Bolsonaro: a fome como projeto - INESC

Bolsonaro: a fome como projeto

06/04/2021, às 19:34 (updated on 12/08/2025, às 11:02) | Tempo estimado de leitura: 14 min
Por Nathalie Beghin, Coordenadora da Assessoria do Inesc
A impactante, e mais do que necessária, campanha “Tem gente com fome”, lançada em 16 de março de 2021 por um conjunto de organizações da sociedade civil, revela a urgência de enfrentar esse mal que pensávamos superado no Brasil.

Segundo dados recém-lançados da Rede Penssan, em dezembro de 2020, mais de 19 milhões de brasileiros viviam em situação de insegurança alimentar grave, semelhante à fome. A interrupção do Auxílio Emergencial desde então contribuiu para piorar esse cenário, e muito.

Mas, por que há fome no Brasil? Os argumentos são vários, pois o problema é complexo.

Porque há desigualdade e pobreza

Diferentemente do que muitos alardeiam, a fome no Brasil não tem nada a ver com o crescimento excessivo da população ou com a insuficiência de alimentos. Muito pelo contrário, a taxa de fecundidade no Brasil vem caindo e atualmente atinge níveis inferiores a media mundial. Quanto a produção de gêneros alimentícios, o país está entre os campões mundiais de produtores de soja, milho, café, açúcar e carnes entre outros.

Um dos problemas centrais da fome no Brasil é a falta de recursos para comprar comida. E, a desigualdade abissal que caracteriza o país, onde poucos têm muito e muitos não têm quase nada, piora a situação.

Soma-se a isso, nos dias de hoje, a inflação de alimentos. Dados da Pesquisa Nacional da Cesta Básica de Alimentos realizada pelo Dieese mostram que o custo da alimentação disparou no último ano. Os preços do conjunto de alimentos básicos, necessários para as refeições de uma pessoa adulta aumentaram em todas as 17 capitais pesquisadas, com variações entre 16,76% a 33,17%.

Note-se que esse fenômeno tem várias causas, podendo-se destacar a desvalorização cambial, o abandono da política de estoques reguladores por parte do governo federal e fatores climáticos, em decorrência de longos períodos de estiagem ou de chuvas intensas. Esse expressivo aumento afeta principalmente a população de menor renda uma vez que o peso da alimentação no orçamento dessas famílias é muito maior.

Outro aspecto relevante diz respeito a carga tributária que pesa mais em quem tem menos porque incide especialmente sobre o consumo, onerando sobremaneira a cesta básica adquirida pelos mais pobres. Segundo estudo do Ipea, atualmente, a fatia da população de menor renda paga cerca de 26,7% do que ganha em impostos sobre o consumo, enquanto os mais ricos arcam com apenas 10,1%.

Em resumo, as pessoas que vivem em situação de pobreza são triplamente penalizadas: porque não têm rendimentos adequados e porque seu baixo poder aquisitivo fica ainda menor em função da inflação dos alimentos e dos impostos.

Porque o agronegócio e a grande indústria de alimentos produzem doença e exclusão

Na cadeia alimentar, cada vez menos empresas competem entre si. Hoje, um pequeno número de corporações globais organiza a agricultura e os padrões de consumo de alimentos em escala mundial. E a tendência dominante é a crescente concentração do sistema agroalimentar internacional, com aumento do controle das multinacionais sobre a produção e o consumo de alimentos.

Por exemplo, quatro empresas dominam a importação e a exportação de commodities agrícolas: Archer Daniels Midland (ADM), Bunge, Cargill e Louis Dreyfus Company. Essas empresas comercializam, transportam e processam diversos produtos alimentares. Possuem navios oceânicos, portos, ferrovias, refinarias, silos, moinhos e fábricas. Juntas, representam 70% do mercado mundial de commodities agrícolas.

Esses poderosos grupos capturam os poderes públicos, nacionais e internacionais, na defesa exclusiva de seus interesses e, assim, influenciam leis e processos que resultam na expansão do monocultivo; na diminuição das proteções socioambientais e climáticas; na aquisição de terras por meio da expulsão dos proprietários originários como agricultores familiares, povos indígenas e outras comunidades tradicionais; em volumosos incentivos fiscais; no envenenamento das pessoas por meio da utilização em massa de agrotóxicos; e, outras vantagens que geram exclusão, miséria e adoecimento.

