Iara Pietricovsky, membro do Colegiado de Gestão do INESC.
A Conferência das Nações Unidas para o Desenvolvimento e Meio Ambiente-Eco-92 foi uma importante inflexão dos governos sobre a política ambiental e revelou uma agenda política internacional fundamental para as próximas décadas que estavam por acontecer. Foi o maior evento organizado pela Organização das Nações Unidas (ONU) até então. Reuniu 179 países e trouxe 108 Chefes de Estado e de Governo à cidade do Rio de Janeiro. O evento também foi considerado um sucesso pela diplomacia brasileira e mundial. Dela surgiram acordos fundamentais, como a Agenda 21, as Conferências das Partes sobre Biodiversidade e Clima. Desta última, o Protocolo de Quioto e um plano de implementação. Outros eventos tão fundamentais quanto esse ocorreram nos anos posteriores.
A partir deste marcante evento uma série de Conferências Globais foram realizadas com objetivo de aprofundar e comprometer os países e povos com um novo marco de direitos e uma nova lógica sobre o sentido do desenvolvimento. É por isso que a palavra desenvolvimento esteve dialogando com praticamente todos os temas das Cúpulas promovidas pela ONU.
Era um período que a ONU gozava de confiança política global de fato e permitiu que a mesma convocasse, com legitimidade, vários encontros internacionais de alto nível, sucedâneos à Rio 92 e que tiveram o marco dos direitos humanos como base da abordagem das mesmas. Desta forma, foram realizadas as Conferências de direitos humanos, em Viena; de desenvolvimento social, em Copenhague; das questões de população e desenvolvimento, no Cairo; da condição da mulher, em Pequim e, dos problemas urbanos e o desenvolvimento, em Istambul. No início dos anos 2000 temas como o racismo, intolerância e discriminação entram na agenda, em Durban e também o tema estruturante do financiamento ao desenvolvimento, em Monterrey. A este ciclo nos referimos como o Ciclo Social das Nações Unidas.
Existia um ambiente político favorável desde que não estivesse na mesa o debate sobre quem pagaria pela transição de modelo de desenvolvimento. Aliás, é um dos temas que vem travando todas as negociações, reestruturando as instituições e redefinindo os atores que decidem nas instâncias internacionais, ou seja, hoje o poder se deslocou ainda que as instituições sejam as mesmas.
No ano 2000, com o lançamento das Metas do Milênio, ODM e depois de iniciado um novo ciclo de revisão das conferências cinco anos após (+5, +10 e +20) ficou evidente os sinais de “fadiga”[1] do sistema das Conferências. A ONU como instituição, começou a perder seu poder e legitimidade política. Isso ficou claro, ao longo do tempo, pelo baixo nível de comprometimento dos governos, pela ausência de investimento por parte do próprio sistema para fazer com que as negociações tivessem resultados efetivos dos pontos já negociados sem que se reabrissem as questões já acordadas. E por fim, a própria crise financeira do sistema de governança mais tradicional.
Desse tempo para os dias atuais foi um enfraquecimento paulatino do sistema ONU e também dos próprios Estados nacionais ali representados, de forma que os Acordos e Tratados ficaram mais no discurso do que efetivamente implementados. Essa, chamada “fadiga das Cúpulas” acabou colocando em risco todo um processo e que se refletiu na apresentação das Metas do Milênio, no ano 2000.
Os Objetivos do Milênio (ODMs) foram compreendidos pelos movimentos sociais e organizações da sociedade civil global[2] como uma redução radical de tudo que se havia alcançado em termos de Acordos e consensos dentro das Cúpulas. O debate realizado por quase uma década se reduzia a oito metas[3], cheias de problemas éticos, de implementação e de definição de responsabilidades. A falta de consenso sobre quem iria pagar a conta, as crises de legitimidade e financeira impediram qualquer avanço sobre o que já se havia debatido, negociado e acordado.
