Em artigo publicado em 2014, afirmamos que a “Casa Grande” havia se “renovado” nas eleições, considerando o perfil de eleitos e eleitas para a Câmara e o Senado, com menos de 10% de mulheres, menos de 4% de negros, pouquíssimos jovens e nenhum indígena. Pois bem, três anos depois, podemos afirmar que, mais que uma metáfora, uma realidade: o projeto de poder em curso desde o golpe é completamente perverso para a população negra brasileira, que ainda experimenta os piores indicadores sociais, e tende a retroceder nos pequenos avanços alcançados em tempos recentes.
Chamamos a este cenário de “projeto de poder”, porque combina diversas medidas que afetam e afetarão a população por muitos anos. Proponho agregar dois adjetivos a este projeto: ele é machista e racista. Isso porque os mais impactados são as populações negra, indígena e os povos e comunidades tradicionais, entre eles, os quilombolas.
O governo fala em “corte de gastos”, mas a redução orçamentária acontece de forma seletiva. Houve aumento de recursos para pastas que beneficiam determinadas áreas, como o agronegócio e a mineração, e redução drástica para políticas sociais. E é essa combinação que se torna tão perigosa para os negros, negras e indígenas. Vejamos alguns exemplos:
Mais recursos para mineração e menos para quem é afetado por ela
O orçamento do Ministério de Minas e Energia aumentou em 75% (R$4,04 bilhões em 2017 para R$ 7,06 bilhões em 2018), enquanto houve redução para agricultura familiar (36,3%)[i], igualdade racial (31,3%)[ii], indígenas (5,9%)[iii] e meio ambiente (12,2%)[iv], no mesmo período. Ou seja, provavelmente serão intensificados investimentos em grandes projetos energéticos, ao mesmo tempo em que são reduzidas as medidas de promoção da sustentabilidade de comunidades quilombolas e indígenas.
Vale registrar que o recurso para distribuição de cestas de alimentos para grupos tradicionais, entre os quais indígenas e quilombolas, caiu 99,4% no novo Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA); o orçamento previsto para a regularização fundiária de territórios quilombolas encolheu em 52,3% (de R$4,9 para R$2,3 milhões) e o recurso destinado ao desenvolvimento sustentável das comunidades quilombolas, povos indígenas e comunidades tradicionais chegou a zero na proposta orçamentária para 2018.
Isso significa que uma comunidade quilombola ou indígena, afetada por um projeto de mineração, não acessará recursos para produção sustentável local, nem cestas básicas, que são emergenciais, e também não terá acesso a políticas especificas de promoção e proteção de suas culturas.
Segurança alimentar ameaçada
E o problema não para no campo, afinal, “se o campo não planta, a cidade não janta”. Quando o recurso para a segurança alimentar e nutricional é reduzido em 83,8%[v], impactando negativamente a comercialização da agricultura familiar (Programa de Aquisição de Alimentos – PAA, por exemplo) e o fomento à agroecologia, impacta a alimentação da população como um todo, porém, mais especificamente os grupos sociais que tem menor poder aquisitivo para consumo de alimentos saudáveis, não processados, etc. Considerando que as pessoas negras encontram-se nos extratos de menor renda e acesso a alimentos, podemos inferir que este será o grupo mais prejudicado com a redução das políticas de agricultura familiar, no urbano.
Mulheres e jovens negros mais expostos à violência
As mulheres negras, maiores vítimas do feminicídio, são as que têm menos acesso a todos os serviços públicos e as que mais morrem vítimas do aborto inseguro no país. O recurso para as políticas públicas voltadas para a superação da violência e promoção da autonomia das mulheres teve corte de 69,7[vi]% na PLOA 2018, e para o Programa Bolsa Família, que atende majoritariamente mulheres negras e seus filhos, a redução é de 11%[vii].
O Brasil mata, por ano, 30 mil jovens, sendo 77% negros (pretos e pardos)[viii], e tem a terceira maior população carcerária do mundo, composta majoritariamente de negros e negras. Ainda assim, o recurso para investimentos em educação e saúde foram congelados, por meio da Emenda Constitucional 95, por 20 anos. A pasta de juventude foi reduzida em 28,7%, e o país não tem um plano de redução de homicídios, mas sim uma “bancada da bala” forte e atuante que pretende armar civis como forma de solução para o problema da violência.