No varejo o quadro é semelhante. Os grandes supermercados definem os preços e os intermediários repassam as perdas para os agricultores e as agricultoras, que são o elo mais frágil da cadeia. Assim, por exemplo, no Brasil, apenas três empresas, Pão de Açúcar, Carrefour e Walmart se apropriam da maioria do total faturado pelo setor.

Essa assimetria de poder resulta na exclusão de pequenos agricultores e vendedores, como quitandas, mercearias, feiras e outros, provocando pobreza e desigualdade, especialmente no campo. Uns, porque não conseguem competir com os preços praticados pelos supermercados e outros porque não conseguem vender devido as exigências das grandes redes varejistas que vendem alimentos.

O poder dos conglomerados privados não para por aí. Empresas transnacionais como Unilever, Nestlé, Mondeléz, Coca-Cola, Pepsico e Danone aumentaram seu faturamento no Brasil vendendo alimentos ultraprocessados, que chamamos de “comida porcaria”. Alimentos ultraprocessados são vazios em nutrientes e ricos em sal, açúcar, gorduras e outras substâncias químicas, são sopas em pacote, sorvetes, pães, bolachas, lasanhas, pizzas, hambúrgueres, refrigerantes, refrescos, entre outros. Esses produtos resultam no aumento do sobrepeso e da obesidade que, por sua vez, provocam doenças como hipertensão, diabetes e diversos tipos de câncer. E mais, por ser mais baratos e de fácil consumo, contribuem para que a população abandone a ”comida de verdade”, o nosso tradicional arroz com feijão e farinha.

Em resumo, o agronegócio não é nada pop. Produz exclusão e fome em toda sua cadeia.

Porque o Brasil não fez a reforma agrária

Para além da insuficiência da renda e da crescente industrialização das atividades agrícolas, a fome no Brasil também se explica pela concentração de terras nas mãos de grandes empresas e fazendeiros que expulsam trabalhadores do campo e das florestas de suas terras.

A desigualdade fundiária no Brasil é expressiva e vem aumentando. Segundo dados do IBGE, apenas 1% dos estabelecimentos agropecuários reúne quase metade da área rural ocupada para fins econômicos. Essa concentração é resultado de um modelo de disputa, onde o agronegócio hegemônico desaloja de suas terras e territórios camponeses, povos indígenas e outros povos e comunidades tradicionais. Com isso, nos últimos 20 anos, as culturas agrícolas voltadas para exportação, como soja e milho, cresceram exponencialmente, enquanto as plantações de itens da cesta básica, como arroz e feijão, tiveram expressivas reduções de área.

O modelo de produção de alimentos altamente concentrador e baseado na monocultura não só produz e reproduz desigualdade, fome e pobreza como destrói o meio ambiente e contribui para o aquecimento global. Por ser altamente dependente de insumos e tecnologias caras, geralmente não adequadas a utilização do solo, esse modelo agrava os problemas ambientais visto que as práticas agrícolas adotadas são conflitantes com o uso sustentável da terra e a proteção da biodiversidade.

Em resumo, a concentração da terra associada a uma agricultura centrada na monocultura intensiva em capital prejudica triplamente as pessoas que vivem em situação de pobreza gerando fome: os agricultores e trabalhadores do campo perdem suas terras e são forçados a imigrar, engrossando os subempregados das periferias das cidades; esse processo de desenraizamento das origens resulta no abandono de hábitos alimentares tradicionais e saudáveis e na adesão aos ultraprocessados. Por fim, o modelo de produção alimentar hegemônico contribui para o aquecimento global, gerando eventos climáticos extremos, como inundações e secas, que atingem especialmente os mais pobres.

Porque há racismo

No Brasil, a discriminação racial, ou seja, a convergência do preconceito e do racismo prejudica indivíduos somente em razão de suas características físicas ou culturais. A análise das estatísticas oficiais mostra que as desigualdades econômicas e sociais entre negros e brancos não se alteraram nas últimas décadas.

