Hipocrisia, Políticas Públicas e Direitos da Criança e do Adolescente
Márcia Acioli
Ivônio Barros
Lucídio Bicalho
Na última semana de setembro, o jornal Correio Braziliense, mais uma vez, escancarou em suas principais páginas a dura realidade da exploração sexual e do abuso contra crianças e adolescentes no centro de Brasília. A mesma realidade de drogas, abuso e exploração que se vê no centro e praias do Rio de Janeiro, no centro de São Paulo, na praia de Iracema, em Fortaleza, no Recife, em Natal, entre outras tantas.
Não é novidade. As crianças e adolescentes estão lá, em todos esses locais, desde há muito. Os passantes não os vêem. Quando muito, desviam deles, como fazem com as fezes dos cachorros ou o esgoto da rua.
São crianças-cocô. É assim que a sociedade os percebem. Como autoridades públicas e governantes não andam à pé pela cidade, nem isso olham.
O horror denunciado revela o descaso com que o Governo do Distrito Federal, o GDF, trata crianças e adolescentes desfavorecidas pela “loteria genética” na capital da república. Não é por ser capital do país que o problema se torna mais grave, mas é por ser o centro do poder que se espera políticas exemplares para o enfrentamento a qualquer forma de violência contra crianças e adolescentes. É obrigação do poder público já ter construído e consolidado políticas eficientes para o enfrentamento à intolerável dizimação da infância.
Nos centros urbanos a concentração é maior. Mas as crianças e jovens estão cheirando cola de sapateiro, tinner, fumando crack e outras drogas pesadas em vários lugares da cidade. E, esses mesmos pontos são os lugares onde são exploradas e abusadas. Os traficantes, policiais, abusadores de toda a espécie sabem disso. Jornais fotografam os carros, com o cuidado de não mostrar suas placas, para não constranger os estupradores e exploradores.
Os adultos que exploram saem invariavelmente incólumes. São pessoas comuns que as violentam, mas protegidas pelos gabinetes de luxo, ou pelo espaço privado de seus carros permanecem intactas. Já para o menino ou para a menina que se encontra nas ruas em situação de exploração e/ou de alta vulnerabilidade os olhares são dos mais intolerantes e discriminatórios, como se fizessem parte de uma outra humanidade que não a dos abastados.
Quando a notícia sai nos jornais, juízes, ministros, governadores, políticos em geral, fazem cara de espanto e prometem agir imediatamente. Eles sabiam. Eram coniventes. Sabem do horror das ruas, mas na mente deles, elas são destinadas a subpessoas ou não-pessoas. Quer sejam elas trabalhadores superexplorados, quer sejam sem-teto, meninos e meninas de rua, pessoas que não freqüentam a “sociedade”.
O GDF já teve um programa exemplar. O governo Cristovam chamou os diversos segmentos: movimentos sociais, universidade e secretarias de governo para conceberem coletivamente o programa Brasília diz não à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes. A experiência, ainda por ser aperfeiçoada, foi desarticulada por mera questão de disputas partidárias por ocasião da mudança de governo.
A série de reportagens do Correio Braziliense mostra bem o complexo elo entre as diversas formas de vulnerabilidades e de violação de direitos: trabalho infantil, situação de rua, violência doméstica, violência e exploração sexual, tráfico e dependência de drogas. São inúmeras situações que se articulam, configurando cenas de profunda degradação humana; fatos que têm sido sistematicamente denunciados pelas organizações da sociedade civil que vêm exigindo do GDF ações articuladas que dêem respostas concretas ao problema social, bem como a casos particulares que exigem atenção e proteção imediata.
O governador do Distrito Federal fez publicar no dia 26/9 no Correio Braziliense um artigo que fala da indignação que sentiu e, novamente, de algum lugar entre a hipocrisia e o populismo, diz que sua prioridade é a educação. Mentira. A prioridade deste governo, como do anterior, é o asfalto e o concreto. Movimenta mais dinheiro e reforça a lógica do sistema político e econômico. É o reino do automóvel particular, das empreiteiras, das porcentagens que alimentam caixas de campanha e fortunas pessoais que aparecem da noite para o dia.
Agora, o governo responde aos jornalistas e à parte da sociedade com um programa emergencial. Não irá resolver nada. Nem minimizar o problema. É um pouco de velhas fórmulas, todas focadas na repressão a crianças e adolescentes. Nem os traficantes se sentirão intimidados, não são a eles que o governo procura. Portanto, são respostas que além de insuficientes, trazem vícios de concepção que não ajudam a avançar nas raízes do problema.
Não é uma ação desesperada e histérica que vai dar conta de um mal que avança com o tempo e ganha contornos de violência cada vez mais sofisticados. Hoje o governo é cobrado por uma omissão acumulada ao longo dos anos.
No ano em que o Estatuto da Criança e do Adolescente completa 18 anos, é flagrante o desprezo pelo principal instrumento “garantidor de direitos” deste segmento. Isto é notório quando analisada a execução orçamentária das principais ações do GDF na área do combate à exploração sexual de crianças e adolescentes apurado até o dia 4 de agosto.
O “Programa Sentinela” efetivamente gastou (liquidou) apenas 4,58% (R$ 12,34 mil de R$ 269,98 mil disponíveis para esse programa no ano). O “Programa Social de Atendimento à criança e adolescentes vítimas de Violência e Exploração Sexual” teve 0,0% de execução.
No DF, o Índice de Gini — indicador do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE que mede as disparidades — cresceu em 2007, indo na contramão da tendência nacional. A taxa brasiliense aumentou de 0,571 em 2006 para 0,587 em 2007 — quanto mais próximo o coeficiente for de zero, menores são as disparidades. No Brasil, o Índice de Gini variou de 0,593 para 0,552. Apesar da queda de 7% no nível de concentração no período, o Brasil ainda está entre as nações mais desiguais do mundo.
Enquanto isso, novos viadutos são construídos. Obras e mais obras. E escolas continuam descuidadas. Professores que ensaiam projetos que mobilizam jovens são reprimidos ou removidos para que não possam agir em conjunto, como aconteceu recentemente em uma escola na Asa Norte. Movimentos sociais e entidades da sociedade civil que mostram um pouco de visão crítica são afastadas e impedidas de chegar perto de escolas, em seu lugar estão as organizações cooptadas pelo governo ou ligadas a esta ou aquela liderança política ou religiosa.
Não há prioridade alguma à educação. Os modelos usados são velhos. Quando muito, se reforça programas que vão treinar melhor os jovens para o mercado de trabalho. É para isso que servem, segundo as elites.
Brasília tem a maior renda per capita do país. É um dos orçamentos mais folgados nas áreas de saúde, educação e segurança pública. As cidades são próximas umas das outras. A maior parte do território pertence ao poder público. Todas as condições para que políticas públicas de respeito à dignidade humana fossem desenvolvidas e aplicadas.
Porque nada é feito então? A resposta é simples. Porque não se quer.