Mobilidade social da juventude negra em risco
Ainda que a reforma trabalhista tenha impactado menos a população negra – em sua maioria pertencente ao mercado informal –, este grupo social sofrerá os efeitos em cadeia desta reforma, com aumento da precariedade nos extratos com maior formalidade, somado ao atual índice de desemprego (13%) e à reforma iminente da previdência. Outro fenômeno que poderá decorrer das reformas trabalhista e da previdência, ao lado do ajuste fiscal, é ver estudantes negros e negras formados na universidade e… sem trabalho.
Resultado de conquistas dos movimentos negros, as cotas, ao lado das políticas de permanência e fomento à pesquisa, estariam promovendo de fato a mobilidade social da juventude negra – processo que poderá ser interrompido no futuro muito próximo. Combina-se, assim, a redução no recurso para a educação, com redução de bolsas de estudo e recurso pra pesquisa; o elevado corte orçamentário na SEPPIR, onde se localiza a coordenação de ações afirmativas e a baixa execução orçamentária: até novembro de 2017, foi gasto somente 6% do recurso do Programa 2034 – Promoção da igualdade racial e superação do racismo.
Todas estas medidas estão sendo tomadas sem diálogo com a sociedade e participação social. Também denunciamos, já em 2014, que “as forças econômicas e conservadoras se deram nas urnas, com o aumento das bancadas ruralista, neopentecostal e militar (‘bancada da bala’) no Congresso Nacional, que coroou esta vitória dias depois derrubando, na Câmara, o Decreto 8243/2014, que regulamenta os mecanismos de participação social previstos na Constituição de 1988.”
Mais impostos, menos direitos
Segundo estudo do Inesc, no Brasil, as mulheres negras pagam proporcionalmente mais impostos que os outros grupos (homens e mulheres brancas, e homens negros), pois o sistema é regressivo, ou seja, paga-se muitos impostos ao consumir qualquer produto e taxa-se pouco as pessoas ricas. Na prática, ocorre que uma mulher negra que recebe o benefício de transferência de renda no valor de 85 reais ao mês (que talvez seja sua única fonte de renda), ao utilizar o recurso para comprar alimentos, estará pagando cerca de 19% de impostos, ou seja, 22 reais. Já um homem branco de classe média que recebe entre R$4.150 e R$6.225 ao mês, compromete entre R$568,55 e R$852,82 com alimentação (POF, 2009), de modo que os tributos pagos nestas despesas giram entre R$125 e R$187 reais, ou seja, 3,01% dos seus rendimentos.
É neste mesmo país que bilhões em impostos são sonegados ao ano (R$ 453,0 bilhões ou 7,7% do PIB em 2015), por empresas e “cidadãos”. Como apontou artigo do Inesc, os direitos cabem sim no orçamento; o que não cabe é a sonegação de impostos e os privilégios. Este é o país do golpe – patrimonialista, machista e racista. Onde os negros pagam mais impostos e não recebem melhorias de vida para suas famílias e comunidades. Este é o Brasil do racismo institucional.
[i] Programa 2012 – Fortalecimento e dinamização da Agricultura familiar: de 9,73 bilhões para 6,19 bilhões.
[ii] Programa 2034 – Promoção da igualdade racial e superação do racismo: de 24,2 milhões para 16,6 milhões.
[iii] Programa 2065 – Proteção e promoção dos povos indígenas: de 1,49 bilhões para 1,40 bilhões.
[iv] Ministério do Meio Ambiente: de 3,98 bilhões para 3,49 bilhões.
[v] Programa 2069 – Segurança Alimentar e Nutricional: De 736,3 milhões para 119,4 milhões.
[vi] Programa 2016 – Políticas para mulheres, promoção da igualdade e enfrentamento da violência: de 81,6 milhões para 24,8 milhões.
[vii] Programa 2019 – Inclusão social por meio do Bolsa Família, do Cadastro Único e da articulação de políticas sociais.
– De 29,78 bilhões para 26,50 bilhões.
[viii] http://www.mapadaviolencia.org.br/
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