O retorno da Reforma Política

03/03/2011, às 12:05 | Tempo estimado de leitura: 15 min
Por José Antônio Moroni, Colegiado de Gestão do Inesc e Ana Claudia Teixera

José Antonio Moroni e Ana Claudia Teixeira*

Em 2010, tivemos eleições presidenciais para governador/a, deputados/as e senadores/as, e não se teve uma renovação significativa do espectro político do Congresso Nacional e dos executivos. A maior novidade foi a eleição de uma mulher para a presidência. O índice de renovação no Congresso Nacional ficou em torno de 50%, igual em eleições anteriores. É que, com exceção de algumas poucas modificações na legislação, nenhuma Reforma Política significativa ocorreu nos últimos quatro anos, que pudesse favorecer mudanças no perfil dos/as políticos/as brasileiros/as e nas formas de se pensar e fazer política.

Como, pela atual legislação, qualquer modificação nas regras eleitorais passa necessariamente pelo Congresso Nacional é bom que se tenha em conta o que pensam os atuais parlamentares sobre ela. Pesquisa publicada pelo Inesc, recentemente, aponta os principais motivos pelos quais esta reforma não emplaca. Para a grande maioria dos parlamentares, “não se deve mudar o sistema político”, “não se pode pensar em mecanismos que possibilitem a representação de segmentos nunca representados ou sub-representados” (por exemplo, população indígena, população negra, mulheres, homo-afetivos e favelados), “a democracia direta é inviável”. O que parece os unir é somente o conservadorismo. Neste contexto, como pensar uma reforma política que enfrente a questão das formas de se exercer o poder e seus mecanismos de controle? Afinal, quem no Brasil tem o poder de exercer o poder?

A Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político tem defendido arduamente que uma mudança no sistema político seria uma das melhores maneiras de enfrentar vários males da nossa democracia, como o patriarcado, o patrimonialismo, a oligarquia, o nepotismo, o clientelismo, o personalismo e a corrupção. Este conjunto de valores e práticas que perpassam instituições políticas/públicas e a sociedade são as bases para a corrupção.

A referida plataforma, construída desde 2004 por um conjunto de movimentos sociais e organizações da sociedade civil brasileira é estruturada em cinco grandes eixos: fortalecimento da democracia direta; fortalecimento da democracia representativa; aperfeiçoamento da democracia representativa; democratização da informação e da comunicação e a transparência e democratização do judiciário. A plataforma entende que este conjunto de eixos, com suas propostas, articulados, é capaz de contribuir para uma nova cultura política nas instituições políticas/públicas e na própria sociedade. Esta nova cultura política deverá ter como base os princípios da igualdade, diversidade, justiça, liberdade, participação, transparência e controle social. Vale ressaltar ainda que uma base importante para esta nova cultura política é a construção de um Estado realmente público, democrático e laico.

Para chegarmos a isso, precisamos enfrentar, com radicalidade, a questão da corrupção. Quando falamos em corrupção, estamos falando de uma forma de fazer política baseada no uso do poder político para a manutenção de interesses privados e particulares e, ao mesmo tempo, interesses privados e particulares assaltando os espaços públicos e de poder. Num círculo vicioso que não tem permitido uma renovação significativa dos quadros políticos brasileiros. Utiliza-se deste expediente para manter-se imune às punições legais existentes e manter-se no poder. Assim a corrupção alimenta o poder e o poder alimenta a corrupção.

A corrupção no nosso país não é apenas monetária/financeira, mas é principalmente o uso do poder político para interesses privados e particulares (aqui incluído o desejo de permanecer sempre em cargos eletivos). Para isso, mudam-se as regras do jogo eleitoral a bel prazer de quem está no poder. Vide o processo que permitiu a reeleição. O maior roubo da corrupção é o roubo do poder de decisão do povo, que não tem nenhum mecanismo de revogação de mandato ou de controle do processo decisório, por exemplo, a não ser o limitado processo eleitoral onde o que mais se conta são as estratégias de marketing dos/as candidatos/as e os recursos financeiros que se tem (muitos oriundos do Caixa 2 dos doadores, fruto da sonegação ou corrupção). Este processo cria, como muito bem definiu o professor e jurista Fabio Konder Comparato, uma “democracia sem povo”.

Nos últimos anos a sociedade brasileira criou alguns mecanismos e tentativas de controle social sobre a ação do Estado. Graças a estes mecanismos (sejam os institucionais como os conselhos, sejam as organizações que monitoram o orçamento público de forma autônoma) e à democracia – mesmo que formal – que os casos de corrupção estão sendo denunciados.

Entretanto, este processo é paradoxal, pois promove a sensação de que o Brasil é mais corrupto na democracia do que na ditadura. Sensação falsa, pois na ditadura não havia liberdade de denúncia, portanto pouco sabemos sobre este período da história brasileira. Algumas forças políticas ainda defendem que para enfrentar a corrupção somente uma ditadura. Mas a história tem mostrado que o contrário é mais verdadeiro. Só enfrentamos a corrupção com a radicalização da democracia e a construção de um poder democrático. Não uma democracia que se estruture apenas na representação (via processo eleitoral e partidos). Mas sim uma democracia que conjugue a questão da representação, com a democracia direta e a participativa.

A democracia direta é o direito que a população tem de decidir sobre as grandes questões que afetam a sua vida, portanto a democracia direta desloca o centro do poder decisório das instituições oriundas dos processos eleitorais para a participação popular. Neste sentido, a política deixa de ser monopólio exclusivo dos detentores de mandatos e dos partidos e passa a ser do conjunto da sociedade.

