘nois também é humano’, escolhida pelos adolescentes como mote da campanha, eles se afirmam como humanos, sujeitos de direitos. É também resultado de um caminho pedagógico antirracista, de enfrentamento às discriminações e violências, e que prioriza a democracia, a cidadania e os direitos humanos”, afirmou Márcia Acioli, assessora política do Inesc.

Quem são esses adolescentes?

Livro de poesias da campanha

A campanha Nóis Também é Humano é, ainda, um convite para conhecer os adolescentes, muito além do ato infracional que cometeram, em um momento de acirramento da violência e de mortes de crianças e adolescentes negros da periferia, como foi o caso de Ágatha, Giovana e Vinícius. A eles foi dedicado o livro de poesias da campanha, que faz parte da coletânea Para Além das Algemas.

O último levantamento anual do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), com dados de 2015, mostra um total de 26.209 adolescentes em restrição ou privação de liberdade.  Destes, 61,03% foram considerados de cor parda/preta, número que pode ser maior, já que 14.67% não tiveram registro quanto a sua cor.

Os adolescentes negros e de periferia convivem intensamente com uma realidade de dor, mortes e encarceramento. Para Márcia Acioli, essas desigualdades sociais, o apelo radical pelo consumo, as famílias desprotegidas e expostas a violências de diversas naturezas são os principais motores da perversa engrenagem que leva adolescentes para o circuito da criminalidade. “Por isso, é urgente pensar em prevenção, com investimento em políticas públicas nas áreas mais vulneráveis e, uma vez que o adolescente cometa o ato infracional, aplicar uma medida socioeducativa que ofereça condições para que ele desenvolva possibilidades para o convívio social com novas perspectivas”, defendeu.

Saiba mais e acesse os materiais da campanha “Nois também é humano”

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Maior desmatamento na Amazônia em 11 anos: atingidos pelo desmonte ambiental de Bolsonaro se reúnem em Brasília

Uma área equivalente ao Distrito Federal e as cidades de São Paulo, Rio de Janeiro e Belém somadas foi desmatada na Amazônia de agosto de 2018 a julho de 2019. Foram embora 9.762km2 de floresta, a mais alta taxa desde 2008 e um aumento percentual de 29,5% – o maior salto anual dos últimos 22 anos.

Esse é o resultado do primeiro índice divulgado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) no governo Bolsonaro. Na avaliação dos ouvidos pelo Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos), nada disso é por acaso.

Para Iremar Ferreira, da Aliança dos Rios da Panamazônica, os governos anteriores construíram políticas públicas para proteger as áreas de floresta. “Diferente do atual, que tem um discurso racista, inimigo da floresta e promove um total desmonte, não só das políticas públicas, como incentiva os invasores a se apropriarem e avançarem sobre a Amazônia”, afirma.

Para Ferreira, antes, as denúncias eram averiguadas pelos órgãos de fiscalização. Hoje, são muitas as inseguranças, os riscos e as incertezas.

Josep Iborra Plans, o Zezinho da CPT Amazônia, conta que a crise econômica já empurrou muita gente para a ilegalidade, diante da falta de soluções para geração de renda. Pessoas que passaram a apostar na grilagem de terras como fonte de recursos.

Desde a posse de Bolsonaro, no entanto, isso tomou outra proporção. Em Rondônia, os indígenas e os seringueiros têm sentido mais intensamente o impacto desses desdobramentos e relatam a invasão das suas terras, bem como das reservas extrativistas.

Caos fundiário e empobrecimento da população

A situação se conecta com o problema fundiário, histórico no Brasil. Zezinho avalia que “Em geral, tem aumentado o caos fundiário, de ocupação de áreas derrubadas e descumprimento de leis ambientais”.

Para Pedro Martins, assessor jurídico da Terra de Direitos em Santarém (PA), o primeiro impacto do desmonte das políticas socioambientais está no empobrecimento da população. O cenário inclui a precarização do trabalho e a diminuição do apoio para a produção rural, que faz com que as rendas familiares caiam.

‘Em seguida está a perda da qualidade de vida com o aumento do desmatamento. Apesar de os governos anteriores terem os seus problemas, as políticas assistenciais foram garantidas”, diz. Já Bolsonaro ainda não garantiu os recursos para o pagamento do 13º do Bolsa Família, por exemplo.

Seminário “Tendências e Dinâmicas Recentes do Desmatamento e Queimadas na Amazônia”

Estas questões estarão em pauta no seminário “Tendências e Dinâmicas Recentes do Desmatamento e Queimadas na Amazônia” organizado pelo GT Infraestrutura, do qual participa o Inesc, que acontecerá dia 28 de novembro no Plenário 02, Anexo II, da Câmara dos Deputados em Brasília. O Inpe, o MPF e representantes de diversas ONGs e movimentos sociais participarão do debate, de 09 às 18h. O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, também foi convidado para a mesa de abertura.

Queimada não é questão cultural

Questionado sobre o expressivo aumento do desmatamento e o número de focos de queimadas na Amazônia durante o seu governo, Bolsonaro disse que não é possível acabar com esses problemas, pois trata-se de “uma questão cultural”. Os dados mostram que o presidente está errado.

Análise do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM) mostra que 35% do desmatamento é fruto de grilagem de terras. Outra análise, do InfoAmazônia, revela que a parcela de grandes desmatamentos – acima de 500 hectares – foi a mais elevada desde 2008. Já as terras indígenas e unidades de conservação tiveram em 2019 o maior índice de desmatamento da última década.

Ao mesmo tempo, entre janeiro e setembro de 2019 o IBAMA aplicou 39% menos multas que no ano anterior. Episódios como o “Dia do Fogo”, organizado por fazendeiros, madeireiros e empresários em Novo Progresso (PA), boa parte deles apoiadores de Bolsonaro, triplicou os focos de incêndio na região.

Para Jackson Dias, do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) no Pará, tudo isso indica que esse processo de desmatamento e queimadas é coordenado. “É fundamental desmistificar o que o presidente falou, tentando colocar a culpa nos pequenos agricultores e na população em geral, como se isso fosse práticas culturais da população da Amazônia. Muito pelo contrário. Os fatos mostram uma realidade bem diferente. E o desmatamento em Terras Indígenas e Unidades de Conservação revela um processo de invasão dessas terras públicas para que haja uma expulsão dessas populações tradicionais dos seus territórios”, lembra Jackson.

Figura 1 – Mapa de calor da ocorrência de desmatamento. Elaboração: Inpe

Estados também são responsáveis

O cenário local influencia decisivamente neste cenário. A maior taxa de desmatamento foi registrada no Pará, com 39,5% do total na Amazônia, seguido de Mato Grosso, com 17,2%. Chama a atenção, no entanto, o caso de Roraima, que teve uma alta de 216,4%. No período, uma área de 617 km² foi desmatada no estado, a maior taxa já registrada desde 2004.

Em Roraima, o governador eleito em 2018 foi Antonio Denarium (PSL), que tem negócios no plantio de soja, milho e na pecuária. Denarium também foi diretor-presidente do Frigo 10 e diretor da Coopercarne Cooperativa dos Produtores de Carne de Roraima.

De acordo com o governador, em evento este mês em Brasília, o país precisa acabar com “o radicalismo ambiental”.

Em Rondônia, a atuação do governador, Coronel Marcos Rocha (PSL), é inexpressiva, na avaliação de Zezinho da CPT: “Uma atitude mais passiva realmente, de tolerância”, diz. O Pará, estado campeão em desmatamento, perdeu 3.862 km2 de floresta entre agosto do ano passado e julho deste ano, aumento de 41% em relação ao ano anterior.

Em julho, o governador Helder Barbalho (MDB) promulgou uma nova Lei de Terras, que, na avaliação do Ministério Público Federal, abre espaço para a legalização de grilagem, do desmatamento ilegal e está repleta de inconstitucionalidades. As terras públicas paraenses somam 21,4 milhões de hectares, área pouco menor que o Reino Unido inteiro.

Para Jackson Dias, do MAB, que atua em Altamira, município que sofre os impactos de Belo Monte, o processo de desmatamento anda de mãos dadas com os grandes projetos de infraestrutura, a soja e a pecuária, que expulsam as famílias e pequenos agricultores de seu território: “O discurso de Bolsonaro incentiva esses grileiros e desmatadores e criminaliza os movimentos sociais, isso é muito ruim para quem está na Amazônia”, diz.

Na avaliação de Jackson, o governo de Helder Barbalho tenta vender a imagem de que é “sustentável”. Para isso, formou um consórcio com outros governadores da Amazônia para debater o tema. No entanto, a iniciativa não conta com a participação popular e de movimentos sociais.

“Estão tentando criar um fundo da Amazônia Oriental, por exemplo, e viabilizar algumas soluções institucionais sem discutir com a população atingida e as organizações”, conta Jackson. Enquanto isso, o desmatamento volta a bater recordes.

Estratégias de enfrentamento

No contexto de organização da sociedade civil e movimentos sociais para enfrentar a realidade atual, Iremar Ferreira cita a atuação na região de fronteira do Brasil com a Bolívia, na Campanha “No a Represas en la Amazonia, sí a la vida”, feita com as comunidades ameaçadas pela continuidade do projeto da Hidrelétrica Binacional. “Nossa meta é fortalecer essas comunidades com a construção de Protocolos de Consulta e Consentimento. A estratégia direta é mobilizar Indígenas, seringueiros, ribeirinhos, pescadores e campesinos, esse é o processo em curso para resistir a essa ofensiva”, conta.

Para Zezinho, da CPT, o caminho é fortalecer os grupos de debate, reorganizar as comunidades, a resistência e a união para reivindicar os direitos na justiça, além das denúncias internacionais como um dos principais eixos de atuação.

Para Pedro Martins, da Terra de Direitos, a população local esteve e ainda está organizada. “O diferencial agora será a construção de mais alianças. O problema não é soltar a mão de alguém, mas de segurar a mão de quem tinha se afastado”, acredita.

Já de acordo com Jackson Dias, do MAB, a primeira coisa é não se desesperar e não pensar em medidas individuais, mas ter uma unidade no pensamento e ação. “Esse seminário que vai ter dia 28 é importante para que as organizações possam se posicionar na sua análise e no que fazer diante desse cenário. Isso deve ser pautado na agroecologia, na soberania popular na mineração, na energia, na agricultura, na segurança alimentar. São vários aspectos em que é preciso uma unidade para que se possa avançar do ponto de vista da pressão política e na organização da população”, acredita.

Jackson lembra ainda que é fundamental que esse debate chegue nos rincões da Amazônia. “É um debate que a população local tem que se apropriar também porque estamos sofrendo na pele com o aumento da temperatura, as queimadas, o desmatamento. É preciso dialogar o máximo possível com a população e avançar em uma política que tenha de fato um tripé da soberania, da distribuição da riqueza e controle popular”, finaliza.

Para além das algemas (3ª ed.) – Nóis também é humano

Terceira edição da coletânea Para Além das Algemas, que nasceu espontaneamente no âmbito do projeto Vozes da Cidadania/Onda, em 2017. Oficinas de poesia e de fotografia motivaram a produção de histórias, revelação de sensibilidades e olhares que podem surpreender pela delicadeza e intensidade.

O livro também é peça de uma campanha educomunicativa que nasce para repercutir vozes até então silenciadas: Nóis Também É Humano, uma criação coletiva dos socioeducandos.

O que muda no financiamento da educação com o novo pacto federativo?

Está ocorrendo o desmonte das políticas públicas garantidoras de direitos, em um ataque neoliberal ao Estado, como se pode constatar desde a aprovação da Emenda Constitucional 95, conhecida como “teto dos gastos” e, mais recentemente, com a Proposta de Emenda Constitucional nomeada de PEC do Pacto Federativo.  Além de cotidianas manifestações públicas de gestores governamentais contra os direitos humanos, a ciência e o pensamento crítico.

Com relação à política de educação é notória a intensidade do ataque: propostas como “escola sem partido”, em reação ao que chamam de “ideologia de gênero” e imposição de militarização de escolas são alguns dos exemplos mais famosos. No âmbito orçamentário, vieram ataques por meio dos contingenciamentos e retirada de recursos, como propõe o projeto Future-se, apresentado às universidades como panaceia, mas que é uma forma de permitir que organizações sociais passem a gerir universidades públicas, com recursos vindos do mercado. Outra evidência do desmonte na educação é a proposta de junção das agências de fomento Capes e CNPQ, que ficariam sob a responsabilidade direta da Presidência da República e não mais do MEC ou Ministério da Ciência e Tecnologia, criando uma enorme anomalia para o sistema.

O ataque mais recente veio da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 188/2019, chamada de PEC do pacto federativo, que, entre outras coisas, propõe a unificação dos orçamentos da saúde e da educação. Hoje, os estados destinam para a saúde pelo menos 12% da receita corrente líquida (soma de receitas tributárias, contribuições patrimoniais, industriais, agropecuárias e de serviços, transferências correntes, entre outras — menos o que fica para estados e municípios por determinação constitucional), e 25% para educação. No caso dos municípios, os percentuais são 15% e 25%, respectivamente. A PEC agrega os percentuais (40%) de forma que um prefeito poderá, por exemplo, aplicar 20% em saúde e os outros 20% em educação. A proposta provocará uma disputa de recursos entre as áreas, enfraquecendo-as.

Antes de analisar as consequências disso, vamos relembrar como chegamos ao atual quadro de políticas públicas na área da educação:

Linha do tempo da educação

Com a Constituição de 1988, a educação passou a ser um direito de todas as pessoas e dever do Estado, que foi obrigado a oferecer vagas desde a educação infantil, até o ensino médio, ou educação básica. Direito incorporado de forma progressiva, em 1988, no texto constitucional, ampliado com a Lei de Diretrizes de Bases da Educação em 1996 e, mais tarde, com a Emenda Constitucional 59 de 2009.

Para se ter a medida da importância do texto constitucional, que está sofrendo o maior ataque desde a sua aprovação, siga o fio abaixo sobre o direito à educação ao longo da história do Brasil.

