Tem sido uma tarefa hercúlea acompanhar toda a pauta do Congresso Nacional de retrocessos socioambientais que impactarão o meio ambiente e a vida das pessoas. A lista é longa e não é coincidência estar sendo empurrada conjuntamente pelo governo e bancada ruralista, praticamente ao mesmo tempo. Cabe aqui a metáfora do “correntão”; a ordem é “limpar o terreno” para produção, circulação e exportação de commodities, como se lá não tivesse nada e ninguém que importasse, como se isso não tivesse consequências para o planeta, e como se esse fosse um caminho seguro para tirar o país da crise.
Isso acontece, não por acaso, junto com mudanças nas leis trabalhistas e previdenciária que trarão impactos para essa e as futuras gerações, aprofundando ainda mais o fosso entre uma minoria que têm uma vida de trabalho estável, menos degradante e melhor remunerado, da grande maioria dos demais brasileiros e brasileiras.
Nesse cenário é difícil dizer que Projeto de Lei ou Medida Provisória requer mais nossa atenção e resistência; está tudo está junto e articulado. Por isso, é importante nos posicionarmos em bloco contra todos os retrocessos e também reagir a cada um deles.
Uma das medidas legislativas que está em curso acelerado é a criação de uma Lei Geral do Licenciamento. Sob o pretexto de destravar investimentos a intenção é retirar critérios e parâmetros para orientar a ação dos órgãos estaduais de meio ambiente e reduzir brutalmente o mandato e a capacidade do poder público para avaliar, mitigar e compensar os impactos ambientais que são sempre inerentes aos empreendimentos.
Buscando contribuir para a compreensão do que se trata e dos riscos envolvidos na proposta em discussão no CN, vamos destacar aqui três dos muitos pontos perigosos no relatório apresentado pelo Deputado Mauro Pereira (PMDB/RS) ao PL 3729 de 2004.
1 – Mudança pretendida: liberar uma extensa lista de empreendimentos da obrigação de fazer o licenciamento ambiental.
Interesses em jogo: A lista de dispensa de licenciamento foi iniciada pela Frente Parlamentar Agropecuária (FPA) com todas as atividades agro-silvo-pastoris a partir de uma negociação entre o governo Temer e a bancada ruralista. Depois, outros grupos de interesse adicionaram na lista mais uma série de atividades, inclusive pavimentação de rodovias.
Potenciais consequências: O resultado final é a dispensa de licenciamento de várias atividades que isoladamente ou cumulativamente poderão trazer impactos que sequer serão avaliados pelos órgãos ambientais. Mas os impactos estarão lá, serão sentidos pelo meio ambiente e pela população e recairão de alguma forma sobre o poder público que será pressionado a dar respostas e buscar soluções para os problemas gerados pelos empreendimentos. A título de exemplo, o monocultivo de eucalipto que é cientificamente conhecido como um forte gerador de desequilíbrio hídrico (cada árvore absorve cerca de 30 litros de água potável ao dia) pode ser implantado – e não só um projeto, mas vários – em uma região com problemas de seca e estresse hídrico inviabilizando não só outras atividades como a produção de alimentos, mas também o abastecimento de água nas cidades próximas. Isso, sem que sequer esse risco tenha sido avaliado.
2 – Mudança pretendida: simplificar e terceirizar o licenciamento de obras com significativo impacto socioambiental.
Interesses em jogo: Já tem um bom tempo que o governo juntamente com setores empresariais e financeiros interessados em grandes obras de infraestrutura, energia e mineração querem acelerar o licenciamento e reduzir seu custo. Vale lembrar que uma das medidas do chamado Programa Parceria de Investimentos (PPI) hoje Lei Nº 13.334 de 2016 é exatamente agilizar as licenças ambientais dos empreendimentos considerados como “prioridade nacional” pelo governo – para variar, infraestrutura, energia, mineração. O Projeto de Lei agora em discussão tem como pretensão garantir juridicamente esse licenciamento “a jato” e reduzir seus custos.
