O art. 3º da Constituição Federal esclarece quais são os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Para isso, o art. 6º elenca os direitos sociais: educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, transporte, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância e assistência aos desamparados.
Para assegurar especificamente os direitos à Saúde, à Previdência social e à Assistência Social, foi definida a Seguridade Social no art. 194 da Constituição, como um sistema de proteção social que visa garantir que os cidadãos se sintam seguros e protegidos ao longo de sua existência, provendo-lhes a assistência e recursos necessários para os momentos de infortúnios.
A Seguridade Social representa uma forma de organizar a sociedade com base no princípio da fraternidade e na garantia constitucional dos direitos. Ela ainda conta com orçamento próprio composto por uma diversidade de fontes de receitas (art.195), provenientes do orçamento da União, dos Estados e Municípios, e das contribuições sociais feitas pelas empresas e pelos trabalhadores. Dessas fontes, se destacam: Contribuição Previdenciária para o Regime Geral da Previdência Social (RGPS); Contribuição Social sobre o Lucro Líquido das Empresas (CSLL); Contribuição Social Para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins); Contribuição para o PIS/Pasep; Contribuições sociais sobre concurso de prognósticos (ex: loteria).
Apesar dos alardes contrários, o Orçamento da Seguridade Social é superavitário. Consequentemente, os orçamentos da Saúde, da Previdência e da Assistência também são. Em 2014, por exemplo, a Seguridade Social teve uma receita de R$ 686 bilhões e uma despesa de R$ 632 bilhões, tendo como resultado um superávit de R$ 53 bilhões.
Gráfico 1: Orçamento da Seguridade Social
Fonte: Siga Brasil; ANFIP
Entretanto, esse superávit não tem sido revertido para a própria Seguridade Social. Quando avaliada sua necessidade de financiamento, é perceptível a necessidade de um maior investimento para seu adequado funcionamento e garantia do direito à Saúde, à Previdência e à Assistência Social com qualidade para a população brasileira.
Por exemplo: ainda é muito baixo o valor per capita aplicado em Saúde no Brasil, sendo bastante inferior ao que é aplicado por outros países com modelo de Saúde universal como o Sistema Único de Saúde (SUS), como Canadá e Inglaterra (caberia dizer um ou dois países que têm modelos iguais). Apesar das tentativas de garantir um melhor financiamento para a Saúde desde 2000 com a Emenda Constitucional 29 (EC 29), foi somente em 2012 com a Lei Complementar 141 (LC 141) que foram aprovados os valores mínimos a serem aplicados em ações e serviços públicos de Saúde por cada um dos entes federados (União, Estados e Municípios). Apesar de ainda limitada, especialmente por parte da União, essa garantia de financiamento mínimo representava um avanço. Avanço esse que durou muito pouco.
Em 2015, com a Emenda Constitucional 86 (EC 86), o financiamento da Saúde pela União foi novamente alterado, agravando e constitucionalizando seu quadro de subfinanciamento. A União, que em 2015 aplicou 14,8% da Receita Corrente Líquida (RCL) em Saúde, tem em 2016 a obrigação de aplicar apenas 13,2% da RCL, uma perda de R$ 10 bilhões que deveriam servir para salvar vidas, realização de exames, consultas, cirurgias, promover a saúde e prevenir doenças transmissíveis, entre outros. É ainda mais assustador que essa redução de orçamento ocorra inicialmente em um ano em que o Brasil enfrenta uma grave situação: a zika e seus efeitos, como a microcefalia.
Mais absurdo ainda é que os ataques à Seguridade Social (Saúde, Previdência Social, Assistência Social) e aos demais direitos sociais não param. A bomba mais recente e extremamente agressiva é a PEC 241/16 que determina que as despesas primárias terão seu limite tendo por base o valor limite referente ao exercício imediatamente anterior, corrigido pela variação do IPCA (publicado pelo IBGE, ou de outro índice que vier a substituí-lo, para o período de janeiro a dezembro do exercício imediatamente anterior).
Ou seja, as despesas primárias, que são aquelas realizadas com as políticas públicas que garantem os direitos, terão seu planejamento orçamentário com base apenas na variação inflacionária, desconsiderando o que deveria ser sua base: as necessidades da população brasileira. Também será desconsiderado que as receitas arrecadadas pelo Estado (impostos e demais tributos) existem para atender o interesse público, as necessidades sociais e não uma meta fiscal estabelecida de forma aleatória e abusiva para pagar juros extremamente elevados, como ocorre no Brasil que tem uma das maiores taxas de juros do mundo. Será a inflação, e não mais as necessidades do povo brasileiro, o que determinará o valor a ser aplicado na Seguridade Social e nas demais políticas públicas, o que representará uma alteração dos princípios norteadores da Constituição Federal Cidadã de 1988, uma ruptura com os alicerces e objetivos constitucionais do Bem-Estar Social, uma completa e absurda inversão de valores.