1) Até 1930 o ensino que ia além da alfabetização era para poucos. A maior parte da população recebia aprendizagens apenas para o trabalho nas fábricas e no campo.

2) A partir de 1930, o que era responsabilidade apenas dos estados, passa a ter uma centralidade maior no governo federal, que criou o Ministério da Educação e Saúde Pública, com verbas específicas para essas áreas. Apesar do avanço, o ensino público e gratuito não atinge as massas trabalhadoras, que fica bem distante do que é oferecido às elites.

3) Na década de 1950, quase metade da população acima de 15 anos se declarava analfabeta e apenas 15% dos matriculados concluíam a 1ª série.

4) Durante a ditadura militar a educação foi voltada para a profissionalização e o produtivismo, sendo a escola um aparelho de cerceamento do pensamento e reforço das concepções dos militares no poder. O ensino de filosofia foi proibido e em seu lugar nasce a “moral e cívica”. Do mesmo modo, geografia e história foram substituídas por “estudos sociais”. A obrigatoriedade de repasse de verbas do âmbito federal para estados não é perene e os recursos vão escasseando, indo de 7,6% em 1970 para 5% em 1978.

5) A Constituição de 1988 (CF/88) trouxe a educação como direito social, não mais como assistencialismo do Estado. E, por pressão popular, especialmente dos movimentos feministas, a etapa da educação infantil (creche e pré-escola) foi reconhecida.

6) A CF/88, em suas disposições transitórias, obrigava que o Estado universalizasse o ensino e erradicasse o analfabetismo em 10 anos.

7) A partir daí vieram as leis infraconstitucionais que mudaram a realidade da educação brasileira: o Estatuto da Criança e do Adolescente em 1990 e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação em 1996.

8) Na década de 1980, a taxa de analfabetismo (de acordo com o IBGE) era de 25,9%, hoje é de 6,8%.

Como se pode constatar, a partir da vigência da CF/1988, em termos educacionais, o país caminhou bastante, mesmo que com várias lacunas de qualidade ou de acesso com relação a raça e região, especialmente campo/cidade. Foi a partir daquele momento que se reconheceu até mesmo  as diferenças, como a importância da educação indígena, por exemplo, garantindo uma maior reflexão sobre a oferta de educação multifacetada.

Contudo, esse caminho nunca havia sofrido risco tão grande como agora, em seu conjunto, seja com relação aos modelos educacionais propostos, como aos recursos orçamentários destinados à política.

PEC do Pacto Federativo e disputa de orçamentos entre educação e saúde

A PEC do Pacto Federativo, além de propor a junção dos orçamentos, o que promoverá uma disputa entre áreas essenciais para a população, como são a saúde e a educação, abre flanco para a desvinculação dos recursos, ao flexibilizar a sua utilização.

Vejamos o exemplo do Salário-Educação

Hoje recolhido pela União e repassado para estados e municípios, de acordo com a proposta, o Salário-educação poderá ser integralmente repassado, não ficando nada na União, ou melhor, para o Fundo Nacional de Desenvolvimento do Ensino (FNDE). O Fundo é essencial para amenizar as desigualdades regionais, por meio de programas que são, em parte, financiados com recursos do salário-educação.

A saber, o Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD), até 2018 distribuído para todos os municípios; o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), garantindo alimentação escolar balanceada e de boa qualidade; o Programa Nacional de Transporte Escolar (PNATE), que entra como complementar para os municípios que o acessam, com padrões mínimos de segurança e conforto para crianças e adolescentes; e o Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE), que visa ajudar escolas a resolver problemas estruturais, ou mesmo construírem quadras ou bibliotecas com esse recurso, sem burocracias, além de serem fiscalizados pelos conselhos escolares, garantindo participação na forma de utilização.

Até o final da primeira quinzena de novembro de 2019, o que havia sido executado, incluindo os restos a pagar, era um montante de R$ 6,07 bilhões, conforme mostra a tabela 1, que traz o orçamento desses programas administrados pelo FNDE, de maneira centralizada, garantindo tratamento equitativo entre os diferentes entes federados.

A promessa do Ministério da Economia com o pacto federativo é a de que estados e municípios teriam cerca de R$ 9 bilhões a mais em seus orçamentos. No entanto, quando se olha para a arrecadação dessa contribuição, os números não batem, conforme mostra o infográfico abaixo, pois o que ficou na União foi um total de R$ 6,9 bilhões. E o que se precisa é acabar com o teto dos gastos, não com o FNDE e suas importantes políticas para amenização das desigualdades regionais.

Uma das inovações da Constituição de 1988 foi prever que o orçamento público teria a função  de redução das desigualdades, princípio este que a PEC do Pacto Federativo quer extinguir. Com relação à educação básica, desde os primeiros meses desse governo os repasses complementares para políticas tais como ensino integral vêm minguando. E agora deixam clara a intenção de não mais contribuir financeiramente para garantir equidade. A proposta retira, ainda, a obrigatoriedade de o governo gerar vagas em escolas onde houver falta. O que diz a CF/88: que o governo é obrigado a investir prioritariamente na expansão de sua rede de ensino quando houver falta de vagas e cursos regulares da rede pública em uma localidade. No entanto, se a proposta vingar, essa obrigação será retirada, o que passa a ideia de que em caso de falta de vagas, os estudantes precisam resolver por conta própria. O governo alega que há possibilidade de acessar bolsas de estudo na rede privada. E talvez o que esteja por trás da medida seja o favorecimento da educação privada em detrimento da pública.

Outro agravante é que o relator da matéria, senador Márcio Bittar (MDB/AC) quer aprofundar ainda mais o desmonte orçamentário, pois diz que, por ser um “super liberal”, acrescentará ao orçamento da saúde e educação os gastos com aposentados e pensionistas, reduzindo significativamente os montantes destinados a estas políticas e aprofundando a crise que já está instalada.

Portanto, o que se avizinha é um retrocesso de mais de 30 anos nas políticas públicas garantidoras de direitos no país. A reforma da previdência e as alterações na CLT já foram aprovadas e, se confirmada a PEC do Pacto Federativo, será ladeira abaixo. É preciso muita mobilização para dificultar e impedir essa perda de direitos.

Leia também: Entenda como funciona o financiamento da Educação Básica no Brasil

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Como Roraima planeja enfrentar crise financeira e social?

Roraima tem estado cada vez mais nos holofotes, seja devido à imigração dos venezuelanos ou à intervenção federal que aconteceu no final de 2018. Mas como será que o atual governo do estado está se preparando para enfrentar os desafios?

O Inesc, em parceria com o Núcleo de Mulheres (Numur – RR) e o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), realizou um ciclo de três oficinas de formação, chamado Uma cidade com políticas públicas acolhe bem a todos/as! Orçamento Público & Direitos dos/as migrantes. A partir da metodologia Orçamento & Direitos, estimulamos a aliança entre lideranças migrantes e organizações da sociedade civil de Boa Vista, visando a incidência no orçamento público para a efetivação de políticas que acolham os/as migrantes – ao mesmo tempo em que se consolidem como um legado para a população roraimense.

Plano Plurianual, o PPA

Assim como o governo federal, os estados também estão discutindo seu Planos Plurianuais (PPA). O PPA define os programas e ações que o governo pretende desenvolver nos próximos quatro anos, neste caso, de 2020 a 2023. No âmbito federal, o PPA apresentado prioriza ricos, ignora racismo e sexismo, e não promove ações de combate às desigualdades sociais.

Ao contrário do seu aliado na presidência, a gestão do atual governador Antônio Denarium (PSL) não esvaziou completamente o PPA e manteve a imagem de participação social em sua construção. Mesmo assim, há muitas concepções parecidas nas duas esferas: o tom do PPA de RR é o da gestão eficiente, da ideia de um governo que funciona como empresa e de Roraima como “terra de investimentos”. Da mesma forma, embora a participação tenha acontecido por meio das audiências públicas e da consulta virtual, sendo inclusive muito exaltada nos documentos, ela parece ter sido meramente proforma, mantendo um verniz democrático que não se traduziu na inclusão das demandas populares no programa.

A dimensão de inclusão social no PPA 2020-2023 tem um orçamento previsto de mais de R$ 5 bilhões, o que representa um aumento de mais de 40% em relação ao anterior. As outras dimensões, de eficiência e transparência na gestão pública e de crescimento sustentável, contam com R$ 6 bilhões e R$ 900 milhões, respectivamente. O aumento de recurso para programas sociais significa uma priorização, na prática, da inclusão social? Selecionamos algumas políticas para um olhar mais aprofundado sobre o tema:

Migração venezuelana

No que tange à questão migratória, há várias menções no PPA à chegada dos venezuelanos/as, mas todas apontam para as dificuldades criadas pela situação. Porém, os migrantes venezuelanos também contribuem economicamente para o estado, por meio do seu trabalho – muitas vezes super explorado e precarizado – ou pelo aumento do consumo e, consequentemente, pagamento de impostos indiretos. Além disso, o estado aumentou sua arrecadação devido à migração:  recebeu mais recursos do Fundo de Participação dos Estados (FPE) e mostrou superávit do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS).

A despeito disso, no PPA existe apenas uma ação que cita os migrantes, a “Execução de Atividades na Área de Defesa dos Direitos dos Migrantes e Refugiados”, com previsão de R$ 66 mil e, destes, apenas R$ 1 mil são para 2020. Não há outra menção ou inclusão dos/as migrantes como público alvo de nenhuma outra política do novo PPA de Roraima

Essa ação está inclusa no programa Proteção Social Especial. Ele teve um grande aumento na previsão de recursos, de R$ 9 para R$ 14 milhões, concentrados em três ações: além da sobre os migrantes, de cofinanciamento de ações em parcerias com outros órgãos (não especifica quais) e de fortalecimento dos serviços de proteção especial. No PPA anterior, o programa era composto por cinco ações, sendo que três delas eram destinadas à construção, reforma e aparelhamento de unidades de atendimento. Essas três ações foram retiradas do novo PPA e é preciso saber se o recurso foi de fato investido, bem como o atual funcionamento e condições das Unidades em questão.

Já o Programa de Proteção Social Básica teve sua previsão orçamentária diminuída, saindo de pouco mais de R$ 7 milhões para R$ 4 milhões. Foram retiradas duas ações, de implementação de ações desportivas comunitárias e de inclusão produtiva de famílias em vulnerabilidade social. Esta última recebeu grande destaque em nossas oficinas, por sua especial importância no contexto do grande fluxo migratório. É importante frisar que a diminuição do orçamento previsto torna-se ainda mais grave já que novas ações foram incluídas, de forma que há mais demandas para uma quantia menor de recurso. As novas ações tratam do apoio à gestão de programas federais, como o Bolsa Família e o Criança Feliz.

Restaurantes Comunitários

Foi extinto do PPA o programa de segurança alimentar e nutricional. Duas ações deste programa foram incorporadas no programa de desenvolvimento social, com muito menos recurso previsto do que no PPA anterior. Nas oficinas do Inesc,  a demanda pela ativação dos restaurantes populares foi bastante levantada e registrada pelos participantes – migrantes e roraimenses – sendo solenemente ignorada, não estando prevista no novo PPA.

No programa de desenvolvimento social está inclusa também uma ação de promoção da igualdade e enfrentamento à violencia contra a mulher, que conta com quase R$ 660 mil no PPA 2020 -2023. Está previsto também mais de R$ 18 milhões para o gerenciamento da Casa da Mulher Brasileira. No PPA anterior, a política para mulheres constava do programa de gestão, e teve cerca de R$ 1 milhão de recursos. Bom sinal, caso as ações sejam de fato implementadas.

Governo prioriza encarceramento

No entanto, a ação que teve um aumento de R$ 86 milhões de reais foi a gestão do sistema penitenciário, mais que dobrando o valor previsto anteriormente, chegando a R$ 145 milhões de reais no PPA 2020-2023. Nas ações para a juventude, o fortalecimento da política para esse público tem previsto R$ 32 mil. Para o fortalecimento do sistema socioeducativo há previsão de mais de R$ 5 milhões. Ou seja, prioriza-se no orçamento o encarceramento, e menos ainda a proteção dos jovens.

Apesar de citar longamente a necessidade de investimento no desenvolvimento econômico de Roraima e a importância do estímulo ao mercado de trabalho, o programa de governo sobre emprego teve sua previsão orçamentária para os próximos anos drasticamente reduzida, caindo de cerca de R$37 milhões para R$3,5 milhões.

Assim, mesmo com o aumento do orçamento para programas sociais, grupos altamente vulneráveis continuam deixados de lado na programação orçamentária do estado para os próximos anos. Fruto das oficinas do Inesc sobre orçamento público, a sociedade civil roraimense se organizou para entregar suas demandas e proposições para a câmara legislativa.

Como o PPA tramita até o final do ano, esperamos que a participação popular seja respeitada, não só na construção do Plano, mas também na sua fase mais importante, que é a de aprovação.

Líderes do Brics ignoram desigualdade de gênero

A foto oficial dos presidentes dos Brics para a 11ª Cúpula do bloco, realizada em Brasília nos dias 13 e 14 de novembro, é emblemática do machismo que predomina em nossos países. Não que seja muito melhor no resto do mundo. Segundo a ONU Mulheres, em junho de 2019, somente 11 mulheres eram Chefe de Estado e 12, Chefe de Governo.

Anualmente o Fórum Econômico Mundial lança o Índice de Desigualdade de Gênero. Este instrumento é construído a partir de 14 indicadores agrupados em quatro categorias: participação econômica e oportunidades, educação, saúde e empoderamento político. Para a edição de 2018, a última disponível, foram analisados 149 países. O índice varia de 0 – desigualdade total – a 1 – igualdade total.

Conforme pode ser observado nas tabelas 1 e 2, no geral, os países do Brics não estão entre os mais iguais do mundo em termos de gênero. A melhor posição é da África do Sul, que ocupa o 19º lugar. Isso se deve essencialmente aos quesitos de saúde e de empoderamento político, pois, em geral, as mulheres estão presentes no Executivo e no Legislativo. Ainda é preciso melhorar as dimensões de mercado de trabalho e de educação.