No caso da fome não é diferente. Segundo os dados recém-lançados da Rede Penssan, a prevalência da insegurança alimentar grave entre domicílios cuja pessoa de referência era negra alcançou 10,7% no final de 2020; entre os brancos esse percentual era menor, de 7,5%. Os dados do IBGE sobre o tema revelam desigualdades mais acentuadas e que se mantiveram no tempo.

A persistência de altos índices de desigualdades raciais que o processo de exclusão a que está submetida a população negra na sociedade brasileira está diretamente relacionado ao fenômeno da discriminação racial. De fato, a perpetuação, ao longo das décadas, de tais níveis de desigualdade indica a manutenção de um processo ativo de discriminação de indivíduos em razão de sua cor que opera em diferentes esferas da vida social, como a educação e o mercado de trabalho. Paralelamente, a reprodução de preconceitos e estereótipos raciais legitima os procedimentos discriminatórios. A desigualdade racial emerge, assim, como fruto de um processo complexo, no qual se pode identificar a ação de diferentes fenômenos: o racismo, o preconceito racial e a discriminação racial.

Em resumo, a maior parte das pessoas que passam fome é negra e isso ocorre essencialmente em decorrência do racismo.

Porque o governo Bolsonaro acabou com as políticas de segurança alimentar e nutricional

Desde a promulgação da Constituição de 1988, o Brasil foi estruturando importante conjunto de políticas e programas de promoção da segurança alimentar e nutricional. Tratava-se de intervenções que conjugavam ações de fortalecimento da agricultura familiar e de abastecimento, de distribuição de alimentos, de transferência de renda, de promoção da alimentação saudável e de valorização de hábitos culturais ancestrais e tradicionais. A centralidade do tema passou a se refletir na instalação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), em 1993/94 e depois a partir de 2003, que assessorava o Presidente da República na área. O Consea passou a se articular em 2006 com a Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional (Caisan) que era responsável pela implementação da política. Essa institucionalidade era reproduzida nos estados e municípios conformando, assim, o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan).

O resultado desse esforço pode ser observado na queda continua do número de pessoas passando fome no Brasil. Em 2014, as Nações Unidas anunciaram que o país tinha saído do Mapa da Fome, que é anualmente lançado pela FAO.

Contudo esse quadro mudou com o governo Bolsonaro que extinguiu o Consea e a Caisan bem como toda uma série de ações voltadas para o enfrentamento da insegurança alimentar e nutricional no país. As consequências se fizeram sentir rapidamente com o aumento da pobreza e da miséria. O quadro se agudizou com a pandemia da Covid-19 e com o fim irresponsável do Auxílio Emergencial em dezembro de 2020.

Em resumo, há fome no país porque os poderes públicos abandonaram seu papel central na realização progressiva do direito humano à alimentação adequada.

Essa combinação explosiva de Estado deliberadamente ausente, com agronegócio em franca expansão e mecanismos contínuos de discriminação e de preconceitos, raciais e sociais, resulta em miséria e fome. O Brasil de Bolsonaro nos envergonha, pois valoriza o que há de mais repugnante na nossa sociedade: o racismo e o abandono do povo à sua própria sorte.

Brasília, 06 de abril de 2021.

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Sem participação, não há clima: a COP 30 precisa ouvir as ruas

20/11/2025, às 9:02 (updated on 20/11/2025, às 13:25) | Tempo estimado de leitura: 7 min
É urgente transformar as conferências de clima em espaços participativos, com a presença maior dos mais impactados pela crise
Foto: Stela Herschmann / OC

A 30ª edição da Conferência das Partes (COP) da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima prometeu desde o começo que seria uma COP de ampla participação social. Porém, o que se observou logo nos primeiros dias é que talvez as Nações Unidas não estejam tão preparadas assim para garantir essa  participação de forma efetiva. 

A começar pela  alocação de cotas de credenciais para as organizações observadoras acessarem a Blue Zone, espaço oficial das negociações, que se mostrou um desafio de saída. Por outro lado, lobistas do petróleo conseguiram 1.602 credenciais, a maior presença proporcional deste grupo em relação ao número total de participantes já registrada (dados são da coalizão Kick Big Polluters Out). Apesar disso, os movimentos sociais, organizações, representantes de povos indígenas e de comunidades tradicionais vieram a Belém, com a esperança de fazer dessa a maior conferência de clima dos últimos anos. 