Dai para frente enfrentamos mais crises econômicas de todos os tipos começando com a crise do Sudeste Asiático e as economias em transição na América Latina (México, Brasil, Argentina), mais recentemente a crise dos países desenvolvidos. Os movimentos sociais e muitos analistas da sociedade civil, dentre eles a rede Social Watch, sinalizavam desde o início destas conferências sobre a urgência de uma nova arquitetura financeira internacional, uma nova governança e mais responsabilidade social das instituições de Bretton Woods e da Organização Mundial do Comércio (OMC). Alertavam sobre a necessidade de uma avaliação dos impactos sociais e ambientais da liberalização dos investimentos em todos os lugares do Planeta. Que era fundamental buscar novos modelos de desenvolvimento fundados na sustentabilidade, numa mudança da visão econômica neoliberal e enfrentamento das questões socioambientais e alimentares do Planeta.
Temas como pobreza, desigualdade dívida externa, apoio ao Desenvolvimento (ODA), nova arquitetura financeira, desenvolvimento sustentável e nova governança, que eram presentes em nosso vocabulário desde então, não tiveram eco efetivo assim como a ONU não teve força política para reverter decisões econômicas e financeiras no âmbito internacional. Políticas públicas globais passaram a ser definidas no G8 e pelo Fórum Econômico Global e depois elaboradas e implementadas pelas IFIs e pela OMC. Com a crise econômica nos países do G8 o sistema de governança sofre alterações e os países em desenvolvimento são chamados ao grupo seleto, constituindo-se assim o G20, entre muitas novas configurações que estão se formando no mundo. Nenhuma delas passa pelo fortalecimento do sistema multilateral capitaneado pela ONU. Esse movimento apresenta definitivamente uma nova governança e novos atores no exercício do poder.
O enfraquecimento da ONU e dos Estados nacionais, impactados pela chamada crise tripla (econômica, ambiental, alimentar) fez com que estes começassem a buscar nas grandes corporações transnacionais a resposta para suas dificuldades econômicas e vice versa, as Corporações Transnacionais (TNCs) buscaram os Estados (e muitas foram salvas com o dinheiro público na crise dos países ricos). As instituições multilaterais fragilizadas, em especial o FMI, são reerguidas para operar como formuladores dessa nova era do capitalismo financeiro estimulando, o que parece ser a chave de uma nova governança global, as parcerias público/privada. Se materializa definitivamente a visão ensaiada tantas vezes no passado. A globalização deu uma posição de destaque às grandes corporações financeiras e industriais valorizando uma visão de mercado, por onde, para estes, as soluções às crises podem ser resolvidas.
No entanto, para garantir hegemonia deste processo de privatização do sistema multilateral e dos Estados nacionais era necessário, também, alterar o marco regulatório de direitos constituídos. Desde a Segunda Grande Guerra Mundial, avançou-se com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, com os Direitos Humanos, Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais (DHESC) e, em especial, nestas Conferências do Ciclo Social da ONU que definiram essas novas gerações de direito. Não era só o direito individual que estava garantido, mas o coletivo também. Por isso, para as corporações e transnacionais era crucial que novos instrumentos fossem criados para que pudessem influenciar e mudar, com efetividade, as decisões e processos globais fundamentados neste enorme avanço sobre o direito humano.
Cria-se o Global Compact[4] que passa a ter um papel assessor tanto na era Kofi Anan, como na atual era Ban Ki Moon e, para tal objetivo, abraçam a agenda ambiental retomada na Rio+20 e todo o debate do Pós-2015. Apresentam-se como a solução dos problemas globais de combate a pobreza, à crise climática, ao uso de novas tecnologias e de financiamento.
O setor privado passa a dirigir estes processos, redefine conceitos acordados e os modifica. Na Rio+20 ficou evidente a introdução do conceito de economia verde entre outros. A tentativa de acabar com o conceito de CBDR (Responsabilidades Comuns Porém Diferenciadas), fundamental para garantir diferentes níveis de responsabilidades dos países frente ao combate dos desequilíbrios ambiental, climático e social, entre outros, demonstra que a visão de mercado sairia vitoriosa na disputa sobre o que significa o “desenvolvimento” seus possíveis caminhos e mecanismos. Mesmo o mecanismo CBDR sai com uma perna quebrada nesse novo momento do cenário internacional, onde corremos o risco de penalizar exatamente os menos os que têm menos responsabilidade sobre a profunda crise global.