Em seguida vem a Rússia, situada no 75º lugar, dentre os 149 países pesquisados. O país apresenta péssimo desempenho, o pior do bloco, no que diz respeito ao empoderamento político das mulheres: elas são poucas no Parlamento e na liderança de ministérios. Mas está bem situado na área de saúde e relativamente bem nas áreas de educação e mercado de trabalho.

O Brasil, apesar de apresentar resultados positivos nos campos da saúde e da educação, não vai bem no que diz respeito ao mercado de trabalho e nos envergonha no tocante ao empoderamento das mulheres, ocupando posição próxima da Rússia. Em estudos sobre o perfil dos congressistas federais, o Inesc mostrou que menos de 15% são parlamentares mulheres.

Índia e China estão na rabeira, especialmente devido aos itens de saúde, educação e mercado de trabalho. No caso da China, o pior desempenho é o de saúde, posicionando o país no último lugar do ranking nesse quesito. Isso se deve essencialmente ao fato de haver mais homens vivendo mais tempo, pois nascem mais numerosos e estão menos submetidos à violência, doenças e desnutrição, entre outros fatores. Em termos educacionais, a China também não vai bem, em decorrência do maior analfabetismo entre mulheres do que homens.

Quanto à Índia, os principais problemas são os de saúde e mercado de trabalho. Nessas duas áreas, as diferenças entre homens e mulheres são abissais, posicionando o país no fim da fila.

Trabalho não remunerado

Informações de organizações internacionais corroboram as enormes desigualdades de gênero que prevalecem nos Brics. Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), em todos os países do bloco, as mulheres que vivem com crianças com menos de seis anos têm as menores taxas de emprego, em comparação não apenas com pais na mesma situação, mas também com homens e mulheres sem filhos ou com mais de seis anos.

E mais: de uma maneira geral, as mulheres gastam, no mínimo, duas vezes e meia mais horas do que os homens em trabalhos domésticos e de cuidados não remunerados. Estimativas das Nações Unidas revelam que o valor total dos cuidados não remunerados e do trabalho doméstico no mundo alcança patamares da ordem de 10 e 39 por cento do PIB. Isso representa uma enorme transferência de recursos de mulheres para outros setores da economia, uma vez que são as mulheres que carregam o fardo dos trabalhos domesticos e de cuidado.

As desigualdades de gênero bloqueiam o desenvolvimento: relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT) mostra que reduzir as desigualdades de gênero no mercado de trabalho a um patamar de 25% até 2025 poderia adicionar US$ 5,8 trilhões para a economia global e aumentar as receitas fiscais.

Independentemente do aporte de recursos para a economia que traz o fechamento da brecha existente entre homens e mulheres, é inaceitável que no século XXI as mulheres ocupem espaços de subalternidade, sendo sistematicamente oprimidas e violentadas em todas as partes do mundo – em maior ou menor grau.

Contudo, as lideranças políticas do Brics não consideram esse tema prioritário. Poderia ser diferente. O bloco tem todas as condições para conduzir desde o Sul Global um movimento amplo e profundo de enfrentamento das enormes brechas que separam mulheres de homens. Mas aí seria desencadear um processo revolucionário e não tem nada mais conservador do que os dirigentes desses cinco países. Muitas lutas continuam nos aguardando!

Nathalie Beghin é coordenadora da assessoria política do Inesc, integrante da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (Rebrip) e do BRICS Feminist Watch

 

Plano de Guedes constitucionaliza drenagem de recursos dos pobres para os ricos

O ministro da Economia Paulo Guedes entregou ao Congresso Nacional na última terça (5) três propostas de emenda à Constituição: a PEC do Pacto Federativo, a PEC dos Fundos Públicos e a PEC Emergencial. O nome dado a esse conjunto de propostas é Plano Mais Brasil.

Nossa avaliação inicial é muito preocupante: o Plano Mais Brasil constitucionaliza a drenagem de recursos públicos dos mais pobres para os mais ricos.

Em resumo, a PEC do Pacto Federativo altera regras que determinam a forma como serão gastos recursos dos estados, municípios e da União. A PEC dos Fundos Públicos prevê que recursos acumulados em fundos que tem destinação específica, como o Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), que aloca recursos para o seguro-desemprego e o abono salarial, sejam usados para pagamento da dívida pública. Por fim, a PEC Emergencial prevê medidas para reduzir despesas obrigatórias, como pagamento de salários integrais a servidores públicos.

Apresentamos aqui primeiras impressões, a partir da análise da apresentação do ministro Paulo Guedes.

Diagnóstico propositalmente parcial

Toda a culpa da crise fiscal é atribuída aos gastos públicos. Portanto, a solução para o mal, de acordo com esse raciocínio, é cortar as despesas. Não há no Plano qualquer proposta para aumentar as receitas por intermédio, por exemplo, (i) de uma reforma tributária progressiva (aumentar as alíquotas de imposto de renda, taxar lucros e dividendos, cobrar impostos de barcos e helicópteros, entre outras possibilidades); (ii) da cobrança das dívidas dos grandes devedores ou, ainda, (iii) da emissão de dívida pública, especialmente para investimentos.

Evitar pôr as receitas no páreo não é mero esquecimento. É mecanismo deliberado para proteger os que mais têm, pois significaria mexer no bolso dos nossos super-ricos. Bolsonaro e Paulo Guedes são seus fieis representantes, daí que, para preservá-los, propõem apresentar a conta aos que pouco ou nada possuem. Concentrar todos os esforços nos gastos é o caminho mais fácil, pois os pobres e miseráveis não têm voz: não são escutados pela grande mídia e estão sub-representados no Congresso Nacional.

As sugestões para aumentar receitas dizem respeito a privatizações de patrimônio público. Contudo, essas entradas teriam por destino principal o pagamento da dívida fiscal, que contribui para o enriquecimento dos rentistas.

Desconhecimento do déficit social

O único déficit que interessa ao governo é o fiscal. Não há qualquer preocupação com o déficit social. O IBGE acabou de divulgar a Síntese dos Indicadores Sociais (SIS) para o ano de 2018, cujos dados são assustadores: um quarto da população brasileira é pobre. São mais de 52 milhões de pessoas com rendimentos inferiores a R$ 420 por mês, menos da metade de um salário mínimo. Dessas, 13 milhões são extremamente pobres (renda mensal per capita inferior a R$ 145).

A pobreza também implica em menor acesso aos serviços básicos: 56,2% das pessoas abaixo da linha de pobreza moram em domicílios sem esgoto sanitário, enquanto a média da população sem acesso a esse serviço é de 37,2%.

O racismo persiste abissal e vergonhoso: 73% dos pobres são negros. O rendimento médio domiciliar per capita das pessoas pretas ou pardas (R$ 934) é quase metade do rendimento das pessoas brancas (R$ 1.846). O valor dos rendimentos cresceu para toda a população de 2018 em relação a 2017, só que foi maior para os 10% mais ricos, que se apropriaram de uma parcela maior do que os 40% com menores rendimentos, ampliando as desigualdades. E mais: o percentual de jovens brancos cursando o ensino superior ou que já havia concluído esse nível (36,1%) ainda era quase duas vezes o de pretos ou pardos (18,3%).

Mas, aos olhos de Guedes e sua equipe, nada disso importa. Se o controle dos gastos merece a criação de um Conselho Fiscal da República, que deverá se reunir regularmente para avaliar a sustentabilidade financeira da Federação, a questão social não exige tratamento semelhante, pois pobreza, miséria, fome e desesperança são problemas irrelevantes aos olhos do titular da economia.

Entrega do patrimônio público aos interesses privatistas

As propostas de Desobrigar, Desindexar e Desvincular, batizadas de três Ds, associadas ao fim do Plano Plurianual (PPA), significam acabar com o planejamento de longo prazo e entregar a administração dos recursos públicos aos governantes de plantão. Sem uma visão de país projetada no tempo nem parâmetros que orientem estrategicamente a alocação de recursos públicos, não há qualquer possibilidade de assegurar um desenvolvimento sustentável para o Brasil.

Os 3 Ds significam privatizar os ativos federais, deixar que os valores dos benefícios sociais sejam arbitrariamente decididos ano a ano, desobrigar o Estado de cumprir com seu dever de realização progressiva dos direitos constitucionais, comprometer a qualidade dos serviços públicos decorrente de enxugamento do quadro de funcionários federais, estaduais e municipais. Diferentemente do que se alardeia, o Brasil tem déficit de funcionários e não excesso: os empregados no setor público brasileiro, nos três níveis da federação, somam 12,1% da população ocupada contra uma média de 21,3% na OCDE.

As vinculações e indexações hoje existentes em todo o ciclo orçamentário são conquistas históricas dos movimentos sociais. Sem elas, o Congresso Nacional composto majoritariamente por homens, brancos e ricos, defensores de interesses privatistas, dificilmente aprovaria uma alocação de recursos justa, inclusiva e sustentável ao longo do tempo.

As PECs do Guedes equivalem à entrega do galinheiro para as raposas, à constitucionalização da pobreza e das desigualdades. Podemos afirmar que os 3 Ds do Plano Mais Brasil na realidade querem dizer Diagnóstico enviesado, Desconhecimento da dívida social e Drenagem de recursos dos pobres para os ricos.

O ministro pouco ou nada lê do que se passa no resto do mundo, de povos cansados de serem escrachados, sugados e explorados, que vão às ruas manifestar sua indignação e revolta, do Equador ao Chile, da França ao Líbano, do Iraque à nova onda da Primavera Árabe. Esperamos que nossos parlamentares, em princípio um pouco mais sensíveis às demandas da sociedade, ponham um freio à sede destrutiva da trupe Bolsonaro. Esperamos que lampejos de lucidez e, mesmo de autoproteção, os iluminem para o arquivamento dessas PECs, que muito nos assustam.

 

Nota de solidariedade ao povo Guajajara

O Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) manifesta preocupação pela frágil situação dos defensores de direitos humanos – que vivem hoje, no Brasil, sob forte ameaça e risco de morte. A emboscada que, em 1° de novembro de 2019, foi preparada contra o grupo de guardas florestais indígenas, “Guardiões da Floresta”, e contra o Povo Indígena Guajajara, resultando no assassinato de Paulo Paulino Guajajara, é expressão de uma sociedade convulsionada pelo desmonte deliberado das políticas públicas e socioambientais.

Além disso, os ataques reiteradamente vocalizados pelo governo contra os indígenas e a política indigenista brasileira estimulam os conflitos e a violência no campo e na floresta. Nunca é o bastante lembrar que o Brasil carrega a vergonha de estar no ranking dos países que mais matam ambientalistas no mundo.

Por tudo isso, nos somamos às vozes que vêm a público exigir respeito aos direitos indígenas, povos originários da nossa terra. Nem uma gota de sangue indígena a mais. Toda solidariedade ao povo Guajajara!

Apenas um quarto do orçamento aprovado para mobilidade urbana no País foi usado na última década

Apenas 27,2% dos recursos da União aprovados para o Programa Mobilidade Urbana (que prioriza o transporte público em detrimento aos veículos individuais motorizados) foram efetivamente gastos pelos  estados e municípios, entre 2008 e 2019. A iniciativa sempre esteve prevista nos três últimos Planos Plurianuais (PPA), mas nesses três períodos, o valor proposto pelo Governo Federal foi muito pouco realizado, conforme a tabela a seguir:

A comparação entre cada PPA também chama a atenção pela grande diferença de valores previstos nos três períodos: de 2008 a 2011, foram R$ 3 bilhões; indo para um montante 5 vezes maior entre 2012 – 2015 ou R$ 14 bilhões; reduzindo para uma quantia inferior orçada há uma década R$ 2,9 bilhões. A obras para a Copa do Mundo e a fixação de limites para o gasto público explicam esse sobe e desce orçamentário.

“Mas a principal conclusão é o descaso sobre as ações orçamentárias da União para a mobilidade em geral, visto que o que é orçado não é efetivamente gasto”, explica Cleo Manhas, pesquisadora do Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos), órgão que coordenou o estudo no âmbito do Projeto MobCidades. “Infelizmente, vimos que na última década, a maior parte dos projetos são desenvolvidos pelos próprios municípios, de forma descentralizada, e – no caso de grandes obras – usando um  financiamento do BNDES e da Caixa Econômica Federal, ou seja, recursos extra orçamentários”, acrescenta ela.

Iniciado em 2017, o Projeto MobCidades – Mobilidade, Orçamento e Direitos é coordenado pelo Inesc em parceria com organizações da sociedade civil, para o monitoramento do orçamento e a incidência da Política de Mobilidade Urbana. A iniciativa não só analisou os últimos três Planos Plurianuais da União, mas também de 10 cidades participantes, separadamente: Belo Horizonte (MG), Brasília (DF), Ilhabela (SP), Ilhéus (BA), João Pessoa (PB), Piracicaba (SP), Recife (PE), Rio de Janeiro (RJ), São Luís (MA) e São Paulo (SP).

Esses dados serão levados pelo Inesc à Câmara dos Deputados, na próxima quarta-feira (30), durante a audiência pública sobre o tema. O instituto ainda mostrará um segundo estudo, com cálculos que provam que é possível reduzir a tarifa do transporte público no Brasil (ou até zerar), a partir da criação de um fundo para todos financiarem este setor – via IPTU, IPVA por exemplo -, considerando que a cidade inteira se beneficia com menos carros nas ruas.

O documento traz informações como a de que um ônibus equivale a 50 automóveis a menos em circulação, além de 8 vezes menos poluição e menor custo com acidentes. Hoje 90% da receita das empresas de transporte vem das tarifas.

Sobre o MobCidades – Criado em 2017, o MobCidades tem atuado na articulação e capacitação de organizações da sociedade civil para a popularização do conceito de direito à cidade e o monitoramento e atuação política na elaboração das leis orçamentárias. Além disso, os movimentos que o integram têm atuado no levantamento de dados sobre transparência e mobilidade nos municípios, na elaboração de Orçamentos Nacional e Municipais Temáticos da Mobilidade Urbana, na incidência para a regulamentação do transporte como direito social e na discussão da temática mobilidade e gênero.