Contudo, em contraste com a prometida participação social, veio a adoção da operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) pelo governo Federal, com a militarização ostensiva do espaço da conferência e da cidade de Belém. 

Diante desse cenário, povos indígenas, povos e comunidades tradicionais, fizeram um protesto dentro da zona azul. Entraram na conferência do clima demandando que suas vozes sejam ouvidas e incluídas nos espaços de negociação. A resposta veio em forma de aumento da presença das tropas do exército na entrada da conferência, garantindo uma suposta segurança aos delegados. E uma maior restrição à entrada em espaços como a zona verde, que tecnicamente era uma zona com entrada livre. 

Ainda assim, as ruas e os diversos espaços comunitários foram tomados pelas vozes dos movimentos e dos diferentes povos que vieram a Belém. Com o objetivo de que as lutas não passassem despercebidas, e que as negociações não deixassem para trás pontos cruciais no debate pela justiça climática. 

Mobilização Global pelo Clima

Bruno Peres/Agência Brasil

A maior expressão desse momento foi a mobilização global pelo clima, que levou mais de 50 mil pessoas às ruas da capital da COP 30, demandando justiça climática, transição justa, combate ao racismo ambiental, demarcação de terras indígenas e o combate aos combustíveis fósseis. 

No início da segunda semana da COP, observou-se um aumento das forças de segurança na entrada do espaço de conferência e uma maior restrição na entrada, evidenciando a falta de “boa vontade” da ONU com processos de participação popular.

Isso ficou ainda mais explícito quando Simon Stiell, secretário executivo da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, enviou uma carta ao presidente Lula demandando que medidas fossem tomadas em relação à segurança e, pasmem, ao calor excessivo e às chuvas em Belém. 

É verdade que o calor excessivo e as chuvas torrenciais – exacerbados pelas mudanças climáticas – foram personagens ilustres da COP 30. Mas não é justamente sobre isso que trata a conferência? Estes fenômenos não escancaram a necessidade de financiamento para a adaptação climática?

É espantoso que a carta classifique como violentos os povos indígenas que fizeram protestos. Essa fala ignora as lutas e as vozes dos povos, e os anos de exclusão desses espaços, além de estigmatizar um povo que já sofre com o racismo. E coloca-os nesse imaginário popular de violência e que, portanto, devem ser reprimidos e controlados, com todo o aparato das forças de violência estatal.

Se tem debate climático, tem mobilização

A sociedade civil pretende entregar uma carta exigindo que Simon Stiell revogue sua declaração anterior, e reconheça que as manifestações são parte fundamental de qualquer processo democrático. As mobilizações são inerentes ao debate climático, sobretudo, porque afeta de forma desigual povos e comunidades tradicionais, mulheres e comunidades periféricas. 

Além disso, Relatores Especiais da ONU emitiram uma declaração criticando a UNFCCC e a Presidência brasileira pelo aumento da segurança armada na COP 30 após os protestos pacíficos da primeira semana, alertando para o fato de que o ambiente de intimidação compromete princípios básicos de participação democrática. 

Se um país democrático foi escolhido para sediar uma conferência, é natural e legítimo que protestos e mobilizações sociais ocorram, principalmente no Brasil, onde a sociedade tradicionalmente vai às ruas quando não está de acordo com uma situação. Olhar para essas manifestações com medo de seu resultado revela que o processo que estamos inseridos nas negociações não têm sido suficientemente participativo ou democrático, e, portanto, não tem sido capaz de  ouvir as demandas daqueles que historicamente protegem mais a natureza e tem alternativas de soluções para a crise climática. 

É urgente transformar as conferências de clima em espaços participativos, com a presença de cada vez mais povos indígenas e povos e comunidades tradicionais que têm o real lugar de fala, e detém o conhecimento das alternativas às questões climáticas. E que as vozes da rua não sejam impedidas de falar. 

 

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