Os que comandam hoje, o nosso mundo, são o Fórum Econômico Mundial, a Organização Mundial do Comércio, as Instituições Financeiras Internacionais (IFIs), tendo tanto os Estados Nacionais, como a ONU capturada pelos interesses destas corporações transnacionais, ainda que reste uma certa legitimidade e independência política, nas frágeis democracias de nosso tempo.
Reconhecemos, portanto, que a agenda global está capturada majoritariamente pelos conglomerados privados, ainda que a mesma seja crucial para equacionar a grave crise civilizatória e ambiental que vivemos. Todos os processos desencadeados, desde a Rio 92, até a última grande Conferência que foi a Rio+20, de onde também saíram os Objetivos do Milênio (ODMs), os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODSs), as Conferências das Partes de Biodiversidade de Mudança Climática, desembocam no chamado Pós-2015.
Em 2015 acaba o prazo definido pelos ODMs pela Assembleia da ONU. Desta forma tornam-se necessários novos indicadores e novas metas para a agenda global ao enfrentamento da pobreza e das desigualdades e da crise ambiental. Surge então, na Rio+20 o novo conceito que tenta articular as questões sociais, econômicas e ambientais, expressos em objetivos, ODSs. Este processo, que parece gigantesco e que parece envolver todo o Planeta, na verdade não será decidido na ONU e muito menos nas deliberações sobre a implementação no Pós-2015, ainda que este processo tenha seu valor de ampliar o debate.
Apesar de todo apelo que esta agenda nos remete e da ONU, e alguns governos, tentarem ampliar a discussão por meio de participação da sociedade global, via tecnologias de comunicação e dados abertos para trazer organizações e cidadãos e cidadãs para o debate, o que ocorre é um afunilamento no qual, as decisões finais, excluem todos os que foram convidados ao debate global e o texto final não reflete as principais demandas e preocupações expressas por aqueles convidados a opinarem.
Ademais os ODS são genéricos e sem clareza dos mecanismos de financiamento para a solução das questões. E, cada vez mais, as resoluções estão sendo colocadas nas mãos do setor privado, que privilegia uma visão de mercado requentando uma lógica que já demonstrou ser a causa do desastre global.
O relatório do Fórum Econômico Global, escrito antes da Rio+20 diz que o sistema de governança no futuro, será melhor administrado por coalizões de corporações multinacionais, Estados-nação (incluindo a ONU) e um seleto grupo de organizações não governamentais. E esta tem sido a diretriz. Segundo o Banco Mundial e a Revista Fortune, 110 entre as 175 maiores economias globais, em 2011, são corporações, sendo o setor corporativo a uma maioria com 60% sobre os países. A entrada das megacorporações tais como Royal Dutch Shell, Exxon Mobil e Wal-Mart produzem desequilíbrio total no sistema de poder global, pois, essas três somente, são maiores que 110 economias nacionais, mais da metade dos membros da ONU[5]. Portanto, o poder destas corporações no mundo e nos espaços políticos de decisão é inquestionável.
Diante desse contexto um dos principais desafios que permeia a elaboração dos ODS e a construção da agenda Pós-2015 diz respeito ao enfraquecimento do poder público, seja nacionalmente, seja no marco do multilateralismo. Uma das expressões desse enfraquecimento é a proposta de Parcerias Público/Privada (PPPs). Tal proposta carrega uma visão estrita de crescimento econômico e soluções baseadas no mercado para o tema do desenvolvimento sustentável, despolitizando as causas da pobreza, do desequilíbrio ambiental e da crise climática.
Além do mais, as PPPs abrem caminho para negócios das corporações que detêm poder no cenário global. São elas: indústrias extrativistas, de tecnologia de ponta, do setor químico, farmacêutica e de alimentação e bebidas. Essas empresas não atuam em favor do desenvolvimento sustentável, ao contrário, são contra o mesmo, pois visam o lucro e não a sustentabilidade em curto prazo e não a sobrevivência do Planeta no longo prazo. O poder de mediação do Estado fica prejudicado e sua legitimidade atacada, tendo o campo dos direitos enormes prejuízos, pois reside no estado o poder e legitimidade para que esses direitos sejam efetivados na vida dos/das cidadãos/cidadãs.
