O 1º Fórum Interconselhos realizado em Brasília (DF) em abril deste ano, poderia ser mais um importante evento como tantos outros, não fosse o momento histórico e político vivido no Brasil. O golpe de 2016 contra a presidenta Dilma Rousseff e a sociedade brasileira foi marcado pelo início de um projeto político que teve como um dos operadores centrais a redução dos espaços de participação social. Chegamos ao auge na eleição de Jair Bolsonaro e o cumprimento da promessa de extinção e desfinaciamento de todos esses espaços. Sim, os poucos Conselhos que continuaram “funcionando” nos últimos quatro anos o fizeram por serem frutos de legislações específicas, portanto com uma institucionalidade mínima que garantiram a continuidade da existência, como foi o caso do Conselho Nacional de Saúde, do Conselho Nacional de Direitos Humanos e alguns outros.
Mas como todos sabemos, sobreviver e viver, são instâncias diferentes quando estamos falando da vida. A existência dos Conselhos, que era garantida por força de Lei, não significou que as condições para o seu pleno funcionamento estavam garantidas. Ao contrário, o que vivenciamos, lutando de forma aguerrida tentando encontrar brechas no desgoverno, foi a total falta de recursos humanos, materiais e financeiros para que os espaços de participação social pudessem exercer a função que é prerrogativa: a participação popular. Muitas e muitos de nós se mantiveram nesses espaços, não por acreditarem no projeto político que estava em curso, mas para resistir a ele. Outras optaram por não estar. Numa luta – como ensinam as que vieram antes de nós – precisamos daqueles que lutam estando fora, tanto quanto daqueles que travam a luta do lado de dentro. Ninguém é dispensável na luta. Foi “escrevivendo” essa página da história fazendo da atacada solidariedade um ato político, resistimos, mesmo que não sem sequelas!
Esse preâmbulo foi necessário para transmitir um pouco do que significou esses dois dias de encontro, que contou com centenas pessoas representando diversos Conselhos de todo o Brasil, entre aqueles que estão formalmente constituídos e outros que mantiveram alguma atividade e que estão em processo de retomada. E como não temos tempo a perder, a função desse primeiro Fórum foi a largada de um processo, que precisa ser amplo, de retomada da participação social brasileira. Sim, tudo o que vivemos nos demonstrou a necessidade de consolidação de um Sistema Nacional de Participação Social, com condições estruturais e estruturantes, que garanta à sociedade brasileira mais um importante passo da nossa jovem democracia.
Somos Conselheiras e Conselheiros conscientes dos desafios a serem enfrentados diante dos fundamentalismos religioso e político que continuam atuantes, bem como dos esforços na construção de uma frente ampla necessária para enfrentar a barbárie. Diria que o nosso principal desafio é, justamente, dar um passo além, construir espaço para possibilidades de invenções de outras formas de participação, ao mesmo tempo em que reconstruímos aqueles que são historicamente importantes, mas que também precisam de novas bases e referências.
Durante a programação do Fórum, o presidente Lula empossou 68 representantes de organizações da sociedade civil, em maioria àqueles que participaram dos Grupos de Trabalho durante a transição, como foi o caso do Conselho de Participação Social instituído pelo Decreto nº 11.406, de 31 de janeiro de 2023. São mulheres, homens, pessoas negras, quilombolas, indígenas, periféricas e LGBTQIAP+, que têm como atribuição “assessorar o Presidente da República na interlocução com as organizações da sociedade civil e com a representação de movimentos sindicais e populares, bem como promover o diálogo com a Secretaria Geral da Presidência da República, de modo a ampliar a participação social na formulação, na implementação, no monitoramento e na avaliação de políticas públicas”.
Na primeira reunião realizada com as pessoas diversas que integram esse espaço, questões caras à sociedade civil progressista e movimentos populares já se anunciaram como fundamentais para as construções e debates desse momento:
- o empenho de todas e todos no combate à fome e à extrema pobreza que assolam o Brasil;
- o comprometimento na construção do Plano Plurianual (PPA) 2024/2007, como primeiro passo de um amplo projeto político de participação, de forma solidária, justa e sustentável, e que espelhe as necessidades de defesa, garantia e proteção dos segmentos sociais mais vulnerabilizados do país, como é caso das pessoas negras, quilombolas, indígenas, periféricas e LGBTQIAPN+;
- na construção da Política Nacional de Participação Social tão necessária para evitar que episódios devastadores como o dos últimos anos se repita.
Nos preocupa o fato de o Conselho ter sido criado por decreto e não por uma Lei, deixando-o em um espaço frágil, que pode facilmente ser destruído por um governo que não tenha como orientação a participação social. Nosso aprendizado dos últimos anos deve ser a bússola para os próximos passos. Precisamos ficar atentas e atentos.
Sem nenhuma ingenuidade sobre os limites e desafios advindos da articulação política da nossa atual gestão numa frente “amplíssima”, nos importa definir quais são, para nós da sociedade civil, pautas e bandeiras inegociáveis. São direitos que não aceitamos que façam parte de nenhuma mesa de negociação, pois, para grande parte de nós, significa a diferença entre viver e morrer:
- a fome de 33 milhões de pessoas;
- o genocídio da população negra com a letalidade juvenil, feminicídios, e outras violências; a liderança na lista de países que mais matam pessoas transexuais no mundo; as violências obscenas contra a população indígena;
- o racismo ambiental e seus impactos sobretudo em territórios com populações mais vulnerabilizadas, como é o caso dos grandes empreendimentos e da destruição dos modos de vida e territórios;
- os impedimentos de acesso e da vivência dos direitos sexuais e reprodutivos, entre outras.
Que Carolina Maria de Jesus, de seu Quarto de Despejo tão atual, seja presença constante em nossas reflexões ao definirmos se entramos ou não nas frentes de lutas sociais em defesa dos direitos humanos, pois como ela “escreviveu”: “a tontura da fome é pior do que a do álcool. A tontura do álcool nos impele a cantar. Mas a da fome nos faz tremer. Percebi que é horrível ter só ar dentro do estômago”.