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Análise do orçamento nacional da mobilidade urbana (2008-2019)

Estudo realizado no âmbito do projeto Mobcidades revela que Apenas 27,2% dos recursos da União aprovados para o Programa Mobilidade Urbana (que prioriza o transporte público em detrimento aos veículos individuais motorizados) foram efetivamente gastos pelos  estados e municípios, entre 2008 e 2019.

Criação de um fundo de financiamento do transporte possibilita tarifa zero, diz estudo

Transporte público, gratuito e de qualidade é possível? A resposta a essa pergunta permeia todo o estudo “Financiamento Extratarifário da Operação dos Serviços de Transporte Público Urbano no Brasil”, produzido pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc). O documento apresenta soluções que possibilitariam a oferta de um transporte coletivo de qualidade, com tarifas zeradas ou reduzidas, garantindo seu acesso universal.

O estudo foi escrito por um dos maiores especialistas em mobilidade urbana no País, Carlos Henrique de Carvalho, em parceira com o Instituto, e suas conclusões serão apresentadas nesta quarta-feira 30, durante a audiência pública, na Câmara dos Deputados, que trata da regulamentação do transporte como direito social. Em resumo, o texto identifica fontes de recursos diferentes para subsidiar os gastos da população usuária de ônibus, já que hoje essas pessoas – em geral, de baixa renda – arcam quase sozinhas com a receita desse sistema no Brasil. Há estados como São Paulo e DF, que já usam algum tipo de subsídio público, mas são exceções.

O Inesc levará para a audiência pública na Câmara alguns exemplos de como seria o financiamento do transporte público, pensando em três situações: a) tarifa zero de transporte público; b) redução de 30% no valor atual da tarifa; c) redução da tarifa de transporte público em 60%. Em todas elas, o aumento da demanda de usuários foi calculado, já que um ônibus barato atrairia muitas pessoas que hoje preferem o carro. “Preparamos diversas sugestões para mostrar que não existe uma composição única de fontes de financiamento e, por isso, esse tema merece ser amplamente discutido, desde que fique garantido o acesso de toda a população a um transporte público de qualidade e a progressividade no modo de cobrança dos novos recursos para sustentá-lo”, explicou Cleo Manhas, assessora política do Inesc.

Os cálculos elaborados preveem um custo de R$ 70,8 bilhões para o cenário onde a tarifa zero seria implementada em todo país. “Isso equivale a 1% do PIB ou dois programas Bolsa Família. É um custo-benefício que vale a pena, considerando os impactos positivos para o meio ambiente e o combate às desigualdades sociais”, argumentou a especialista do Inesc. Para efeitos de comparação, o governo gasta R$ 85 bilhões com isenções fiscais destinadas aos combustíveis fósseis.

Também são apresentados no estudo modelos de composição do fundo de financiamento ao transporte coletivo, com recursos vindos de novas alíquotas para os impostos IPTU, IPVA, ICMS da gasolina, de maneira progressiva (quem tem maior renda paga mais). As respectivas justificativas para a escolha dessas receitas são: quem tem imóveis em regiões valorizadas pela oferta de ônibus e metrô no local deve pagar um IPTU maior; donos de automóveis precisam aceitar um aumento no IPVA, pois com mais gente migrando para um transporte coletivo barato, menos trânsito encontrarão no seu trajeto; o Estado, que abrirá mão de uma pequena parte da arrecadação com ICMS, estará cumprindo seu papel social; e os empresários devem participar desse rateio, pois recebem, em contrapartida, o aumento na circulação de potenciais clientes pela cidade, além de reduzir ou zerar o valor pago em vale transporte aos seus funcionários.

Modelo atual

Atualmente, o transporte coletivo no Brasil se mantém com R$ 59 bilhões ao ano, dos quais 89,8% (ou R$ 52,9 bi) vêm de tarifas cobradas dos passageiros, quase sempre pagas pela população de baixa renda. As subvenções públicas representam apenas 10,2% desse montante, enquanto as receitas não tarifárias (publicidade, por exemplo) somam R$ 375 mil.

Entendendo a injustiça de deixar 90% do custo de um serviço primordial à sociedade somente nas mãos dos usuários, o Inesc vai propor ao Congresso a criação de um fundo de financiamento ao transporte público, com recursos vindos dos cofres públicos, de empresas privadas e até de pessoas que optam por não utilizar o transporte coletivo para se locomover. “Usando ou não o ônibus, todos se beneficiam do transporte coletivo, seja ao encontrar mais espaços nas vias ou ao garantir que um funcionário dependente deste meio chegue ao trabalho”, explica Cleo Manhas.

Com os custos desse sistema financiados por um fundo, as empresas de ônibus poderão reduzir o valor das tarifas, mantendo a qualidade e promovendo a expansão das linhas.  Para a especialista do Inesc, só assim será cumprida a Emenda Constitucional 90, promulgada em 2015 e de autoria da deputada Luiza Erundina (PSOL-SP), que transformou o transporte público em um direito social no Brasil, colocando-o no rol das garantias do Estado para com seus cidadãos. “Do mesmo modo que existem subsídios para garantir o acesso da população à educação, saúde, alimentação, lazer e outras condições essenciais a uma vida digna, o transporte público também deve ser financeiramente acessível a todos”, defende.

Na avaliação do Inesc, o atual modelo do sistema de transporte está preso a um ciclo vicioso, na medida em que o encarecimento das tarifas de ônibus empurra a demanda para o veículo individual, onerando ainda mais o custo do transporte público, já que menos pessoas pagarão por ele. Com mais carros nas ruas, os congestionamentos urbanos crescem, o que aumentam os gastos para as empresas de ônibus, que compensam a diferença em novos reajustes, resultando em outra perda de demanda. “Além disso, hoje o sistema não oferece transparência sobre o lucro das empresas, transformando um direito em mercadoria”, acrescenta.

Nas duas últimas décadas, o encarecimento das tarifas e as políticas de estímulo à indústria automobilística fizeram o transporte público perder espaço para o veículo individual no País. Hoje, do total de quilômetros percorridos por veículos motorizados nas grandes cidades, os carros representam 44% do trajeto, acima do deslocamento feito por ônibus (42%) e motocicletas (7%), segundo dados da Associação Nacional de Transporte Público. Entre os anos de 2016 e 2018, a passagem de ônibus urbano aumentou 20,9% no País, superando a inflação (IPCA) de 13,5% acumulada no período.

A porta voz do Inesc lembra ainda que sua proposta está alinhada à edição da Lei da Mobilidade Urbana (12.587, de 2012), cujo texto deixou clara a possibilidade da implementação de um financiamento extratarifário, entendendo que a mobilidade nas grandes cidades é uma responsabilidade de todos, incluindo as pessoas que optam pelo automóvel, mas continuam sendo beneficiadas pela existência de meios de locomoção coletivos.

Além de menos vias congestionadas, toda a sociedade é impactada positivamente com um transporte público de qualidade e economicamente acessível. Afinal, o prejuízo econômico gerado pelos ônibus – considerando a poluição, os danos ambientais e os acidentes –  é de R$ 16,6 bilhões por ano, contra uma perda 8 vezes maior (R$ 137,8 bilhões) provocada pela circulação de carros e motos. “Não faz sentido só os passageiros sustentarem o transporte coletivo, quando cada ônibus consegue tirar 50 carros da rua, e uma composição de metrô elimina 800 automóveis das vias públicas”, finaliza Cleo.

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Informações para a Imprensa – Agência Pauta Social

Adriana Souza (11) 98264-2364 (whatsapp)

e-mail: adriana@pautasocial.org

Leia Também: Inesc lança campanha pela regulamentação do transporte como direito

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Financiamento extratarifário da operação dos serviços de transporte público urbano no Brasil

Transporte público, gratuito e de qualidade é possível? A resposta a essa pergunta permeia todo o estudo “Financiamento Extratarifário da Operação dos Serviços de Transporte Público Urbano no Brasil”, produzido pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc). O documento foi escrito por um dos maiores especialistas em mobilidade urbana no País, Carlos Henrique de Carvalho, e apresenta soluções que possibilitariam a oferta de um transporte coletivo de qualidade, com tarifas zeradas ou reduzidas, garantindo seu acesso universal.

 

O óleo nas praias do nordeste é um caso de racismo ambiental

Ganhou destaque no debate público das últimas semanas o engajamento de voluntários na limpeza das praias do Nordeste. Estamos no final de outubro. O óleo mancha o litoral nordestino brasileiro desde o dia 30 de agosto.

A origem da contaminação é desconhecida. Não sabemos quando ela teve início, onde, nem qual foi o seu principal agente. Não sabemos quais países ou quais empresas, públicas ou privadas, estão envolvidas, nem se o crime aconteceu em mar territorial nacional ou no espaço marítimo internacional.

As implicações geopolíticas do caso são gigantescas. A academia (cumprindo o seu papel social) entrou na disputa e os especialistas discordam sobre a afirmação supostamente inequívoca de que o óleo seria venezuelano, entre outras questões.

A inação do governo – ou melhor, a sua ação “temerária” – provocou uma coluna constrangedora, em jornal nacional de grande circulação e de perfil nada comunista, que afirma o óbvio: A fragilidade deste governo é do tamanho de uma burocracia que não conhece os instrumentos legais de que dispõe para governar.

No texto, a constatação: o Plano Nacional de Contingência para vazamentos no mar não foi acionado senão no dia 11 de outubro, isto é, mais de um mês após o conhecimento do crime.

Vocês conhecem agente público que só se manifeste sobre um crime passados mais de trinta dias do seu conhecimento? Quando um agente público é omisso frente a um crime, ele também não comete um crime? Como vamos localizar o ministro Ricardo Salles neste imbróglio?

O fato é um só: o  atraso do governo em agir causou, segundo levantamento do Ibama, a contaminação de 238 praias em 89 cidades do Nordeste. São milhares de vidas afetadas.

No entanto, a meu ver, o argumento da ignorância não dá conta do governo Bolsonaro. É preciso entender de que maneira a ausência, o silêncio, o esquecimento, a inação, a violência e a destruição explicam o seu projeto.

Porque é próprio de uma mentalidade necrófila de governo que se ponha ênfase na potência da morte, não da vida, como metodologia para a gestão econômica da vida.

O impacto é ambiental, mas também é social

Uma agenda do movimento ecologista global é que o impacto humano e social das ameaças aos ecossistemas e à biodiversidade deve ser levado em consideração na avaliação dos crimes ambientais. Esses assuntos devem caminhar juntos.

Reveja comigo as fotos do Léo Malafaia, colaborador da AFP e Folha de Pernambuco. Enquanto seus olhos percorrem as imagens, tente responder à pergunta: quem são os afetados pela contaminação? Quem está se arriscando para combatê-la? A vida marinha, claro. A natureza. E também as pessoas que inventaram uma vida que se encaixa nas marés e dança com elas. Insisto. Veja mais fotos na página do fotógrafo no Instagram.

Essas fotos foram tiradas na praia de Itapuama, em Cabo de Santo Agostinho, Pernambuco, em 21 de outubro. Por óbvio, elas contam apenas uma parte da história. Mas são fortes. E nos ajudam a configurar a estética do desastre que nos assombra.

Os atingidos pela contaminação da água no litoral nordestino do país são pescadores, são pretos, são crianças e pais e mães que já não têm o peixe para vender, cozinhar e comer.

Os atingidos pela contaminação da água no litoral nordestino do país são pessoas que movimentam toda uma economia popular local e vivem do turismo e do artesanato. De uma hora para outra, essas pessoas se viram sem renda.

Em relação a esta complexa trama que conta a história das vidas por trás do mar de óleo, o governo se isola e se exime da sua responsabilidade. Mas há, ainda, as soluções estapafúrdias.

Na Praia da Barra da Jangada, onde está a foz do Rio Jaboatão, também em Pernambuco, presos em regime semiaberto participam do esforço de contenção da contaminação.

Como nos EUA, onde os presos têm o seu trabalho explorado pelo governo e grandes corporações em troca da redução das suas penas, o governo brasileiro os expõe, agora, a alto risco de contaminação e problemas de saúde.

Carne barata, vidas precárias, mão de obra a custo zero. Quem são os presos no Brasil?

Um país que não tem política ou instalações carcerárias dignas, não faz política penal, mas usa o argumento penal para provocar a morte (física ou social) de quem passa pelo sistema.

Um país cujo sistema de saúde, embora universal, não é capaz de atender às demandas da população, não pode provocar a doença que é incapaz de curar.

Racismo ambiental é racismo

Isto é: uma forma de violência e uma certa configuração do poder que age na direção da superexploração e da desumanização de corpos não-brancos que foram racializados.

Trata-se de um poder que se endereça ao extermínio, muitas vezes descarado, e opera um impulso destruidor da natureza, deslocando-a como fonte de vida e terreno para a produção subjetiva, afetiva e cultural.

O efeito do racismo ambiental é a miséria e a morte da vida natural-humana. Deveríamos estar falando mais sobre isso.

Leia também: Ministério do Meio Ambiente executou apenas 15% dos recursos para oceanos e zona costeira nesta década

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Ministério do Meio Ambiente executou apenas 15% dos recursos para oceanos e zona costeira nesta década

Cerca de 1 milhão de reais em 8 anos efetivamente pagos diante de quase R$ 7 milhões previstos. Apenas 15 por cento do orçamento. Isso foi tudo o que o Ministério do Meio Ambiente (MMA) gastou de 2012 a 2019 para o programa de Oceanos, Zona Costeira e Antártica, de acordo com dados obtidos via Lei de Acesso à Informação.

O Brasil tem mais de 7 mil quilômetros de litoral, sendo mais de 3 mil apenas no Nordeste, que sofre há mais de 40 dias com o maior crime ambiental da história da costa brasileira.

Vazamento de óleo de origem ainda não identificada atinge centenas de praias do Brasil, ameaçando toda a vida marinha e comprometendo diretamente a subsistência de milhões de pessoas que dependem do mar para sobreviver.