Para piorar o cenário, a PEC 241/16 prevê também que não haverá aumento real do que é investido nos direitos sociais, nas políticas públicas e na Seguridade Social por 20 anos. Tomando a Saúde como exemplo: como a população brasileira crescerá 9% e dobrará sua população idosa em 20 anos, de acordo com as previsões do IBGE, isso exigiria um aumento real do valor destinado para a Saúde; entretanto, isso não ocorrerá. Em valores reais, o mesmo montante de recursos aplicado em 2017 será aplicado em 2037, havendo apenas uma correção monetária. O resultado será uma aplicação per capita cada vez menor no SUS, já que a demanda por serviços aumentará e o financiamento não, o que implicará em piora da oferta e da qualidade dos direito à Saúde para os brasileiros. Esse exemplo da Saúde é real para todos os demais direitos: Educação, Previdência, Assistência, Transporte, todos serão cada vez mais sucateados. Se a PEC 241/16 estivesse em vigor desde 2003, por exemplo, a Saúde teria sofrido uma perda acumulada de R$ 433 bilhões, conforme demonstra o quadro abaixo:
Elaboração: Conass e Conasems.
Fonte: PLOA 2017, Substituto PEC-241-A, Estimativas do IPCA e do PIB do Bacen
Avaliando a porcentagem do PIB aplicada em Saúde entre o que foi e o que seria caso a PEC 241/16 estivesse em vigor desde 2003, é possível constatar a imensa perda de investimentos. Em 2015, por exemplo, ao invés de 1,69%, apenas 0,94% do PIB teria sido investido em Saúde pelo governo federal. Se no momento já vivemos um quadro de sub financiamento do SUS, a situação seria bem pior caso a PEC 241 já estivesse em vigor, com o SUS completamente inviabilizado por absoluta falta de recursos.
Gráfico 2: Despesa empenhada em ASPS como % do PIB
Fonte: Grupo Técnico Interinstitucional de Discussão do Financiamento do SUS
*Valores a preço de Março de 2016 em R$ mil
Enquanto as demandas sociais aumentam, com o crescimento e envelhecimento populacional, e com novas tecnologias de Saúde cada vez mais caras, a proposta de um novo modelo fiscal que reduz investimentos no setor destina o povo brasileiro à morte com o sucateamento definitivo do SUS. É importante destacar que o SUS é utilizado por todo o povo brasileiro, inclusive por aqueles que têm planos de saúde ou pagam atendimentos particulares. Isso ocorre porque o SUS é muito mais do que consultas e procedimentos. É também a Farmácia Popular, é o transplante realizado, é a vigilância sanitária, epidemiológica e em saúde, os tratamentos oncológicos, os medicamentos de alto custo em sua maioria judicializados pela classe financeira média e alta, entre outros. Apesar de afetar de forma mais intensa os grupos mais vulneráveis, toda a população brasileira sofrerá com a falência do SUS. O mesmo vale para as demais políticas públicas, como as de Assistência e Previdência Social que compõem a Seguridade Social, e também as demais, como Educação, Transporte, Segurança Alimentar. A PEC 241/16 representa a destruição do Estado de Bem Estar Social previsto na Constituição brasileira, ainda em construção e não plenamente alcançado, mas sempre tão minado e agora sofrendo uma tentativa de extinção completa.
Antes grande propagador da austeridade, o Fundo Monetário Internacional (FMI) divulgou recentemente um estudo em que se retrata por suas equivocadas orientações neoliberais. Eles constataram que, além de serem economicamente ineficientes para resgatar a economia em tempos de crises[1], as medidas de austeridade apenas aprofundam as desigualdades econômicas e sociais já existentes, especialmente entre os grupos já em situação de vulnerabilidade.
Nesse contexto de ajuste fiscal, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos já se manifestou chamando as autoridades brasileiras a “observarem os princípios de progressividade e não regressão na área dos direitos econômicos, sociais e culturais” além de manter seus compromissos assumidos nos espaços de direitos humanos regionais e universais. Alertaram ainda que as medidas de austeridade anunciadas “iriam constituir uma regressão não autorizada do Protocolo de São Salvador”[2].
Qualquer tentativa de redução do financiamento da Seguridade Social e dos direitos sociais representa um atentado contra a Constituição, Carta Magna de um país, que não pode, e não será, tolerado.
(artigo editado em 11/10/16 em decorrência da aprovação do substituto PEC 241-A na Comissão Especial da Câmara dos Deputados)
[1] https://www.theguardian.com/business/2016/may/27/austerity-policies-do-more-harm-than-good-imf-study-concludes
[2] Inter American Commission on Human Rights, Press release 67/16 of May 18, 2016, “IACHR Expresses Deep Concern over Regression in Human Rights in Brazil” Disponível online aqui.