Para chegarmos a isso, precisamos de uma nova regulamentação do artigo 14 da Constituição Federal, que define as formas de manifestação da soberania popular (plebiscito, referendo e iniciativa popular). A atual regulamentação, feita pela Lei 9.709, de 1998, não só restringe a participação, como a dificulta. Por exemplo, só o legislativo pode convocar referendo e plebiscito. Sendo assim um mecanismo de democracia direta precisa passar pelo aval do parlamento (democracia representativa) para ser exercido. Sem falar na exagerada burocracia para poder apresentar propostas de leis de iniciativas populares.

Além disso, precisamos criar novos mecanismos de participação direta, por exemplo, o veto popular. Devemos criar um sistema de democracia direta, conjugado com os instrumentos e mecanismos representativos e participativos.

Em 2009 um conjunto de organizações, entre elas a Plataforma, a ABONG, a OAB, a CNBB, o INESC, a AMB, com apoio da Frente Parlamentar pela Reforma Política com Participação Popular, apresentaram uma proposta de lei na Comissão de Participação Legislativa de nova regulamentação do art. 14 da Constituição Federal.

Entre estas propostas, destacamos:

a) a simplificação do processo e a garantia da sua convocação: utilização das urnas eletrônicas para a iniciativa popular; a aceitação de qualquer documento expedido por órgão público oficial com foto como comprovante para assinatura de adesão (hoje só pode ser com título de eleitor); e que os referendos e plebiscitos possam ser convocados pela própria população.
b) Que seja prevista a convocação obrigatória de plebiscitos, referendos e outras formas de consultas para os principais temas nacionais, como por exemplo, tamanho da propriedade da terra, emissão de títulos públicos que representem parcela significativa do PIB, privatização de bens e empresas públicas, acordos internacionais com instituições financeiras multilaterais (Banco Mundial, FMI, etc.) acordos de livre comércio, criação ou fusão de municípios e estados, grandes obras com forte impacto socioambiental, mudanças nas leis eleitorais, entre outros temas.
c) precedência de votação por parte do Legislativo dos projetos que venham de leis de iniciativa popular.
Por democracia participativa entendemos a participação, via organizações e movimentos sociais, nas definições das políticas públicas, inclusive nas econômicas e não apenas nas chamadas políticas sociais. É uma participação que se dá via organizações da sociedade civil autônomas e independentes do Estado e dos partidos. Uma das manifestações desta forma democrática são os conselhos e conferências criados, principalmente, depois da Constituição Federal de 1988. Apesar da proliferação de espaços participativos como estes em todo o Brasil e sobre quase todas as políticas públicas, precisamos criar um sistema de participação que rompa com atual fragmentação dos espaços participativos. Além disso, estes espaços precisam ser autônomos (e não apenas homologadores de decisões já tomadas pelo executivo), ter caráter deliberativo e laico, a sociedade organizada de fato deve escolher seus representantes, o orçamento público de cada política deve ser acompanhado e deliberado por estes espaços, e eles precisam se constituir em espaços de partilha de poder e não um faz de conta da participação.

Para isso, destacamos algumas propostas:

a)Criação de espaços de democracia participativa nos poderes Legislativos e Judiciário, incluindo o Ministério Público, e não apenas no Executivo.
b)Criação de mecanismos de participação, deliberação e controle social nas políticas econômicas, de desenvolvimento e no orçamento público.
c)Criação de mecanismos de diálogos e de interlocução dos diferentes espaços já existentes de participação e controle social.
Por fim, no que se refere à democracia representativa precisamos fazer uma reforma eleitoral (que o senso comum tem chamado de reforma política) que mude completamente a forma de escolha dos/as nossos/as representantes (vereadores/as, deputados/as, prefeitos/as, senadores/as, governadores/as, presidente). A representação não pode ser um “cheque em branco” onde só temos o direito em votar a cada quatro anos e nada mais. Pelas regras atuais não temos controle nenhum sobre a representação. Não é à toa que boa parte dos escândalos de corrupção dos últimos anos estão associados à democracia representativa, ou mais precisamente, ao chamado “Caixa 2” para manter este sistema.
Para alterar a democracia representativa, destacamos algumas propostas, tais como:
a)Financiamento público exclusivo de campanha. Recurso privado não pode financiar a política. Este é um dos maiores fatores de corrupção no Brasil. Precisamos instituir um sistema de financiamento público de campanhas, com regras rígidas de controle, fiscalização e punição para quem descumprir. O financiamento público também enfrentaria outra questão importante para a democracia que é a busca da igualdade de condições econômicas nos processos eleitorais.
b)Votação em listas pré-ordenadas. Um dos problemas do atual sistema é a distorção na representação. Parcelas da população não estão representadas ou estão sub-representadas, como é o caso das mulheres, população indígena, negra, etc. Não construiremos democracia no Brasil mantendo no poder apenas um rosto “masculino, branco etc”.
c)Criação de uma comissão de fiscalização do processo eleitoral: formada pela justiça eleitoral, partidos e representantes da sociedade civil.

Entendemos que uma reforma política entendida de forma mais ampla que simplesmente a reforma do sistema eleitoral é um dos elementos fundamentais para enfrentarmos a questão da corrupção. Em outras palavras, o atual sistema político com suas formas de exercício do poder é elemento central da cultura da corrupção e da impunidade no Brasil. Sem mudar isso radicalmente não teremos um país livre da corrupção.

José Antonio Moroni é conselheiro do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES) e membro do Colegiado de Gestão do Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC).

Ana Claudia Teixeira, cientista política, do Instituto Pólis.

Categoria: Artigo
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