Pensado como um plano interministerial, que envolve, além do MMA, também o Ministério de Ciência e Tecnologia, a Defesa, o Ministério de Minas e Energia, a Secretaria da Comissão Interministerial para os Recursos do Mar e outros, constam como metas de responsabilidade direta do Ministério do Meio Ambiente as seguintes ações:

  • Implantação do Sistema de Monitoramento da Costa Brasileira (SIMCOSTA).
  • Promover o uso compartilhado do ambiente marinho e realizar o gerenciamento da zona costeira de forma sustentável
  • Proposição de indicadores para monitoramento da qualidade ambiental e das atividades econômicas na Zona Costeira e Marinha.
  • Apoio técnico e qualificação para estados e municípios costeiros na elaboração e aplicação dos instrumentos previstos no Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro.
  • Incremento das atividades de gerenciamento costeiro por meio de melhorias no arranjo institucional e do fortalecimento dos estados e municípios.
  • Ampliar de 5% para 20% o total de municípios costeiros com diretrizes de uso e ocupação da orla marítima definidas (Projeto Orla).
  • Atualizar o macrodiagnóstico de 100% da Zona Costeira, na escala da União.
  • Garantir a presença brasileira na região Antártica, desenvolvendo pesquisa científica com a preservação do meio ambiente.

Em 2019, do total previsto de R$ 950 mil, foi efetivamente pago até o momento R$ 243 mil. Estamos no fim de outubro.

Falta de coordenação e gestão comprometida

O que o Brasil perde com tantas ações estratégicas deixadas de lado e encaradas com mera formalidade, quando não abandonadas? A resposta talvez esteja acontecendo agora nas praias nordestinas.

Somente na ação  que tem o objetivo de “Promover o uso compartilhado do ambiente marinho e realizar o gerenciamento da zona costeira de forma sustentável”, por exemplo, as metas específicas incluem: implementação de políticas visando a ocupação ordenada e planejada dos espaços costeiros; instrumentalização e capacitação de estados e municípios para o gerenciamento costeiro; avaliação das dinâmicas social, ambiental e econômica, desenvolvendo ações para o enfrentamento dos problemas identificados, incluindo aqueles relacionados com as mudanças climáticas; estabelecimento de cenários e proposição de medidas e normas para gestão dos espaços litorâneos.

A execução insuficiente de um programa como esse, portanto, afeta diretamente a capacidade de estados e municípios em responder a crimes da magnitude que estamos enfrentando agora.

Para a implementação, a União previa buscar financiamento com instituições externas e em acordos de cooperação, além de firmar parcerias com universidades, organismos internacionais, organizações não governamentais, empresas ou outras organizações da sociedade civil.

Se os governos Dilma e Temer já patinavam nessas possibilidades de cooperação, a franca perseguição do governo Bolsonaro a muitos desses atores citados é uma barreira e tanto para que esses eixos estratégicos saiam do papel ou sequer sigam existindo.

Corte pela metade em 2020, foco na Antártica e MMA zerado

No caso de um programa interministerial como esse, a falta de uma coordenação eficaz coloca em xeque a capacidade do estado brasileiro em lidar com o complexo cenário de que trata e 7 mil quilômetros de litoral onde estão boa parte das capitais dos estados.

Mais de 80% do orçamento é consumido pelo Ministério da Defesa e quase que exclusivamente voltado para a pesquisa do Brasil na Antártica. Em 2019 foram pagos, até o momento, R$ 23,6 milhões do total de R$ 50 milhões previsto no orçamento.

A reconstrução da Estação Antártica Comandante Ferraz recebeu R$ 12,2 milhões e o “Apoio Logístico à Pesquisa Científica na Antártica” ficou com R$ 7,8 milhões. Resumido na ação genérica de “Políticas para a Gestão Ambiental e Territorial da Zona Costeira”, o MMA ficou com R$ 243 mil.

Para 2020 é ainda pior: o orçamento para o MMA simplesmente foi zerado na previsão do PLOA 2020. Considerando ações que ainda carecem de aprovação, o programa “Oceanos, Zona Costeira e Antártica” deve ser reduzido quase pela metade, com R$ 29 milhões previstos no melhor dos cenários.

Procurado para comentar o andamento da implantação do programa, as metas estabelecidas, a baixa execução orçamentária e como isso poderia ajudar na gestão da crise do óleo no litoral brasileiro, o Ministério do Meio Ambiente decidiu não se manifestar.

Plano acionado 41 dias depois

Responsável legal pelo Plano Nacional de Contingência, o MMA acionou formalmente o plano somente 41 dias depois que as primeiras manchas de óleo começaram a aparecer. Ambientalistas e até membros do próprio governo apontam que essa demora indica que o governo Bolsonaro sequer sabia da existência de um plano de contingência.

Enquanto o governo ignora o problema ou demora a responder, milhares de voluntários estão se unindo pela costa nordestina para limpar no braço as manchas de óleo que aparecem nas praias. Trabalho árduo e paliativo que não encontra o suporte institucional com ações efetivas em alto mar, de responsabilidade do governo federal.

Muitos desses voluntários, inclusive, que não receberam apoio e o equipamento adequado para a remoção, começaram a sentir os efeitos do contato com o óleo. Em Pernambuco, 17 voluntários foram atendidos em um hospital com dor de cabeça, enjoo, vômitos, erupções e pontos vermelhos na pele. A subsistência de milhares de pessoas também está ameaçada.

A Associação Nacional dos Servidores da Carreira de Especialista em Meio Ambiente (Ascema Nacional) lembrou em nota que, em decreto de 11 de abril de 2019, o presidente Jair Bolsonaro extinguiu diversos colegiados, dentre os quais aqueles que estariam responsáveis por operacionalizar e acionar o Plano de Contingência.

Segundo a Ascema, trata-se de “claro ato de improbidade administrativa, que atenta contra os princípios da administração pública”. A extinção dos colegiados teria acontecido “de forma unicamente ideológica, sem qualquer motivação razoável”.

“Tal irresponsabilidade deixou o país desguarnecido para esta situação de crise nacional, que se configura no maior desastre ambiental de vazamento de óleo no Brasil, cujas consequências ambientais e sociais são agravadas a cada momento de lentidão e improviso”, afirmam. A demora também acabou gerando “ações desarticuladas e sem fontes de recursos orçamentários necessárias para a situação de emergência que logo se formou”, finalizam os servidores.

Soma-se a isso o descaso do governo com a gestão pública. O Departamento de Qualidade Ambiental e Gestão de Resíduos, responsável por definir estratégias para emergências ambientais no Ministério do Meio Ambiente, ficou sem chefe por seis meses neste ano, e o cargo só foi ocupado 35 dias após o início da crise das manchas de óleo nas praias do Nordeste.

Faltam recursos para gestão, sobram em subsídios fiscais

Enquanto programas estratégicos que poderiam no mínimo mitigar crises e melhorar consideravelmente a gestão da zona costeira brasileira ficam à míngua, a indústria de combustíveis fósseis vive uma realidade bem diferente. O governo é bem generoso com aqueles que poluem de modo gravíssimo o nosso litoral.

Estudo do INESC mostrou que o governo federal concedeu, somente em 2018, R$ 85 bilhões em subsídios aos setores de petróleo, gás e carvão por meio de isenção de impostos, regimes especiais de tributação e até verba garantida no Orçamento.

O Projeto de Lei Orçamentária Anual 2020 (PLOA 2020) enviado pelo Executivo ao Congresso também corta severamente programas sociais e ambientais e mantém incentivos fiscais que consomem 20% da arrecadação do governo.

Para completar, o Plano Plurianual (PPA) de Bolsonaro privilegia os mais ricos e nada faz para combater a desigualdade ou aumentar a cobertura de programas ambientais. Não é por acaso que a desigualdade brasileira é recorde e o país segue firme entre os países mais desiguais do mundo.

Será que estão mesmo liberando todo o recurso contingenciado da educação superior?

Ao anunciar que o governo liberaria todo o recurso contingenciado do MEC para o ensino superior, o ministro da Educação, Abraham Weintraub, se julgou “lacrador”. Sem entrar na questão da falta de maturidade que o cargo ocupado por Weintraub exige, há ainda dois problemas. Primeiro, ninguém “lacra” anunciando o que é obrigação do governo, ou seja, liberar o recurso que as instituições federais precisam para fechar o ano com as contas pagas.

Segundo, a liberação de R$ 1,1 bilhão anunciada corresponde a cerca de metade do total de recursos contingenciados destinados às universidades e institutos federais – e não 100%, como alardeou o ministro. A tabela abaixo, com dados extraídos do Siga Brasil, atualizado pela última vez no dia 17 de outubro, mostra que na data do anúncio constavam R$ 2,1 bilhões de recursos ainda congelados.

contingenciamento da educação

A liberação do recurso prova ainda que o governo vinha fazendo terrorismo com as universidades, quando afirmava que havia “gordura para queimar”, e que o orçamento era superestimado. Ficou comprovado que o orçamento é apenas suficiente para manter as atuais estruturas, não havendo gordura.

Não há, por exemplo, recurso para as obras de expansão já iniciadas, como as da Universidade Federal do Sul da Bahia, que estava com os campus em construção, pois funciona em locais precários e improvisados. A descontinuidade provoca desperdício de dinheiro público, pois deteriora o que já está feito, e obriga a universidade a gastar com aluguéis para funcionar.

Além disso, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), um dos principais órgãos de fomento à pesquisa, está morrendo de inanição, com R$ 540 milhões ainda contingenciados, segundo o Siga Brasil. Muitas bolsas foram cortadas, prejudicando pesquisas em andamento. O desenvolvimento científico e tecnológico do país está em risco.

Esperamos do ministro “lacrador” menos piadas e mais seriedade para com a educação, que não é só responsabilidade da família, como querem nos fazer acreditar – é responsabilidade do Estado e direito garantido na Constituição de 1988, que insistem em jogar lixo.

 

Crianças e adolescentes são prioridade absoluta no orçamento público?

Gabi[1] tem 14 anos, conviveu pouco com o pai, preso quando ela ainda era criança. Ela, a mãe e seus três irmãos vivem em situação de pobreza, sustentados com o dinheiro que a mãe consegue arrecadar das unhas que arruma. No Itapoã, onde mora, não tem creche pública para que a mãe possa deixar os filhos mais novos e procurar emprego fora da cidade. Recebem Bolsa Família, dá pra comprar uma cesta básica. Gabi vê todos os dias o tráfico de drogas na cidade, já foi convidada a experimentar. Também já viu muitos colegas do seu bairro serem mortos pela polícia e pelas guerras locais por conta do tráfico.

Acredita que, se estudar, o caminho pode ser diferente para ela e seus irmãos, então se esforça, mas sofre muito com o racismo na escola. Não aguenta mais as piadas sobre seu cabelo e os professores que não acreditam em seu potencial. Ela prefere estudar no canto da sala sozinha. A menina gosta de música, de arte, mas não é motivada a desenhar, a cantar e nem a compor. Tem pensado em parar de estudar para trabalhar.

Kevin[2] cumpre medida socioeducativa em uma unidade de internação. Ele tem 15 anos. Ao contrário de Gabi, não resistiu às drogas, começou a usar aos 9 anos, junto com os amigos da rua, quando seu pai morreu. O adolescente nunca se sentiu estimulado pela escola, lá sempre era “o neguinho”. Nada além disso! Mas na rua ele é o companheiro, o corajoso, o malandro, o inteligente, o veloz, ele é quem faz o corre acontecer. Isso com 12 anos de idade. Ele aprende a vender drogas para ser reconhecido socialmente.

Ele sempre gostou de música: rap e funk principalmente. Gosta de festas, de assistir filmes, de rir. Kevin queria ser visto: ter tênis da Mizuno, óculos Juliet da Oskley, roupas da Cyclone. Pra ele, a felicidade estava em poder ostentar junto com seus “parceiros de quebrada”. Em casa, tinha a situação financeira difícil da mãe, ele tentava ajudar, mas ela não aceitava o dinheiro que vinha do tráfico. Ele sofria ao vê-la assim, mas não abria mão da trajetória ilusória que estava construindo. Aos 14 anos recebeu uma medida socioeducativa de internação por tráfico e roubo: pode ficar até 3 anos em privação de liberdade. Na rua onde Kevin morava não tinha cinema, não tinha teatro, sua escola não falava de rap, nem dos grandes líderes de periferia com quem ele poderia se identificar. Na rua ele não viu muitas cores, brincou pouco, viu seus amigos morrendo, sendo presos, ele se viu.

Orçamento público: importante ferramenta para efetivar direitos

Essas histórias convergem em muitos aspectos: os dois são adolescentes, moradores de periferia, estudantes de escola pública, pobres e negros. Os dois vivenciam negligências e violências. Histórias que, infelizmente, não são exceção no Brasil. Como o país pode avançar social, econômico e politicamente mantendo suas crianças e adolescentes nessa situação de violação de direitos, de violência?

De acordo com a Fundação Abrinq, no relatório Cenário da Infância e Adolescência no Brasil 2018, há no país 9,4 milhões de crianças e adolescentes vivendo em situação domiciliar de extrema pobreza e 10,6 milhões em situação de pobreza, considerando apenas a faixa etária de 0 a 14 anos. A pesquisa não disponibiliza as informações por raça/cor, idade e situação financeira, mas não é difícil imaginar que cor essas crianças têm. Afinal, nos dados gerais que correlacionam raça/cor e situação financeira, os pretos e pardos ainda estão entre os mais pobres, e os brancos, entre os mais ricos. A Síntese de Indicadores Sociais de 2018, elaborada pelo IBGE, denunciou que, dos 7,6 milhões de moradores de domicílios onde vivem mulheres pretas ou pardas sem cônjuge com filhos até 14 anos, 64,4% estavam abaixo da faixa de renda de até R$ 406,00 mensais, ou seja, abaixo da linha de pobreza.

