Pandemia não é carnaval! Sem recursos, não há enfrentamento à violência sexual

18/05/2020, às 11:59 | Tempo estimado de leitura: 7 min
Por Márcia Acioli, assessora política do Inesc e Thallita de Oliveira, educadora do Inesc
Enquanto Damares promove concurso de máscaras, políticas públicas para crianças e adolescentes sofrem falta de recursos

A medida mais segura para deter o avanço da pandemia da Covid-19 é a quarentena. “Fica em casa” é o nosso mantra a despeito de um governo federal irresponsável que faz uma queda de braço com cientistas e médicos de todo o mundo.

A maioria das famílias das periferias vive da renda do comércio informal exercido nas ruas, do trabalho doméstico e outros não protegidos. As favelas estão enfrentando as maiores dificuldades por tudo o que já tem sido dito: falta de equipamentos públicos de saúde (leitos e respiradores) e de assistência, falta de espaço para o isolamento ideal, fornecimento de água irregular, queda drástica dos proventos e, por fim, racismo estrutural que move pessoas negras para o fim da fila.

As comunidades têm se organizado com redes de comunicação próprias, ações de solidariedade e organização política. Mas nada disso é suficiente para reverter o cenário de ameaças que recai sobre a sua população. A letalidade dos moradores de periferia é comprovadamente mais elevada num país em que o sistema de privilégios determina quais vidas devem ser salvas.

A questão fundamental é que o confinamento acentua os riscos de abuso e violência para mulheres e crianças, das mais ricas às mais pobres. O confinamento expõe a criança mais tempo à presença do agressor de modo a não haver momento de alívio, nem contato com redes de proteção, como escolas, conselhos tutelares e outros familiares.

A redução de ganhos da família por desligamento de trabalhos ou mesmo por ter suas atividades laborais suspensas temporariamente empurra crianças e adolescentes para o trabalho infantil e, na pior das instâncias, à exploração sexual.

O problema não acontece só no Brasil. Relatório de abril de 2020 da Europol, inteligência da União Europeia, revela que as organizações criminosas têm mudado suas formas de atuar. Enquanto houve redução dos crimes de tráfico e de contrabando, registrou-se aumento significativo de produção e consumo de pornografia infantil.

Maio é mês de combate à violência sexual. Dia 18 de maio traz o lema: “esquecer é permitir, lembrar é combater”. Vamos então recordar dados de anos anteriores. Segundo o Boletim Epidemiológico 27 do Ministério da Saúde (2018), entre 2011 e 2017, houve 184.524 casos notificados de violência sexual contra crianças e adolescentes no Brasil. Sabe-se, no entanto, que esta modalidade de violência é bastante subnotificada por motivo de constrangimento, insegurança, medo e desinformação. Das vítimas, 74,2% eram meninas enquanto 25,8% eram meninos. Segundo o referido Boletim Epidemiológico, entre as meninas, 51,2% estavam na faixa etária de  1 a5 anos e 42,9%  encontravam-se entre 6 e 9 anos. Chama a atenção o fato de 69,2% ter ocorrido dentro de casa, sendo que 33,7% com caráter de repetição, evidenciando que o lar não é necessariamente ambiente seguro. Em tempos de pandemia, ao se proteger do vírus, é possível que estejamos expondo crianças a outros riscos.

Espera-se com este cenário aterrador uma posição incisiva do governo para enfrentar com seriedade e responsabilidade uma violência tão previsível e anunciada. Por ingenuidade ou desprezo pela vida a Ministra Damares Alves do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos anunciou que vai promover um concurso para estimular o uso de máscaras com estampas lúdicas para crianças. A proposta pode ser singela, mas urgem iniciativas mais contundentes, afinal, pandemia não é carnaval! Pandemia promove uma sobreposição de riscos, ameaças e violências e requer respostas sérias, organizadas e rápidas. Esse é um momento ainda mais propício para realizar campanhas e formações que dialoguem sobre o que é violência sexual e sobre prevenção, sobre como se proteger e proteger crianças e adolescentes, como e onde denunciar de forma protegida.

Orçamento Público para enfrentamento da violência sexual

Analisando o orçamento público referente ao enfrentamento à violência sexual de 2013 a 2019 percebeu-se uma redução drástica de recursos públicos destinados especificamente ao enfrentamento da violência sexual de crianças e adolescentes, chegando ao seu desaparecimento em 2019, como pode ser visto na tabela a seguir. O que também indica despreparo do governo federal para atuar na prevenção das violências contra crianças e adolescentes nesse período de pandemia em que é necessário o isolamento social.

Desde 2017, o termo violência sexual passou a ser integrado a um Plano Orçamentário (PO) mais amplo: Enfrentamento das violências contra crianças e adolescentes, reduzindo a transparência das ações específicas. Além de o valor autorizado ser insignificante para ações complexas em um país de tamanho continental (R$ 938.637,82), em 2019 não se gastou recurso algum, como mostrou o estudo do Inesc “O Brasil com Baixa Imunidade”. Em 2018, o gasto foi maior, talvez por conta do impacto da lei 13.431 aprovada em 2017 que estabelece o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência. Mas em 2019, já com o novo governo, nada foi gasto com esta política e agora em 2020 esse PO nem aparece no orçamento do governo federal. Se tiver algum recurso para esse tipo de ação, não sabemos de qual rubrica orçamentária será retirado.

O governo federal precisa apresentar, urgentemente, um programa de ações para enfrentamento das violências contra crianças e adolescentes nesse período. Se nada for feito, com ou sem máscaras, mais e mais crianças serão marcadas irreversivelmente por uma das mais brutais violências que possa se imaginar. A responsabilidade pesará sobre os ombros dos perpetradores da violência, mas também de quem foi negligente. Não esqueceremos!

Categoria: Artigo
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