A transição energética tem se realizado a partir de uma lógica racista e de violação aos direitos das comunidades tradicionais, que são impactadas pelas usinas de geração de energia. Mas, acreditando na possibilidade de desenvolvimento com justiça socioambiental, o Inesc, em parceria com o CAMA – Centro de Arte e Meio Ambiente, realizou uma Roda de Conversa com as comunidades quilombolas na Península de Itapagipe, em Salvador, no último dia 26/9.
A atividade buscou acolher relatos sobre impactos e resistências aos grandes empreendimentos energéticos, mas também estimular a reflexão coletiva sobre estratégias. O objetivo da ação foi pensar estratégias de geração energética próprias, descentralizadas, de caráter social e comunitário.
Participaram da conversa 42 pessoas entre representantes de comunidades quilombolas e tradicionais de municípios do estado da Bahia, especialistas e ativistas nos temas de justiça socioambiental. Pelo Inesc, Alessandra Cardoso e Cássio Carvalho, também mediaram as discussões. A ação foi realizada no âmbito do projeto Nordeste Potência.
Segundo Alessandra, o Inesc entrou no tema de energia para atuar contra os combustíveis fósseis, mas com as diversas articulações com movimentos e redes o Instituto se viu imbricado nos impactos sociombientais produzidos pela geração centralizada de energia renovável. “Entramos na luta contra os impactos produzidos eólicas para fortalecer as ações de enfrentamento aos contratos violentos, o licenciamento ambiental que não considera os impactos sociais dos empreendimentos e ao racismo ambiental. A experiência desta conversa mostra que não tem fórmula pronta, mas inteligência coletiva para que as comunidades encontrem a melhor forma para realizar a geração de energia”, explicou a assessora do Instituto.
Cássio Carvalho avalia que o Estado brasileiro precisa criar mecanismos de fomento à geração descentralizada de energia nos territórios tradicionais. “Isso vai desde a criação de uma política pública de capacitação das comunidades até o financiamento de bancos públicos aos modelos para que possam contribuir de forma emancipadora e participativa de uma transição com justiça ambiental”, indicou.
A transição energética chega como um “prato feito”
Durante a conversa, representantes de comunidades tradicionais falaram sobre os impactos da transição energética em seus territórios. A maioria dos presentes assumiu ainda não compreender o conceito para além dos problemas que os empreendimentos levam aos territórios. Os rastros do racismo ambiental estão presentes nos relatos. “Ficamos totalmente à mercê desses empreendimentos. Falar de energia ainda é dor e tristeza”, contou Adriana, quilombola de Mulungu da Gruta, Morro/BA.
Já Francisca Fonseca, do Quilombo Candeal, em Feira de Santana/BA, ressalta que os empreendimentos energéticos estão invadindo as áreas, num modelo de desenvolvimento que não compreende a realidade das comunidades. “Vocês não imaginam como está sendo destruidor em nosso território”, revelou Francisca.
Michelle Almeida, catadora de materiais recicláveis e moradora de Itapagipe, na Cidade Baixa de Salvador, também demonstrou decepção com o que conhece como transição energética. “Quando criança, ouvia sobre energia solar e eólica na escola e achava a melhor coisa do mundo. Mas a realidade é outra. Chega para a gente como um “PF” (prato feito), poucos beneficiados e muita gente prejudicada. A comunidade precisa se envolver para que as coisas não cheguem prontas e saiam destruindo tudo”, defendeu Michelle.
Tamires Ferreira, quilombola de Lagoa Grande, de Feira de Santana/BA, denunciou ainda que as favelas e comunidades tradicionais brasileiras ainda são vistas como o “quarto de despejo da sociedade” e que a transição energética chegou para a comunidade dela como uma “sentença de morte”. Tamires acredita que os responsáveis pelo modelo de desenvolvimento vigente precisam ser cobrados pelos danos desses empreendimentos e, para isso, é fundamental que as comunidades estejam preparadas para lidar com o assunto.
Por uma transição energética com justiça socioambiental
De acordo com Júlio Holanda, biólogo e professor, as comunidades impactadas pelos empreendimentos de geração de energia compartilham entre si o valor e pertencimento ao território, a proteção das formas de vida e aos saberes tradicionais. Segundo o biólogo, o que está em disputa é a dimensão da reprodução social desses povos e o desejo de mercantilização dos territórios.
“O racismo ambiental se materializa como termo estruturante dessas práticas. O dinheiro fica para as empresas e os prejuízos para os povos e comunidades tradicionais. A lógica de implementação dessas usinas é estrangeira. Nós temos que forjar estratégias comuns para que tenhamos nossa potência”, considerou Júlio.
Rárisson Sampaio, advogado e professor da URCA (Universidade Regional do Cariri), defende ser urgente rever os contratos de exploração dos territórios, que são firmados entre as empresas e as comunidades. “A transição energética precisa ser justa, trazer retorno à comunidade. A gente vê o dano e nunca vê o benéfico. As comunidades são sacrificadas para manter o lucro. Precisamos fazer uma transição energética a partir das comunidades e para as comunidades”, sinalizou o advogado.
Sampaio considerou que empoderar as comunidades e dar autonomia para participar dos processos de negociação dos contratos tornará possível que esses grupos possam deliberar se e como querem que a exploração energética aconteça em suas áreas, tirando as usinas da centralidade das decisões “para que se alcance uma transição energética justa”, reafirmou.
Minha história conto eu
As possibilidades de uma transição energética que considere a realidade das comunidades, com seus integrantes atuando em todo o processo, foram apresentadas por Dinei Medina, da RevoluSolar, uma associação que nasceu no Morro da Babilônia no Rio de Janeiro, que realiza instalações de energia solar nas favelas cariocas, por meio da geração compartilhada. “Na minha experiência, vejo a energia solar como um caminho para reduzir a violência nos territórios periféricos”, defendeu o líder comunitário.
Jose de Anchieta, do Comitê de Energia Renovável do Semiárido e da Cooperativa Geração de Energia e Compartilhamento de Energia, de Patos/PB, também relatou a experiência com geração energética. “Esse modelo envolve as pessoas no processo e as empodera. A energia gerada de forma descentralizada e compartilhada fica no território, diferente do modelo de mega projetos de energia solar ou eólica, que vão para outras regiões e deixam a ilusão de que o desenvolvimento chegou”, declarou.
João do Cumbe, liderança do Quilombo do Cumbe em Aracati/CE, contou a experiência de embate intenso contra os impactos provocados pela instalação do parque eólico em território ancestral da comunidade. “A comunidade se articulou para denunciar esses empreendimentos, que chegaram aos territórios com a falácia do desenvolvimento, mas que causaram grande destruição. Queremos modelos que respeitem nossos modos de vida e fortaleçam nossas lutas”, pontuou João.