Após anunciar que rebaixaria a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) a uma mera pasta dentro da Secretaria de Atenção Básica e tentar impor a municipalização e estadualização do atendimento em todo o país, o ministro da Saúde Luiz Mandetta foi obrigado a voltar atrás em função dos protestos do movimento indígena pelo Brasil.
Mandetta, que inicialmente se recusava a abrir diálogo com os povos indígenas, recebeu uma comitiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) nesta quinta (28) em Brasília e recuou na intenção de acabar com o modelo de atendimento que demorou gerações para ser debatido, estruturado e aprovado na forma da Sesai e que não completou sequer uma década de existência, já que a secretaria passou a existir oficialmente no fim de 2010.
“Precisamos permanecer mobilizados e nossos povos alertas. Essa luta precisa continuar. Vamos mobilizar nossas bases para fazer o enfrentamento que precisa ser feito”, disse Sônia Guajajara, da coordenação da Apib.
Um grupo de trabalho foi criado para discutir o modelo atual e as mudanças que o ministro insiste em colocar na mesa. A municipalização seria a confirmação oficial do abandono total do governo federal na especialização da saúde, o que é inconstitucional.
O Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde afirma que ainda não comenta o possível impacto das propostas porque o GT não foi formado oficialmente. “O Conasems desconhece as propostas, já que nenhum grupo de trabalho foi efetivamente formado ou documento apresentado. Não podemos responder sobre a viabilidade da mudança até que a proposta seja apresentada”, disse a entidade.
A mobilização em defesa da Sesai antecipou o Abril Indígena, mês em que ocorrerá o Acampamento Terra Livre em Brasília, de 24 a 26 de abril, em que a saúde será uma das pautas principais. Já foram realizadas passeatas, atos, ocupações e bloqueios de rodovias em Brasília, Belo Horizonte, São Paulo, Rio de Janeiro, Boa Vista, Paraná, Rio Branco, Manaus, Governador Valadares (MG) e Santarém (PA), entre outras localidades.
Reforçando as mobilizações contra a municipalização da saúde indígena, o Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), em parceria com a Apib, lançou a cartilha “Orçamento e direito à saúde indígena”. Pautado na educação popular, o material retoma a história de luta que conquistou a política de atenção à saúde indígena e aposta no fortalecimento do controle social para o aprimoramento da política.
Falta de pagamento deixa indígenas sem atendimento
Inicialmente, para pressionar a mudança à força, Mandetta deixou de repassar o financiamento mensal para as conveniadas desde janeiro. A maioria dos 13 mil funcionários dos 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs) está sem receber e a situação é de caos em muitas regiões. Em nota, o ministério disse que iria regularizar os repasses “em breve”. Essas promessas, no entanto, têm sido sistematicamente descumpridas.
“O atendimento está completamente comprometido. Nossos direitos constitucionais estão sendo desrespeitados”, cobra Romacil Cretã, coordenador da Articulação dos Povos Indígenas da Região Sul.
Em São Paulo, a Casa de Apoio aos Povos Indígenas (Casai) está fechada. Em Brasília, a falta de repasse faz com que muitos indígenas que tem nessas casas abrigo em uma cidade estratégica para aguardar atendimento médico, fiquem com a saúde em risco. É o caso de crianças com câncer, pacientes com doenças crônicas e indígenas que precisam de atendimento especial. Fontes da Sesai ouvidas pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi) disseram que isso “pode causar mortes a cada quatro horas”.
Procurada pela reportagem, a prefeitura de São Paulo, o quarto município com mais indígenas no país e que enfrenta grande crise na saúde, afirmou que o prefeito Bruno Covas irá receber seis lideranças da população indígena na próxima semana.
O encontro foi acordado nesta quarta-feira (27), quando representantes se reuniram com integrantes das secretarias da Casa Civil e de Relações Sociais. Já a Confederação Nacional de Municípios (CNM), procurada pela reportagem, afirmou que não haveria tempo hábil para se posicionar.
MPF também é contra a municipalização
Para Antônio Bigonha, subprocurador-geral da República e coordenador da Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais do MPF (6CCR), a Sesai presta um serviço de grande impacto para as comunidades indígenas brasileiras e o caminho definitivamente não é o da municipalização. Para o MPF, é possível discutir a mudança do modelo que hoje está na parceria com as instituições terceirizadas, o que é constitucionalmente problemático e pode ser revisto em conjunto com os povos indígenas.
“Mas partir para a municipalização nós consideramos que é um remédio que mata o paciente. Seria uma solução drástica que pode comprometer esse serviço que já demonstrou que tem que ser especializado. Inúmeros problemas decorreriam disso”, afirma Bigonha, em entrevista para o Inesc.
Diante de tudo isso, o MPF também tenta intermediar o diálogo institucional e tem reunião marcada em 22 de abril com o ministro da Saúde, a PGR, organizações indigenistas e representantes dos povos indígenas.
Saneamento básico nas Terras Indígenas também é afetado
Uma das competências da Sesai é realizar ações de saneamento e edificações de saúde indígena. Por ser um dos principais causadores de problemas na atenção básica, o saneamento é fundamental para melhorar o bem estar dos povos indígenas.
No entanto, este é um ponto que sempre andou bem devagar entre as atribuições da Sesai. Romacil Cretã, da Apib, afirma que esse ano seria justamente o de início da mudança nessa realidade. Segundo ele, foi comprado material para diversas terras indígenas Brasil afora para começar a construir a estrutura. No DSEI Interior Sul, há mais de R$ 1 milhão em material aguardando para ser usado.
As mudanças do Ministério da Saúde, no entanto, comprometem toda a programação. “Esperamos há mais de 6 anos a liberação desse recurso e hoje tá tudo guardado em barracões ou no DSEI mesmo. Isso era muito aguardado pela comunidade e agora já está atrasado. É um direito mínimo do ser humano ter uma rede de esgoto e água tratada em casa”, cobra Cretã.
Para a liderança da Apib, não é possível cair no jogo de que municipalizar será melhor já que até hoje os municípios nada fizeram para resolver esse problema. “Seria um tiro no pé. Não vai mudar agora. Esse ministro, da bancada ruralista, foi relator da PEC 215. O que ele pretende é acabar com a gente. Não conseguiu fazer isso no Mato Grosso do Sul e agora está tentando a nível nacional”, afirma.