Mesmo diante dessa realidade, os governos não têm priorizado a alocação de recursos públicos para as crianças e adolescentes, principalmente as mais pobres, que são as que mais dependem de políticas sociais. O descaso se estende às mulheres negras, mães e avós dessas milhões de crianças em situação de extrema pobreza e pobreza. No que diz respeito ao orçamento destinado às crianças e adolescentes, conhecido como OCA, é importante ressaltar que a Constituição Federal de 1988 representa um avanço político e social em relação aos direitos da infância e adolescência no Brasil, pois inclui em seu texto que crianças e adolescentes têm prioridade absoluta na efetivação dos seus direitos.

Art. 227 É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

E para efetivar esses direitos é preciso haver orçamento público exclusivo para essa política. É preciso, ainda, que os recursos sejam executados na sua totalidade. Essas têm sido as bandeiras do movimento pela infância no Brasil desde a aprovação da Constituição Federal de 1988 e do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). A seguir serão analisadas algumas ações orçamentárias voltadas para esse público no orçamento da União, avaliando quanto foi previsto e quanto de fato foi executado no período do PPA (Plano Plurianual) vigente: 2016 a 2019. Os dados foram extraídos do Portal Siga Brasil em outubro de 2019.

Orçamento da criança e do adolescente: assistência social

A tabela 1 mostra o gasto com a ação: Desenvolvimento Integral na Primeira Infância – Criança Feliz, que está dentro do Programa Orçamentário: Consolidação do Sistema Único de Assistência Social, programa 2037 do PPA 2016-2019:

Percebe-se que o valor autorizado aumentou de 2017 para 2019. Mas o que conta é o gasto efetivo, o que foi pago. Em 2017, o valor pago (o que significa o gasto efetivado em relação ao orçamento do ano em referência) foi de R$ 187,5 milhões; porém faltou gastar 28,9% do que estava previsto para o ano, o que corresponde a R$ 76 milhões. Em 2018 deixou-se de gastar 27,7% do autorizado para o ano. Em relação ao ano vigente, foram autorizados R$ 375,7 milhões, mas ainda faltam ser gastos 49,74% desse valor até o fim do ano..

Ainda dentro desse mesmo programa (2037), a ação: ‘Concessão de bolsa para famílias com crianças e adolescentes’ teve recurso previsto de R$ 6,05 milhões em 2016, dos quais apenas R$ 3,29 milhões foram gastos. A situação piora nos anos de 2017 e 2018, quando nada foi gasto, apesar da previsão orçamentária, como é possível ver na tabela 2. E em 2019, a ação desaparece em termos de previsão de recursos.

O Plano Orçamentário (PO) desta ação era o Programa Brasil Sem Miséria, que foi extinto, e se resumia basicamente em auxílio financeiro para estudantes. Pode ser que esta ação esteja diluída em outras, mas seria muito importante saber qual o público beneficiado. Isso facilita a transparência e o controle social, principalmente no que diz respeito aos direitos de crianças e adolescentes, público prioritário das políticas públicas conforme mencionado anteriormente.

Orçamento Público e Educação

Enquanto isso, temos uma realidade de 2,8 milhões de crianças e adolescentes, na faixa etária de 4 a 17 anos, fora da escola, conforme os dados do Censo Escolar divulgados no ano passado. Em relação à Educação Infantil, na faixa etária de 4 e 5 anos, 93,8% das crianças estavam na escola em 2018, mas em compensação, para as crianças de até 3 anos o atendimento público era de somente 35,6% da população nesta faixa etária.

Dados do Siga Brasil revelam como o investimento em educação infantil tem diminuído nos últimos anos. O orçamento autorizado, em nenhum dos anos do PPA vigente, foi gasto integralmente, o que demonstra o descaso do governo com essa pauta, principalmente de 2017 para cá:

A tabela 3 também revela que apesar de ter apresentado a pior execução orçamentária, 2016 foi o ano no qual mais foram alocados recursos para a Educação Infantil: R$ 764 milhões. O baixo desempenho se deve a uma previsão inicial mais elevada, bem acima dos demais anos da série. Nos anos seguintes, tanto a previsão quanto a execução diminuíram mais que a metade dos valores de 2016, como pode ser visto no gráfico 1:

 

Gráfico 1: Execução orçamentária dos recursos destinados à Educação Infantil elaboração Inesc

Os gastos com a educação básica não foram diferentes no que tange à execução do orçamento previsto para o ano: a tabela 4 mostra a porcentagem que ainda faltou para o gasto completo do recurso previsto para essa subfunção dentro do Programa Orçamentário 2080 (Educação de Qualidade para Todos)[3].

 

Trabalho infantil

Um dado relevante para a problemática de se ter milhões de crianças e adolescentes fora da escola é o investimento do Governo Federal com o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil. São cerca de 1,8 milhão de crianças e adolescentes (5 a 17 anos) em situação de trabalho infantil, segundo a PNAD Contínua de 2016 e parte desse grupo populacional não frequenta a escola: 377.083 mil crianças e adolescentes de acordo com o III Plano Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil e Proteção ao Adolescente Trabalhador – 2019-2020.

É possível visualizar na tabela 5 que o investimento com a ação de fiscalização do trabalho infantil tem sido irrisório. É sabido que não se combate o trabalho infantil apenas com a fiscalização. Contudo, a baixa alocação de recursos é reveladora da incapacidade do Estado de proteger os direitos de suas crianças. Muitos meninos e meninas trabalham para contribuir no sustento da família, sendo muitas vezes, explorados e, consequentemente, prejudicados no rendimento escolar. Sem contar que estão expostos a outros tipos de violência.

Como pode ser observado na tabela 5, em 2018 e 2019 a ação que contempla em seu plano orçamentário a fiscalização para erradicação do trabalho infantil simplesmente sumiu em termos de recurso do planejamento do governo.

Orçamento para promoção, Proteção e Defesa dos Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes

No que diz respeito ao programa 2062 do PPA: Promoção, Proteção e Defesa dos Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes verifica-se que o orçamento executado foi muito baixo. Em 2016 e em 2017 não se executou nem 2% do que tinha sido previsto para o ano. Em 2018, tanto a previsão quanto a execução foram maiores do que nos anos anteriores, mas faltando ainda 44,18% para gastar. Em 2019, em relação ao previsto para o ano, foram gastos um pouco mais de 15%.

O programa 2062 tem como desafio consolidar a Política Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente promovendo e articulando a implementação de políticas, programas, ações e serviços de atendimento a crianças e adolescentes com direitos violados, envolvendo: o Sistema de Garantia de Direitos, Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente, Sistemas de Informação (SIPIA), Conselho Tutelar, Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo, Atendimento a crianças e adolescentes em situação de violência sexual, Enfrentamento da violência letal – PPCAM, Direito à convivência familiar e comunitária, Atendimento a crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade e com direitos violados, ameaçados ou restritos e a Erradicação do trabalho infantil e Proteção ao adolescente trabalhador. É um programa que atua mais com os eixos da proteção e defesa do que com o eixo da promoção dos direitos como pode ser visto na tabela 7:

É importante ressaltar que quanto menos se investe na promoção dos direitos da criança e do adolescente (nas áreas de cultura, lazer, esporte, saúde, educação, prevenção às violências, fortalecimento de vínculos familiares e qualificação profissional, tanto para o adolescente quanto para as famílias, entre outras), mais demandas teremos para políticas de proteção e defesa de direitos. A vulnerabilidade desse grupo populacional se manifesta de diversas formas, podendo-se destacar como consequências, além de exemplos citados anteriormente, crianças e adolescentes fora da escola, em situação de trabalho infantil ou em situação de extrema pobreza. Vejamos alguns dados a respeito:

– Em 2016, 9.517 crianças e adolescentes entre 0 e 19 anos morreram por arma de fogo no Brasil (incluindo homicídio e suicídio) de acordo com estudo da Sociedade Brasileira de Pediatria a partir dos dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM). A maior parte dessas mortes se dá por homicídio e suas vítimas são, em maioria: meninos negros que vivem em periferias das grandes cidades, estão fora da escola e vêm de famílias com baixo poder aquisitivo.

– Em 2018, o Disque 100[4] registrou 152.178 violações contra crianças e adolescentes compreendendo que em uma única denúncia pode ter notificação de várias violências. Entre as denúncias 72,66% foram de negligência, 48,76% de violência psicológica, 40,62% de violência física e 22,40% de violência sexual;

– Em 2015, 26.868 adolescentes no Brasil encontravam-se em privação ou restrição de liberdade, conforme o último Relatório Anual do Sistema Socioeducativo (SINASE) divulgado pelo Ministério dos Direitos Humanos em 2018. Desses, 61,03% eram negros e 96% se identificavam com o sexo masculino. Meninos que tiveram sua trajetória marcada por violações de direitos, afinal 46% deles estavam cumprindo medida socioeducativa porque cometeram roubo e 24% por tráfico de drogas. Os dados revelam que não são os adolescentes que estão sendo violentos, como a mídia hegemônica alardeia, eles estão sendo violentados pelo Estado, pela sociedade e, muitas vezes, pela família, mas esta também tem um histórico de acesso precário às políticas públicas, o que impacta a relação com as crianças e adolescentes.

Mesmo com esses dados alarmantes, o que se percebe é que não se tem, por parte do governo, interesse real no combate a essas violências, já que a execução do orçamento destinado a esta política tem sido irrisória.

É preciso garantir a execução do orçamento

O que buscamos mostrar é que há no Brasil uma infância e adolescência sendo prejudicada com a falta e a insuficiência de políticas públicas e, consequentemente, do orçamento público. Meninos e meninas pobres e negras que têm sofrido mais as consequências da não ou pouca realização de direitos. Não basta prever recursos para educação, saúde, assistência, segurança pública, segurança alimentar, entre outros; é preciso, ainda, garantir que a previsão e a execução sejam suficientes para universalizar os direitos.

E mais: faz-se necessário que as políticas e seus orçamentos deem conta das especificidades de cada infância: quilombola, indígena, periférica, rural, com deficiência, entre outras. Geralmente, são essas infâncias as mais esquecidas, por falta de recursos, mas também porque o poder público não dá conta de suas particularidades.

Daí a importância do diálogo com a população, e da participação popular, inclusive das próprias crianças e adolescentes, para a elaboração e planejamento de uma política pública eficiente. Por fim, é necessário que o recurso seja executado em sua totalidade, diferentemente do que os governos têm praticado. Isso diz de um planejamento mal elaborado ou, de fato, de uma estratégia de manter as desigualdades sociais e o não entendimento de que crianças e adolescentes são sujeitos de direitos e que têm prioridade absoluta no que tange à destinação e execução dos recursos públicos.

Considerando que o artigo 4º do ECA prevê prioridade absoluta nos seguintes termos:

Parágrafo único. A garantia de prioridade compreende:

a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias;

b) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública;

c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas;

d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude.

É necessário que se faça a defesa de que o gasto dos recursos voltados para crianças e adolescentes, o OCA, seja obrigatório, o que por lei não é. Enquanto não priorizarmos orçamento para a infância, adolescência e juventude este público continuará sendo violentado e com poucas ou nenhuma perspectiva de uma vida saudável, plena e alegre. Investir em políticas que atendam às necessidades de meninos e meninas como Kevin e Gabi, por exemplo, significa ampliar o leque de direitos para eles e elas, expandido as possibilidades de vivenciar o mundo no lugar de sujeito com dignidade e humanidade.

A manutenção das desigualdades, reforçada pelas políticas públicas excludentes e pelo orçamento público que não prioriza os grupos que mais precisam de atenção do Estado, desumaniza meninos e meninas que vivem nas periferias do país. Não podemos achar normal que ainda existam milhões de crianças fora da escola, em situação de pobreza e milhares em situação de violência, em situação de rua ou em privação de liberdade. Um governo e uma sociedade que objetiva se desenvolver social, política e economicamente precisa garantir orçamento público para infância, adolescência e juventude a fim de efetivar políticas que diminuam as desigualdades sociais, raciais, de gênero e de território.

[1] Nome fictício

[2] Nome fictício

[3] Para esta análise considerou-se as rubricas orçamentárias: educação básica e transferências para a educação básica.

[4] Disque Direitos Humanos, ou Disque 100, é um serviço de proteção de crianças e adolescentes com foco em violência sexual, vinculado ao Programa Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes, da SPDCA/SDH. É um serviço telefônico de recebimento, encaminhamento e monitoramento de denúncias de violações de direitos humanos.

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A voz de uma pessoa e sua opinião

Primeiramente, estou aqui hoje para contar a minha história no mundo do ato infracional, sobre cada medida socioeducativa e orçamento público. Meu nome é D., entrei nesse mundo aos 14 anos, logo depois que minha mãe morreu. A ausência dela me fez entender que minha vida não fazia sentido algum. Comecei a usar drogas, era o único jeito de esquecer a tristeza e sofrimento que estava passando. Então, fui me envolvendo nesse mundo e acabei sendo influenciado por pessoas a cometer atos infracionais.

Logo após, fui apreendido a primeira vez, aos 15 anos. Fiquei em uma unidade de internação provisória onde estive internado por 45 dias. Neste período, não tive nenhum conhecimento ou alguma forma que me ajudasse a enxergar minha vida de um jeito melhor. Então, voltei para a mesma rotina e fui ficando mais experiente no mundo da criminalidade, cometendo atos infracionais e o crime passou a fazer parte da minha vida.

Chegou um dia em que fui apreendido por ter roubado a casa de um policial com meus colegas e acabei ingressando na medida socioeducativa, em internação restrita. Quando cheguei na unidade, em uma primeira conversa com agente, ele já foi dizendo que o tratamento era muito diferente do CESAME[1], tinha que andar na linha porque se não passava pelo “procedimento da cadeia”.

O tempo foi passando eu fui conhecendo pessoas de várias quebradas. Minha rotina era sair para o banho de sol e conversar com adolescentes sobre o crime e a rua. Às vezes íamos a escola, mas nós nunca fazíamos alguma coisa nova, sempre a mesma rotina. Chegou um certo tempo que comecei a ficar com ódio do sistema, eu estava revoltado com aquele lugar e nesse momento comecei a receber o saidão da juíza. Mas o tempo que estava na medida não tinha adiantado, só tinha me deixado mais revoltado. E voltei a cometer atos infracionais e usar drogas.

