Um levantamento inédito do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) expõe a face mais desigual do sistema tarifário brasileiro: o peso desproporcional das bandeiras tarifárias de energia elétrica sobre famílias negras e de baixa renda, especialmente as chefiadas por mulheres. A pesquisa “Energia e interseccionalidade:o impacto das tarifas de energia elétrica no orçamento das famílias brasileiras” mostra que, em cenários de maior encarecimento da conta de luz, esses domicílios podem gastar o dobro — em termos proporcionais à renda — do que famílias brancas de maior poder aquisitivo.
O dado mais emblemático é a comparação entre uma mulher negra de renda média e um homem branco de renda alta. Enquanto a primeira tem seu gasto mensal com energia acrescido em 9,41% sob bandeira vermelha patamar II, chegando a representar 13,09% de sua renda mensal, o segundo sofre aumento de apenas 6,24%, o que equivale a 7,03% da renda. A desigualdade é tão profunda que, embora a conta do homem branco seja maior em termos absolutos, ela pesa muito menos no orçamento.
“O estudo comprova que as bandeiras tarifárias penalizam quem já vive no limite. Mulheres negras, sobretudo de baixa e média renda, têm menor elasticidade de consumo: não conseguem reduzir o uso de energia porque já consomem apenas o essencial. Isso é o que chamamos de injustiça energética”, afirma Cristiane Ribeiro, do Colegiado de Gestão do Inesc.
Dados revelam desigualdade
A análise do Inesc cruzou dados de renda, gênero e raça a partir da Pesquisa de Orçamentos Familiares, do IBGE e revelou distorções históricas. Famílias chefiadas por homens brancos de renda alta consomem, em média, 262,72 kWh/mês, 2,5 vezes mais que famílias chefiadas por homens negros de baixa renda (102,84 kWh/mês). Por sua vez, famílias chefiadas por mulheres negras de baixa renda exibem o menor rendimento per capita (R$ 309,08) e comprometem, em média, 11,57% da renda total com energia elétrica; já os homens brancos de alta renda, com renda per capita de R$ 6.772, destinam apenas 1,46% da renda à conta de luz.
Em números absolutos, o contraste também impressiona: famílias de mulheres negras de renda média arcaram juntas, em 2024, com R$ 230,8 milhões em custos adicionais provocados pelas bandeiras tarifárias. Entre os homens brancos de renda alta, esse gasto agregado foi menos da metade: R$ 106,7 milhões.
O estudo estimou que, mesmo diante do aumento na tarifa de eletricidade, famílias de renda média chefiadas por mulheres negras praticamente não conseguem reduzir o consumo, pois já operam no limite do uso essencial. Em contraste, homens brancos de renda alta dispõem de maior margem para ajustar o consumo sem comprometer o bem-estar. “O modelo atual de bandeiras tarifárias parte do pressuposto de que todos os consumidores podem economizar quando a conta aumenta. Mas essa hipótese ignora a realidade de milhões de famílias que já vivem no mínimo vital. Para elas, reduzir o consumo significa abrir mão de comida refrigerada, de banho quente ou de ventilador em dias de calor extremo”, explica Cássio Cardoso Carvalho, assessor político do Inesc.
Assimetria no setor elétrico
A pesquisa também evidencia uma assimetria estrutural no setor elétrico brasileiro: as bandeiras tarifárias incidem apenas sobre os consumidores do Ambiente de Contratação Regulado (ACR), enquanto os do Ambiente de Contratação Livre (ACL) permanecem isentos dessa cobrança. “É um modelo perverso, que vem se agravando em um contexto de migração crescente do mercado regulado para o livre. As bandeiras tarifárias têm sido aplicadas com maior frequência — resultado do próprio planejamento do sistema e da recorrente escassez hídrica —, e o custo acaba sendo repartido entre um grupo cada vez menor de consumidores, enquanto os do ACL seguem isentos’, critica Carvalho.
As comparações revelam desigualdades persistentes: uma mulher negra de renda média, com renda per capita de R$ 1.240 e consumo médio de 140 kWh/mês, pode ver o gasto com energia atingir 13% da renda sob bandeira vermelha patamar II; um homem branco de renda alta, com renda per capita de R$ 6.772 e consumo de 262 kWh/mês, dificilmente ultrapassa 7%. Entre as famílias de baixa renda, uma mulher negra consome, em média, 106,81 kWh/mês e compromete 16% dos gastos com habitação e 11,57% da renda total com energia; um homem branco de baixa renda consome 123,86 kWh/mês e compromete 15,03% da habitação e 9,96% da renda.
O peso das bandeiras
O estudo relembra que o mecanismo das bandeiras tarifárias — criado em 2015 — transfere aos consumidores regulados os custos da geração e do acionamento de termelétricas movidas a combustíveis fósseis, o que se intensifica em períodos de seca e calor extremos. As tarifas adicionais correspondem a R$ 0,01885/kWh na bandeira amarela, R$ 0,04463/kWh na vermelha patamar I e R$ 0,07877/kWh na vermelha patamar II. Em 2024, o arranjo mensal combinou oito meses de bandeira verde, dois de amarela e um mês em cada patamar de vermelha, resultando em forte assimetria de impacto entre os diferentes grupos sociais.
As simulações do Inesc indicam que, quando a bandeira passa de verde para amarela, o aumento percentual no gasto mensal é maior para mulheres negras de renda alta (2,36%) do que para homens brancos da mesma faixa (1,59%); e, no cenário mais severo — vermelha patamar II —, o gasto mensal cresce 9,74% para mulheres negras de renda alta, contra 6,24% entre homens brancos de renda alta. Considerando a renda, os acréscimos relativos também penalizam mais mulheres negras e homens negros de renda média do que os brancos de renda alta, em todos os cenários.
Do ponto de vista de política pública, o Inesc sustenta que a justiça energética precisa orientar a transição. Em síntese, defende a extensão das bandeiras tarifárias ao mercado livre para garantir isonomia; Maior transparência na cobrança das Bandeiras Tarifárias, de modo a possibilitar a análise do perfil dos consumidores — com dados desagregados por gênero, raça e renda — que estão suportando os custos da resiliência do sistema elétrico brasileiro diante das mudanças climáticas e o enquadramento automático e imediato na Tarifa Social de Energia Elétrica para famílias inseridas no CadÚnico.
O objetivo é baratear a tarifa ao longo do tempo e, sobretudo, interromper a transferência regressiva de renda do ACR para grupos privilegiados do ACL, que hoje não participam do rateio das bandeiras mesmo concentrando parcela expressiva do consumo nacional. “O combate à pobreza energética deve ser parte da agenda climática. Não é possível pensar em transição energética justa quando mulheres negras seguem pagando proporcionalmente mais caro pela luz do que homens brancos ricos. É racismo ambiental traduzido em números”, conclui Ribeiro.