Potenciais consequências: É importante lembrar que o licenciamento hoje não tem o caráter de veto aos projetos, desde que respeitem as leis estabelecidas. Se o prazo e o custo para licenciar uma obra que causa um significativo impacto ambiental forem “longos” isso acontece porque é complexo avaliar com um mínimo de rigor tais impactos; para isso servem os Estudos de Impacto Ambiental – EIA que precisam ser muito bem feitos, ao contrário da proposta em curso que tenta simplificá-los. E, depois de analisados os impactos, se cabe ao empreendedor gastar tempo, recursos financeiros e energia institucional para cumprir medidas que façam com que os mesmos sejam mitigados ou compensados, é porque o meio ambienta e as populações afetadas por esses projetos são sensíveis e exigem esse tempo e cuidado. Isso precisa ser internalizado no tempo e no custo da obra, não tem outro jeito. Fazer diferente significará não fará com que os problemas desapareçam e significará ainda mais prejuízos para o meio ambiente e para as pessoas, em especial para a população que vive na área de influência desses projetos.
O governo tem sua parcela de culpa por esse impasse entre investimentos e direitos. Primeiro, porque não tem um projeto de país onde investimentos que destroem o meio ambiente e violam direitos não sejam a regra e a âncora do crescimento. Além disso, as experiências recentes com as hidrelétricas e os projetos de mineração e de infraestrutura mostram o quanto o governo falha ao não planejar o enfrentamento às enormes consequências que estes investimentos provocam em seu entorno. Falha ao não envolver com antecedência e de forma precautória os territórios afetados na identificação e superação dos impactos. Falha ao não se estruturar institucionalmente para responder às demandas e pressões que advêm destes investimentos.
Enfim, como governo e investidores não conseguem resolver os problemas que as grandes obras geram, querem agora simplificar o licenciamento para fazer de conta que os problemas não existem.
Para piorar, querem reduzir seus custos não por meio de um melhor planejamento e gerenciamento de impactos. Querem fazer isso simplificando Estudos de Impacto para que os danos não apareçam e ainda querem desresponsabilizar o empreendedor por meio da terceirização do cumprimento das condicionantes e dos chamados Planos Básicos Ambientais (PBA).
Para simplificar o entendimento, vamos por partes. Hoje, o empreendedor é obrigado a cumprir uma série de medidas e programas para monitorar os impactos, mitigá-los e, quando não dá para evitar o dano, compensá-los. Para isso, ele acaba contratando uma série de empresas, ONGs, consultorias etc, para realizar esse trabalho que é muito complexo e diverso e que envolve, por exemplo, ações de monitoramento do fluxo de migrantes que lotam as cidades e região onde o empreendimento é instalado, obras como saneamento para os novos assentamentos criados para receber a população expulsa das suas moradias e comunidades, monitoramento de ictiofauna, etc. etc. etc…
Isso demanda, obviamente, tempo e dinheiro, mas demanda também um compromisso e envolvimento direto do empreendedor que é cobrado pelo licenciador dos prazos e do rigor no cumprimento dessas ações. Na proposta em discussão, para tentar se livrar desse compromisso, o empreendedor quer terceirizar esse trabalho e se responsabilizar apenas subsidiariamente por tudo que tem que fazer. Veja o “Art. 40 A responsabilidade sobre a execução total ou parcial das medidas compensatórias e mitigadoras pode ser transferida pelo empreendedor”.
Para piorar, a proposta apresenta a possibilidade (e, claro, a pressão!) do empreendedor simplesmente transferir o dinheiro e a responsabilidade pela execução de ações ligadas aos povos indígenas, quilombolas e preservação do patrimônio histórico e cultural, para os órgãos públicos responsáveis. Nesse caso, o empreendedor ficaria “isento de qualquer responsabilidade subsidiária ou solidária decorrente da inexecução das medidas compensatórias cujos recursos foram repassados”. Ocorre que estes órgãos (Funai, Fundação Cultural Palmares, IPHAN, Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) já estão em petição de miséria; depauperados de pessoal e orçamento público. Não será uma transferência de recursos o caminho para que eles façam aquilo que cabe ao empreendedor fazer.