Até que fui apreendido por roubo e peguei a segunda internação, de 6 meses a 3 anos. Eu estava com 17 anos, depois de um tempo cheguei à maioridade.

Foi então que comecei a ver que a vida que estava seguindo não estava me fazendo bem,  nem a outras pessoas. Isso tava acontecendo porque a maturidade tinha começado dentro de mim, meu jeito de ver as coisas estava mudando aos poucos, assim como meus pensamentos para o futuro. Entretanto, comecei a enxergar a vida de uma forma totalmente diferente. Observando essas mudanças, comecei a entender que o sistema de alguma forma estava me ajudando.

Hoje, depois de 2 anos e 9 meses, vejo que o sistema me ajudou a pensar mais na vida e no meu futuro. Porém vejo que o sistema socioeducativo está precisando de muitas mudanças dentro das unidades. Proponho que a medida socioeducativa tem que trabalhar com cursos profissionalizantes e técnicos, dar recursos e apoio para quando os adolescentes saírem da medida terem empregos garantidos, pois ajudaria os jovens a se identificar com alguma profissão, para seguir carreira na área de trabalho. Porém, se o Brasil não começa a olhar para o social dos adolescentes e ficar apenas jogando eles dentro de uma cela, não vai resolver nada e só vai aumentar a revolta. Pois vou dar uma sugestão: trabalhe com o Programa para Egresso e parem de ficar pensando em maioridade penal, porque isso não vai melhorar o Brasil. Pare, pense e invista em educação, não em sistema prisional.

Entretanto, entra o orçamento Público. Em meus conhecimentos, ele define as prioridades na aplicação dos recursos que o governo arrecada para garantir o bem estar da sociedade. A forma como é feito tem impacto direto na proteção, respeito e promoção dos direitos humanos. Ao elaborar o orçamento, o governo faz uma estimativa de arrecadação e de gastos para saber quanto terá disponível para investir nos seus diversos projetos. Depois, o governo gasta em obras e serviços para a população. É preciso planejar e definir prioridades para manter as cidades funcionando.

Para isso acontecer, o Estado arrecada recursos da sociedade por meio de impostos, taxas e contribuições. Nisso a sociedade espera um retorno compensatório, porém o governo investe mais dinheiro em cidades do DF onde há mais capitalismo, e acaba que onde moram as pessoas de baixa renda, falta de atendimento de saúde, educação e segurança. Vejo que existe uma desigualdade por classe social. As Regiões administrativas que o governo mais investe são Plano Piloto, com a verba de R$ 1.604.644.762,00,  também tem Vicente Pires, com R$ 166.083.599,00, e nessas regiões a maioria da população é de classe média ou ricos.

Em meus conhecimentos, geralmente quem detém poder afirma que só sabe sobre aquele assunto quem teve acesso a certos espaços e a certo tipo de educação. Porém, existem outras formas de organizar e pensar um orçamento público, e há possibilidade de construir momentos e lugares onde as diversas vozes possam ecoar. Para que esses encontros sejam possíveis, o processo precisa ser baseado no diálogo, sendo fundamental a disposição tanto para ouvir quanto para falar. Essas reflexões nos auxiliam de duas formas: a realizarmos nossas próprias escolhas e a entender que podemos agir sobre a realidade. Acreditamos que não é necessário um diploma de economia para entender e ter opiniões sobre quais devem ser as prioridades do orçamento público. Em resumo, a definição de prioridades no orçamento público é objeto de debate político e da correlação de forças: ganha quem tem mais poder de pressão.

Eu peço que o conteúdo aqui exposto sirva para a reflexão, mas também para a ação.

 

“Não tenho flor para regar,

Mas tenho semente para plantar:

Cabe o futuro dentro dela.”

[1] Antigo Centro Socio Educativo Amigoniano. Hoje chamado de Unidade de Internação Provisória de São Sebastião (UIPSS).

Dos militares ao novo PGR, grandes projetos ameaçam uma das áreas mais preservadas da Amazônia

O governo Bolsonaro tem cerca de 100 militares ocupando cargos importantes. Desses, pelo menos 46 são estratégicos, tendo a palavra final sobre questões como matriz energética, extração de minérios, construção de estradas e questões indígenas. Além do Ministério de Minas e Energia, os militares assumiram também cargos de gerência na Petrobras, Eletrobras, da Zona Franca de Manaus e da usina de Itaipu.

Assim, não surpreende que o governo federal tenha anunciado o interesse em retomar grandes projetos na região Amazônica, uma tônica do período da ditadura militar.

Dessa vez, uma das áreas mais preservadas da Amazônia, a Calha Norte do rio Amazonas, está no alvo. O governo pretende construir uma nova hidrelétrica em Oriximiná, no rio Trombetas, em Cachoeira Porteira, onde existe uma terra quilombola, com o objetivo alegado de “abastecer a Zona Franca de Manaus e região, reduzindo apagões”.  Tentativas de governos anteriores de construir usinas nessa área fracassaram justamente em virtude dos conflitos socioambientais inevitáveis.

Localizada no noroeste do Pará, a Calha Norte possui o maior bloco de áreas protegidas do Brasil e representa 12% do Escudo das Guianas, uma das formações geológicas mais antigas do planeta Terra, com 4,5 bilhões de anos. Apenas nesta parte há 23 áreas protegidas e 2 milhões de hectares de floresta tropical. Ao todo, são 11 Unidades de Conservação (UCs) – das quais 7 estaduais e 4 federais, além de 5 Terras Indígenas (TIs) e 7 Territórios Quilombolas.

Além da construção da hidrelétrica, o governo também planeja a instalação de uma ponte sobre o Rio Amazonas, no município de Óbidos (PA), e estender a BR-163 até a fronteira do Suriname.

Documentos e áudios divulgados pela Open Democracy e pelo The Intercept Brasil confirmam os planos de Bolsonaro e as intenções do núcleo militar do governo que já tinham sido divulgados ao longo de 2019 e que nunca fizeram questão de esconder.

Para o professor Durbens Nascimento, cientista político e diretor geral do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA) da UFPA, os planos do governo Bolsonaro remontam totalmente a um ideário militar sobre a Amazônia que foi largamente difundido durante a ditadura. A prática, no entanto, dependerá de articulação política.

“A implantação desse programa dependerá decisivamente da capacidade de articulação do governo federal no Congresso. Ao meu modo de ver, é insustentável a crença de que ele não sairá do papel”, alerta.

Coalização de direita heterogênea e discurso militar também

Em entrevista à Voz do Brasil, o Secretário especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, general Santa Rosa, afirmou que não é mais possível fechar os olhos a essa região da Amazônia e tratá-la como um “latifúndio improdutivo”. O general não mencionou os impactos para os povos indígenas e quilombolas que correm o risco de ter suas terras inundadas.

Os primeiros estudos para hidrelétricas na região remontam à década de 80. Atualmente, o “Plano Nacional de Energia 2030″ do Ministério de Minas e Energia projeta 15 hidroelétricas na Bacia do Rio Trombetas. A hidrelétrica em fase de estudo mais adiantada, UHE Cachoeira Porteira, inundaria Terras Indígenas, Terras Quilombolas e Unidades de Conservação.

Na avaliação de Durbens Nascimento, o governo é formado por uma coalizão de direita heterogênea na prática e na concepção ideológica. Ele fundamenta o anúncio de suas múltiplas políticas em supostos teóricos neoliberais. “Os militares não veem problema nisso, desde que os agentes que capturarem os recursos naturais estimulados pelo “progresso” não sejam os indígenas, as populações tradicionais, enfim, o povo brasileiro”, afirma.

Assim, o que resta de nacionalismo nas Forças Armadas estaria se ressignificando, sem contradição em patrocinar o comércio em princípios neoliberais e recepcionar investimentos de EUA e/ou China com relação à exploração da Amazônia, pois ambos trariam “progresso”, analisa o professor.

Novo PGR quer avançar em projetos de infraestrutura e enfraquecer atuação ambiental do MPF

A capacidade de articulação do Ministério Público Federal em atuar na defesa dos povos e comunidades afetadas também pode ser colocada em dúvida com a posse do novo PGR nomeado por Bolsonaro, Augusto Aras. Estes projetos na Calha Norte e tantos outros na região amazônica ficariam, portanto, sem um mecanismo de defesa institucional que, até o momento, existe.

O PGR tem, na teoria e na prática, atuado para “destravar” projetos de infraestrutura no Brasil, com atenção especial para a Amazônia.

Se definindo como “desenvolvimentista”, Aras afirmou que não é possível relevar os “minerais estratégicos” que possuem as terras indígenas, por exemplo. “Não podemos ignorar que proteção das minorias, inclusive indígenas, passa por interesses econômicos relevantes, internos e externos”, disse o PGR.

Mais: a principal “marca da sua gestão” seria justamente o “destravamento burocrático de grandes projetos de infraestrutura”. Os procuradores têm autonomia funcional para atuar juridicamente e pedir liminares contra obras, em geral por razões ambientais.

Na avaliação de Aras, segundo reportagem, caberá a ele, como chefe da PGR, “construir consensos e mudar a postura do órgão em relação a projetos estratégicos”. O novo nomeado já começou a rever posições da antecessora, Raquel Dodge, que “desagradaram” Bolsonaro, como ir contra o Marco Temporal, que afeta diretamente a demarcação de terras indígenas.

A atuação de Aras em favor do Linhão de Tucuruí, que vai de Manaus a Boa Vista e que atravessa a terra indígena Waimiri-Atroari, e sua posição favorável à Ferrogrão teria sido um dos trunfos que levou a escolha de Bolsonaro.

Desmatamento e pecuária avançam na região

Parte de um projeto estratégico permanente mantido pelas Forças Armadas desde 1985 e movidos pela “cobiça internacional sobre as reservas naturais do Brasil”, os militares mantém o Programa Calha Norte para “promover a ocupação e o desenvolvimento ordenado e sustentável da região amazônica”, além, é claro, da defesa nacional.

O programa abrange 379 municípios, distribuídos pelo Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul (faixa de fronteira), Pará, Rondônia e Roraima. São quase nove milhões de brasileiros abrangidos, incluindo 46% da população indígena em uma área que corresponde a 44% do território nacional. Segundo as Forças Armadas, o programa já investiu, desde a sua criação até os dias de hoje, aproximadamente 3 bilhões de reais.

Até 2017, 9,6% do território da Calha Norte havia sido desmatado. 97% desse desmatamento ocorreu fora das áreas protegidas, uma demonstração da sua eficácia na proteção da floresta.

Mas isso tem começado a mudar justamente pelas promessas de obras de infraestrutura na região, favorecendo a criação de gado e o desmatamento. As florestas estaduais de Paru, de Trombetas e de Faro, mais ao sul da Calha Norte, são as mais afetadas.

Isso é reflexo direto das políticas e declarações do governo Bolsonaro.

Para Durbens Nascimento, a maior ameaça à soberania nacional está no próprio governo atual e nos seus paradoxos conceituais sobre a soberania.

Assim, a defesa dos interesses nacionais volta-se contra as ONGs, os indígenas e a diversidade de grupos sociais existentes na Amazônia, ao invés de erguer-se contra os conglomerados financeiros e as grandes corporações de todo tipo interessadas na exploração desenfreadas dos recursos naturais na Amazônia. “Como se o problema do desenvolvimento do Brasil estivesse no solo e no subsolo da região e não na forma pela qual, política e socialmente, a exploração dos recursos se dão e como são distribuídos na sociedade os seus benefícios”, lembra.

Essa comprovada permanência de velhos princípios geopolíticos no imaginário dos militares brasileiros impede que eles repensem o conceito de nacionalismo e de soberania na contemporaneidade. E quem paga, tanto no passado quanto no presente, é o Brasil.

“A nação dos militares é egoisticamente definida para eles, sua identidade, seus valores, sua instituição e seus projetos, definidos homogeneamente em interação com os “outros” grupos “sensíveis politicamente”: comunistas, indígenas e ongueiros, os quais formam uma coalizão antinacional, antiprogresso e antissoberania”, finaliza Nascimento.

Reforma tributária: propostas prometem cortar isenções fiscais, mas não atacam desigualdade estrutural

Nas últimas semanas, a reforma tributária tem ganhado destaque na pauta da política nacional. A intenção de Rodrigo Maia, Presidente da Câmara dos Deputados, é elaborar um único texto até final de outubro, que reuniria as três principais proposições apresentadas.

Para além da simplificação, que é o mote central das propostas, outra questão que está em jogo são os benefícios fiscais e gastos tributários. Benefícios fiscais acontecem quando empresas ou indivíduos recebem o direito de não pagar, ou reduzir o pagamento, de algum imposto. Os gastos tributários[1] federais, uma parte desses benefícios, são estimados em R$ 326 bilhões para o ano de 2020 e não cobrem as isenções fornecidas por estados e municípios. Dessa forma, bilhões de reais deixam de entrar nos cofres públicos anualmente, comprometendo a realização de gastos em políticas e promoção de direitos.

Por um lado, essas isenções são acompanhadas da justificativa de que estimulam o desenvolvimento de um setor ou de uma região e de que contribuem para reduzir desigualdades. Por outro, não é possível saber quem são os beneficiários das isenções nem se elas trouxeram os ganhos que foram prometidos. O que sabemos é que a maioria dos gastos tributários vão para empresas, entre elas multinacionais como a Vale, o que evidencia a necessidade de revisão desses gastos indiretos do governo.

A campanha Só Acredito Vendo do Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos) defende o fim do sigilo dos gastos tributários, além da avaliação e revisão desses gastos governamentais. Nesse sentido, apoiamos o Projeto de Lei 188/2014, já aprovado no Senado, que obriga a Receita Federal a divulgar quais as empresas beneficiadas por isenções de impostos e contribuições e com que montantes.

Como estão estruturadas as diferentes propostas de reforma tributária? E como elas lidam com as isenções fiscais e gastos tributários?

