Publicado pela Folha de São Paulo
No final da comédia “Um Peixe Chamado Wanda”, os letreiros descrevem o futuro dos personagens, e o direitista maluco e homicida interpretado por Kevin Kline termina como “ministro da Justiça da África do Sul”. Ri com o resto da audiência daquele cinema londrino, onde assisti ao filme pouco depois do lançamento, em 1988. Com Nelson Mandela na cadeia, dezenas de milhares de pessoas detidas sem processo judicial e o apartheid no auge de sua fúria, usar a palavra “justiça” para descrever o cargo não poderia ser mais absurdo e contraditório.
O que nenhum dos presentes ao cinema, ou aliás praticamente qualquer outra pessoa, poderia ter imaginado era que Mandela estivesse, naquele exato momento, conduzindo um diálogo perfeitamente cordial com Kobie Coetsee, então ministro da Justiça sul-africano. Coetsee, que comandava também o departamento carcerário, vinha realizando reuniões secretas com o mais famoso prisioneiro político do planeta desde 1985, a fim de explorar a possibilidade de uma transição negociada rumo ao governo democrático. Os dois continuaram a dialogar até que Mandela fosse libertado da prisão, depois de 27,5 anos encarcerado, em fevereiro de 1990.
Oito anos mais tarde, entrevistei Coetsee para um documentário de TV que eu estava produzindo sobre Mandela, que estava chegando ao fim de seu mandato de cinco anos como presidente da África do Sul. O que descobri foi que, para Coetsee, a reunião inicial com Mandela, em 1985, foi um caso de amor à primeira vista. Mandela, sob guarda e convalescendo de uma cirurgia na próstata, vestia um camisolão por cima do pijama. Coetsee, para todos os efeitos seu carcereiro, usava terno e gravata. Mas o ministro percebeu de imediato que não estava no mesmo plano que Mandela. “Ele era carismático por natureza –percebi assim que o vi”, Coetsee contou. “Era um líder nato”. Durante os 90 minutos de minha entrevista com Coetsee, ele chorou pelo menos seis vezes. “Para mim, Mandela personifica as grandes virtudes romanas”, disse o ex-ministro. “Honestas, gravitas, dignitas”.
Para aquele documentário, e o livro sobre Mandela que escrevi subsequentemente, entrevistei muitos de seus velhos inimigos políticos, homens brancos que haviam comandado ou apoiado o apartheid e aplaudido seu longo encarceramento. Sem exceção, todos haviam passado a reverenciar o antigo inimigo; como aconteceu com Coetsee ao falar comigo sobre Mandela, muitos derramaram lágrimas ao recordar sua nobreza.
Bastava conhecê-lo em pessoa para sucumbir ao seu charme. Mandela dispunha de um coquetel irresistivelmente sedutor que combinava sua inata majestade a um humor autoirônico, um conjunto de valores inflexíveis, visão astuta, inteligência política e monumental integridade. Tanto amigos quanto inimigos cediam diante de sua vontade. Pouco admira que políticos do mundo todo estejam formando fila para tecer elogios a Mandela: ele era o melhor do ramo. Uma das pessoas que veio a reconhecer seu talento, embora inicialmente não estivesse muito certo disso, foi Tony Leon, um líder branco da oposição política nos cinco anos de governo de Mandela.
Leon, um advogado de humor ferino que dirigia o Partido Democrata (no Reino Unido, ele seria conservador), costumava duelar com Mandela em debates parlamentares. Um dia, Mandela perdeu a paciência. “Estou ficando cansado dessas festinhas do Mickey políticas”. Leon retrucou: “Sim, e nós estamos cansados de uma política econômica dirigida pelo Pateta”. Dias mais tarde, Leon, 36 anos mais jovem que Mandela, sofreu um ataque cardíaco e teve de ser levado urgentemente ao hospital para uma cirurgia de ponte de safena. Ele estava se recuperando da operação quando ouviu uma voz, do outro lado das cortinas que protegiam seu leito. “Ei, Mickey Mouse”, disse a voz que ele reconheceu imediatamente como a de Mandela. “Pateta está aqui”.
Desde então, Leon, que recuperou a saúde e hoje é embaixador da África do Sul na Argentina, acrescentou seu nome à longa lista de admiradores irrestritos de Mandela. Meu nome também consta dela, aliás. Tendo observado seu trabalho de perto como correspondente do jornal “Independent” na África do Sul entre 1990, o ano de sua libertação, e 1995, o primeiro ano de sua presidência, e tendo realizado meia dúzia de entrevistas pessoais com ele e conversado com Mandela em diversas outras ocasiões políticas e sociais, terminei tão impressionado quanto todos os demais jornalistas que tiveram o privilégio de conviver com ele. Mandela eliminou o ceticismo que costuma ser endêmico em nossa profissão.
Em dado nível, isso se deve ao seu imenso gênio político, por conta das duas missões impossíveis que conseguiu realizar: a primeira, convencer seu povo a renunciar à vingança, depois de séculos de humilhação racial; a segunda, persuadir os compatriotas brancos a entregar o poder pacificamente, evitando a muito alardeada guerra civil.
Mas em nível mais simples, se bem que igualmente profundo, o que aprendi com Mandela foi a lição de como uma pessoa decente deve se comportar. É muito incomum conhecer alguém cujo comportamento se equipara aos valores que a pessoa diz defender; e mais incomum ainda encontrar uma pessoa desse tipo no mundo hipócrita da política. Mandela defendia o respeito, igualdade e generosidade de espírito. Colocava esses valores em prática em cada detalhezinho de sua vida, mesmo distante das câmeras, onde não havia vantagens políticas a obter. Era tão cortês e respeitoso com o jardineiro, o garçom e o comissário de bordo quanto o era com o presidente dos Estados Unidos e a rainha da Inglaterra –que aliás o adora. Tenho uma centena de histórias que serviriam para ilustrar o ponto. Eis uma delas:
Mandela estava em Xangai, hospedado na suíte presidencial de um hotel de luxo. Ao se levantar de manhã, ele arrumou a cama, como fazia onde quer que dormisse –incluindo o Palácio de Buckingham e a Casa Branca. A camareira que respondia pelo seu quarto ficou preocupada, como se já não soubesse seu lugar no mundo. Mandela, que estava participando de uma ciranda de reuniões com membros do governo chinês, foi informado da preocupação da camareira e a chamou ao seu quarto. Por meio de um intérprete, ele pediu desculpas, explicando que arrumar a cama era um reflexo tão natural e inevitável para ele quanto escovar os dentes a cada manhã. Mandela explicou que havia passado muito tempo na prisão, e que arrumar a cama era um hábito que não conseguia abandonar.
Ouvi essa história muitos anos depois de acontecida. Teria sido divertido descobrir qual foi a reação da camareira chinesa. Meu palpite é que ela deve ter ficado tão encantada e tão duradouramente impressionada quanto Kobie Coetsee, a rainha da Inglaterra e todos nós.
JOHN CARLIN, jornalista inglês, é colunista do “El País” e colaborou com o caderno “Esporte” da Folha. É autor de “Conquistando o Inimigo”, livro que inspirou o filme “Invictus”, sobre Mandela.
Tradução de PAULO MIGLIACCI