Pior, ainda, a proposta em discussão não só quer transferir a responsabilidade pelos danos como quer, também, tirar o poder desses órgãos se manifestarem objetivamente sobre eles. Na proposta em discussão, estes órgãos além de terem um tempo muito mais exíguo para se manifestarem (seja para orientar a elaboração dos EIA, seja para acompanhar as medidas de mitigação e compensação), ainda não terão poder nenhum de alterar o “rumo das coisas”. Isto porque, conforme a proposta, as manifestações destes órgãos “não vinculam a decisão do órgão licenciador, que deverá motivar as manifestações que forem rejeitadas ou acolhidas”.
Se isso for levado adiante, nós teremos cada vez mais danos irreversíveis sobre o meio ambiente, um acúmulo ainda maior de impactos e conflitos nos territórios e regiões impactadas por grandes obras e uma pressão ainda mais elevada sobre o poder público para resolver os problemas em escala provocados por investimentos irresponsáveis.
3 – Mudança pretendida: Isentar o agente financeiro de responsabilidade pelos danos causados pelo empreendimento.
Interesses em jogo: Evidentemente, se um projeto dessa natureza for aprovado no Congresso, os impactos e danos provocados ao meio ambiente e às pessoas se multiplicarão e serão ainda mais judicializados. Por isso, não é a toa que o sistema financeiro organizado por meio da Federação Brasileira de Bancos (Febraban) fez um forte lobby para que fosse incluído o artigo 43 no projeto em discussão, o qual diz que “as entidades governamentais de fomento e as instituições financeiras autorizadas a funcionar pelo Banco Central somente responderão por dano ambiental se comprovado dolo ou culpa e relação de casualidade entre sua conduta e o dano causado, sendo responsáveis, subsidiariamente, por reparar o dano para o qual tenham contribuído, no limite da sua contribuição para o referido dano”. Com esse artigo o sistema financeiro busca se isentar da responsabilidade solidária pelos danos causados pelos empreendimentos que financiam.
Potenciais consequências: A responsabilidade dos bancos pelos danos ambientais causados pelos empreendimentos que financiam têm assustado o sistema financeiro. Em especial a possibilidade de esta conta chegar ao sistema financeiro tem assombrado o BNDES que é um banco público, cujo financiamento viabilizou a totalidade dos grandes projetos que acumulam elevados impactos ambientais: do rompimento da barragem da Samarco-Vale-BHP em Mariana, passando por Belo Monte, pela duplicação da estrada de ferro Carajás e seguindo… a lista também é longa.
Essa responsabilização é fundamental para que os danos sejam mitigados e compensados. Sem financiamento essas obras não saem do papel e o financiador deve ter o papel e o compromisso de também realizar esforços: i) para que os danos sejam avaliados, como parte do risco do crédito; ii) para que as ações exigidas pelo licenciador sejam cumpridas, isto pode ser feito vinculando a continuação do financiamento ao cumprimento de ações e prazos estipulados pelo licenciador, afinal sem dinheiro a obra não anda; iii) para que sejam realizadas ações adicionais sob a responsabilidade dos Bancos no sentido de contribuir para evitar danos e riscos, por exemplo por meio das avaliações socioambientais independentes. Enfim, muitos passos já haviam sido dados nessa direção, do Princípios do Equador até a Resolução do Banco Central (Resolução BACEN Nº 4.327 de 2014) que estabelece a obrigação dos bancos construírem e implementarem suas “Políticas de Responsabilidade Socioambiental”. Tirar a responsabilidade do financiador significará na prática que eles poderão “lavar suas mãos” e, claro, assim o farão.
Não cabe aqui detalhar todos os absurdos que estão na proposta agora em discussão no Congresso Nacional. Esperamos apenas ter contribuído para alertar sobre os riscos do Projeto em discussão e para a necessidade de resistirmos a ele. Para isso, se informe, se mobilize e vamos juntos resistir.
Informe-se, #resista:
Assista ao vídeo da audiência pública realizada na Comissão de Meio Ambiente da Câmara dos Deputados com as falas do Ibama, Ministério Público, Associação Brasileira dos Membros do Ministério Público Ambiental (Abrampa) sobre os perigos desse Projeto de Lei:
Vamos falar sobre Questões Socioambientais?
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