As propostas de reforma da Câmara e do Senado

As propostas mais relevantes até agora focam na simplificação de tributos, o que implica em uma substituição de impostos, isto é, a extinção de alguns impostos e criação de novos.

No quadro resumido abaixo, vemos as duas reformas tributárias que estão com textos iniciais formulados: a PEC 45/2019, apresentada na Câmara pelo deputado Baleia Rossi (MDB-SP) e escrita pelo economista Bernard Appy; e a PEC 110/2019, elaborada pelo ex-deputado Luiz Carlos Hauly e defendida por um grupo de 66 senadores e senadoras. A segunda chegou a ser aprovada em Comissão Especial da Câmara, mas ainda não foi a plenário.

Os dois textos extinguem tributos federais e estaduais e criam um Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), que se transformaria no principal tributo sobre consumo do país. Se aprovado, o IBS incidirá sobre bens e serviços e os empresários poderão deduzir, na hora do recolhimento, os gastos com insumos. Esse tipo de gravame é conhecido internacionalmente como Imposto sobre Valor Adicionado (IVA) e seria cobrado no destino, isto é, no estado que recebe a mercadoria. A simplificação não significa, em nenhuma dessas propostas, a diminuição ou mudança da composição da carga tributária.

reforma tributária

Um glossário ao final da matéria explica cada um dos impostos discutidos neste texto.

As propostas deixam de fora sua parte principal: qual seria a alíquota do novo imposto. Ela será definida posteriormente, por lei complementar. Para compensar a desoneração da folha de pagamento, que basicamente banca a previdência social, o novo imposto teria que ter altas taxas, chegando, em algumas propostas, a 35%. A média das alíquotas gerais do ICMS gira em torno dos 18%. A princípio, os períodos de transição, que são previstos em ambas as propostas de reforma, diminuiriam o impacto dessa mudança. Entretanto, como essa transição podendo chegar a 50 anos, a reforma demoraria décadas para mostrar sua efetividade.

O governo federal ainda não entregou sua proposta de reforma tributária. Após flertes com a criação de um imposto sobre contribuições financeiras, que culminaram com a demissão do líder da reforma no governo, Marcos Cintra, o governo prometeu uma proposta para início de outubro. A princípio, a proposta seria mais conservadora, focada apenas na união do PIS e do Cofins e não mexendo nos impostos estaduais e municipais.

Existem ainda outras propostas de reforma tributária, como a do Instituto 200, que elimina tributos que incidem sobre consumo, propriedade, renda e folha de pagamento, criando um imposto único sobre todos os pagamentos. Além disso, mais de 150 emendas já foram propostas até agora em cima dos textos que estão tramitando no Congresso e no Senado. Portanto, apesar das intenções de Maia, ainda estamos longe de saber qual será o texto final de reforma tributária a ser votado pelos parlamentares.

As reformas e os gastos tributários

Visto que as isenções estão vinculadas a um tributo, a extinção dele implica no aniquilamento das isenções a ele relacionadas, a não ser que elas sejam explicitamente mantidas. As propostas têm divergências importantes, mas convergem no sentido de impossibilitar a criação de benefícios vinculados ao IBS na maioria dos casos. Isso significa um corte de bilhões de reais em desonerações.

Na PEC 45 não se admitem desonerações tributárias. O único benefício tributário considerado é o imposto pago pelos cidadãos de baixa renda, que seria devolvido por meio de mecanismos de transferência de renda.

A PEC 110, por sua vez, é mais flexível às desonerações. Além de ter a mesma possibilidade de transferência de renda da PEC 45, o IBS não poderá ser objeto de benefício fiscal, exceto se estabelecido por lei complementar em relação a uma série de produtos: alimentos; medicamentos; transporte público coletivo urbano; bens do ativo imobilizado; saneamento básico; e educação.

Fica também mantido na PEC 110 o tratamento tributário privilegiado para as micro e pequenas empresas e a permanência dos benefícios relacionados à Zona Franca de Manaus. A proposta estabelece, por fim, que o IPVA e o IPTU terão limites para concessão de benefícios fiscais, estabelecidos respectivamente pelos estados e municípios.

Com a substituição de impostos, os benefícios fiscais cairiam na casa dos bilhões de reais. Para citar alguns exemplos dos possíveis cortes advindos da PEC 45, retirados da estimativa de gastos tributários para 2020 do governo, só o fim da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins) significa R$ 73,4 bilhões em gastos tributários, que representa 22,4% do total. Os benefícios para a Zona Franca de Manaus, diminuiriam em R$ 17,6 bilhões.

Dado o caráter incipiente da reforma, porém, ainda não sabemos se essas propostas de corte de desonerações se manterão e quais setores serão poupados. Por um lado, Paulo Guedes e o âmbito liberal do governo defendem a diminuição dos benefícios, pois eles seriam uma afronta ao funcionamento livre do mercado. Por outro lado, o lobby das empresas no Congresso para manter seus privilégios é muito bem estruturado. Temos como exemplo o lobby bem-sucedido da Coca-Cola e Ambev para manter seus subsídios na Zona Franca de Manaus, como analisado em matéria do Inesc.

O possível fim de uma série de gastos tributários deve ser avaliado de maneira esperançosa, porém cautelosa. Tal medida pode contribuir para o fim de milhões em benefícios fiscais para grandes empresas e o aumento das receitas públicas. Entretanto, o fim indiscriminado de tantas isenções vai contra a ideia de avaliar e revisar os gastos tributários para garantir que, quando aplicados, eles promovam o desenvolvimento regional ou setorial e diminuam as desigualdades. Existem gastos tributários que contribuem para diminuição de desigualdades, como a isenção do IPI na aquisição de automóveis por pessoas portadoras de deficiência. É preciso, portanto, acompanhar as discussões para garantir que as isenções que serão mantidas garantam justiça tributária.

Para além dos gastos tributários: as reformas promovem justiça fiscal?

De maneira mais ampla, as reformas tributárias em debate no Executivo e no Legislativo não enfrentam um dos maiores problemas do Brasil, que é a desigualdade. O sistema tributário vigente agrava as distâncias entre pobres e ricos, entre mulheres e homens, entre negros e brancos e entre regiões, porque é altamente regressivo, onerando proporcionalmente mais os mais pobres.

imposto regressico

Tal fenômeno ocorre devido à alta carga de impostos sobre consumo, enquanto gravames sobre renda e patrimônio são muito baixos quando comparados com os países da OCDE. Por exemplo, a ausência de tributo sobre lucros e dividendos, singularidade do Brasil no mundo (ao lado da Estônia). Esse novo tributo, porém, entrou em uma nova proposta que chegou à Câmara, a PEC 128/19 do deputado Luis Miranda (DEM-DF).

A proposta de Reforma Tributária Solidária, liderada pela Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Anfip) e pela Federação Nacional do Fisco Estadual e Distrital (Fenafisco), propõe uma mudança estrutural na composição da nossa carga tributária em prol da progressividade, o que significa uma redução dos impostos sobre consumo e aumento dos impostos sobre a renda e o patrimônio. A proposta foi o centro de uma Audiência Pública em julho de 2019 na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado Federal. Em relação aos benefícios fiscais, essa reforma reivindica a revisão e a diminuição dos benefícios fiscais e o maior combate à sonegação, que possibilitariam aumentar o gasto público mantendo a mesma carga tributária.

Quando questionado pelo G1 por que não apresentou uma proposta mais ampla, Bernardo Appy, principal formulador da PEC 45, afirmou que os estudos sobre esses temas ainda não estavam “muito maduros” e que, por isso, optou por deixá-los de fora.

O relatório da PEC do Senado, por sua vez, evidencia o problema basilar da carga tributária brasileira, sua regressividade, mas não propõe enfrentar o problema, apenas esclarecê-lo para a população brasileira. Nas palavras do relator Roberto Rocha, “teremos uma tributação sobre o consumo mais simples[…], em que o consumidor saberá exatamente quanto está pagando, tornando-se consciente de que financia verdadeiramente o Estado brasileiro. Sentindo o peso dos impostos indiretos no seu consumo, cobrará que a renda e o patrimônio sejam igualmente tributados, repartindo de maneira mais progressiva o peso da carga tributária sobre a sociedade brasileira”. Ora, se é sabido o problema, porque não o atacar nessa reforma tributária?

Utilizar esse debate para repensarmos os gastos tributários, em específico, e a composição da carga tributária, em geral, é o caminho para que a reforma contribua para a diminuição das desigualdades brasileiras. Fazer uma reforma “a toque de caixa”, que foque na simplificação e não ataque aos problemas estruturais de nosso sistema tributário, é perder uma grande oportunidade de promover a igualdade na cobrança de impostos no Brasil.

[1] Os gastos tributários fazem parte do bolo de desonerações fiscais do governo e podem ser isenções, deduções ou outros benefícios de natureza tributária que reduzem a arrecadação potencial. Eles funcionam como um gasto público, embora sejam uma renúncia de receita, e são criados com algum objetivo específico, por exemplo incentivo a setores econômicos. Isenções e benefícios fiscais podem, ou não, ser classificados pela Receita Federal como gastos tributários.

Leia também: Proposta de Reforma Tributária muito aquém da justiça social

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Políticas de mobilidade precisam considerar segurança das mulheres

Fala-se muito em direito à cidade, especialmente após os movimentos “occupy” ocorridos na Europa, Estados Unidos em 2011/2012 e Brasil, a partir das jornadas de junho de 2013. Não que o termo seja novo, ao contrário, por aqui veio na onda da abertura democrática com movimentos por moradia, especialmente os organizados no Fórum de Reforma Urbana. Dali vieram frutos, como o Estatuto das Cidades, aprovado em 2001, além da criação, em 2003, do Ministério das Cidades, extinto desde a posse do atual governo.

Mesmo debatido há tempos e alvo de inúmeros artigos e teses acadêmicas, o tema ainda não é assimilado nos planejamentos de políticas, nas distribuições orçamentárias e, principalmente, culturalmente, pois as desigualdades e distanciamentos entre centro e periferia só aumentam. Quanto maiores as cidades, pior a situação.

Ponto relevante com relação ao planejamento é a desintegração entre as políticas, mesmo aquelas que precisam andar juntas, como habitação e mobilidade. Não se conectam, não por acaso, mas por perversidade do sistema capitalista que amplia propositalmente os fossos das desigualdades. Os equipamentos públicos estão diretamente ligados à parte da população com maior renda, incluso a política de segurança, que é pensada para afastar centro e periferia, garantindo a paz dos ricos e o inferno dos pobres cada vez mais pretos. O transporte, que é um direito social, amplia desigualdades por ser caro, escasso e de má qualidade.

Mobilidade e gênero

As escolhas afetam especialmente aquelas que já não se sentem seguras, por viverem em um mundo machista, misógino, violento, que as objetificam até hoje, ou seja, as mulheres, e com maior virulência, as mulheres negras. As cidades são territórios inóspitos a elas, que caminham apressadas, ameaçadas que estão nas ruas sombrias – é fácil perceber que a iluminação existente é voltada para os carros, nas vias, não para as calçadas onde as (os) pedestres circulam−, nos pontos de ônibus em locais ermos, onde passarão muito tempo à espera do transporte de péssima qualidade, dentro do qual ainda podem ser assediadas.

Parece uma ladainha repetida? Recentemente uma jovem mulher foi vítima de feminicídio ao utilizar um transporte pirata e ser violentada e morta pelo condutor, sobre o qual recaíram outros casos semelhantes que estavam sem solução. Situações como esta deveriam minimamente obrigar os gestores a reverem suas políticas, mas eles ignoram os acontecidos, não se manifestam, especialmente por se dar na periferia.

Este caso específico aconteceu em Brasília, onde o transporte coletivo é de péssima qualidade, caro, sem transparência na composição da tarifa, pois além do que paga a usuária, há um enorme subsídio governamental para as empresas, que não apresentam demonstrativos de composição da tarifa.  A escassez de oferta em áreas mais distantes faz com que as pessoas se utilizem dessa forma de deslocamento, a pirata, abrindo mão da pouca segurança vivenciada no transporte coletivo, apesar dos assédios, e se aventurando em terreno desconhecido, sujeitas a todo tipo de violência, chegando ao feminicídio.

Um sem número de mulheres circula diariamente pelas cidades para ir ao trabalho, levar filhos à escola, fazer compras para a casa. E boa parte circula de transporte coletivo, complementado com caminhadas entre paradas de ônibus e estações de metrô e as escolas, casas e trabalhos.

São elas que mais caminham pela cidade, por fazerem maior número de deslocamentos ao se ocuparem dos filhos e da casa praticamente sozinhas. Em tese recente da UnB sobre medo das mulheres em caminhar pela cidade, 80% das mulheres pesquisadas manifestou grau significativo de medo, em Brasília. Fala-se muito da falta de iluminação, novamente a questão de se ter ruas iluminadas e calçadas escuras.

Mas quem planeja as cidades? Em geral homens, brancos, que circulam de carro por ela e não as vivenciam. O que seria uma cidade planejada por quem de fato a vivencia? Incluindo mulheres, que são aquelas que mais fazem viagens cotidianas e sentem-se desconfortáveis por serem vítimas de uma sociedade machista, misógina, racista? Deveríamos perceber que existem direitos na cidade, tais como moradia, transporte, saúde, educação etc., e direito à cidade que seria a possibilidade de transformá-la, na contramão de esquemas tais como Centro- Cidades Satélites, que reproduzem as desigualdades seculares e colonizadoras.

No entanto, parece uma possibilidade distante, se considerarmos a proposta de Plano Plurianual enviada pelo atual governo ao Congresso Nacional, que coloca na dimensão econômica as políticas de moradia e mobilidade urbana, afundando-as, ainda mais, na lógica capitalista, que reforça todos os ismos, machismos, racismos etc. Até porque, a relação estabelecida para com as mulheres contribuiu e muito para cimentar e consolidar o mundo desumano que vivenciamos, cada vez mais lucrativo para os que concentram renda, que são masculinos e brancos.

Leia também: Inesc lança campanha pela regulamentação do transporte como direito

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