O processo de formulação dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODSs) está crivado de problemas[6]. São eles:
1) Do ponto de vista do processo de participação foi um tiro no pé, na medida em que, abriu para a participação formalmente, mas efetivamente quando se fechou o texto final das organizações da sociedade civil e movimentos sociais que participaram não tiveram direito de estarem presentes. É fundamental pensar a participação como um direito humano e desta forma, reformatar os mecanismos de tomada de decisão;
2) Os ODS não preenchem plenamente o objetivo de proteger e realizar os direitos humanos para todos e todas. Olhando na perspectiva do Ciclo Social das Nações Unidas e os Direitos Humanos, estamos caminhando a largo passo para a redução do que foi conquistado. A necessidade de reduzir custos e uma visão conservadora vem corroborando para este retrocesso;
3) Os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres ainda não são suficientes. Continuam não escutando as demandas do movimento de mulheres global nas suas reivindicações;
4) A concentração de poder e riqueza entre países e internamente aos países, que produzem pobreza e desigualdades não estão sendo atacados suficientemente e a agenda não tem metas claras para reverter esse quadro;
5) Falta real reconhecimento das mulheres rurais, povos da floresta, povos indígenas, pescadores que são grupos chaves para soluções de manejo de recursos naturais;
6) A Tecnologia está toda concentrada no comércio e no do setor privado. Precisamos pensar a tecnologia com a ideia de acesso livre e equitativo e acabar com as barreiras de proteção dos direitos de propriedade intelectual;
7) As questões de financiamento ainda estão obscuras e não existe concretamente nenhuma proposta que mostre a entrada de dinheiro novo para que se iniciem programas e projetos que visem a efetivação dos Objetivos;
8) Os países ricos acabaram vitoriosos em se livrar da responsabilidade maior na resolução dos desequilíbrios ambientais e climáticos. Ainda que se encontre o conceito de CBDR, a realidade é que as responsabilidades acabaram recaindo sobre os países em desenvolvimento e pobres na mesma trilha do que ocorreu com os malfadados Objetivos do Milênio. O que define, em última instância, é quem te poder de se impor, não importa os compromissos assumidos no âmbito multilateral. Temos uma crise de governança séria;
9) Outro aspecto fundamental é que os Orçamentos dos países não estão construídos para implementarem as ODS, ou seja, os orçamentos não são sustentáveis e nem objetivam metas de desenvolvimento sustentáveis. Também as estruturas tributárias, em grande parte dos países são injustas e priorizam o interesse do capital flexibilizando, reduzindo impostos e mantendo mecanismos de livre fuga de capital, além dos paraísos fiscais;
10) Por fim, mais uma vez, olhando na perspectiva dos direitos humanos, as ODS caem na mesma armadilha das ODMs, reduzem o marco dos direitos humanos, que deveriam ser os princípios norteadores de qualquer política pública socioambiental, pois o exercício deveria ser ao revés, quais são os direitos e como eu os realizo. O que temos hoje é o direito de poucos donos do capital em detrimento do mundo político, social e cultural e toda a sustentabilidade do Planeta.
[1] Roque , Átila e Corrêa , Sonia: Das Cúpulas as bases:cenário internacional. In Social Watch, Observatório da Cidadania nº 4 – 2000 – Ultimo acesso em 05 de agosto de 2014 – http://www.socialwatch.org/nod11315
[2] a esse respeito ler a coleção de Relatórios produzidos pelo Social Watch: página http:/www.socialwatch.org/
[3] As oito metas: redução da pobreza, atingir o ensino básico universal, igualdade entre os sexos e a autonomia das mulheres, reduzir a mortalidade infantil, melhora da saúde materna, combater o HIV/Aids a malária e outras doenças, garantir a sustentabilidade ambiental e estabelecer uma parceria mundial para o desenvolvimento. para maiores informações, acessar a página do PNUD no Brasil http://www.pnud.org.br/ODM.aspx
[4]para maiores informações acessar: http://unglobalcompact.org/Languages/portuguese/
[5] PINGEOT, LOU – Corporate Influence in POST 2015 process – Working Paper – January 2014 -Misereor, GPF e BROT fur die Welt
[6] ler o sobre o assunto em: Pingeot, Lou – Corporate influence in Post-2015 process – January – 2014.
– 2014.