Perspectivas Históricas sobre o Desenvolvimento da América Latina

01/01/1970, às 0:00 | Tempo estimado de leitura: 14 min
Agência Carta Maior. Texto Noam Chomsky
É a primeira vez, desde as conquistas espanholas,
500 anos atrás, que tem havido movimentos reais em direção à integração
na América do Sul. Os países permaneceram muito separados uns dos
outros. E integração está vindo a ser um pré-requisito para a
independência autêntica.

No final de semana dos dias 9 e 10 de dezembro, houve um encontro, em Cochabamba, Bolívia, dos maiores líderes sul-americanos. Foi um encontro muito importante. Um indício da sua importância é que não foi noticiado. Excluindo a distribuição eletrônica [pelas agências] de notícias, virtualmente não foi noticiado. Mas todo editor ficou sabendo.

Os líderes sul-americanos concordaram em criar uma comissão de alto nível para estudar a idéia de formar uma comunidade continental similar à União Européia. Eram os presidentes e os enviados das principais nações, e havia a cúpula de dois dias do que foi chamado de Comunidade Sul-Americana de Nações, hospedada por Evo Morales, o presidente da Bolívia, em Cochabamba. Os líderes concordaram em formar um grupo de estudo para tratar da possibilidade de criar uma união continental e mesmo um parlamento sul-americano. O resultado, segundo o relatório da AP [Associated Press], deixou o febril presidente da Venezuela, Hugo Chávez, um velho agitador da região, com um papel maior no palco mundial, contente, mas impaciente. O relatório continua dizendo que a discussão sobre a unidade sul-americana continuaria no final deste mês [dezembro de 2006], quando o Mercosul, o bloco comercial sul-americano, tem seu encontro regular, e incluirá líderes do Brasil, Argentina, Venezuela, Paraguai e Uruguai.

Há um ponto de hostilidade na América do Sul. É entre Peru e Venezuela. Mas o artigo aponta que Chávez e o presidente peruano Alan Garcia aproveitaram a cúpula para fazer as pazes, após terem trocado insultos no começo do ano [de 2006]. Esse era o único conflito real na América do Sul no momento. E parece ter se apaziguado.

O novo presidente do Equador, Rafael Correa, propôs uma rota comercial terrestre e fluvial ligando a Floresta Amazônica brasileira à costa do Pacífico equatoriana, sugerindo que, para a América do Sul, essa pode ser algo como uma alternativa ao Canal do Panamá.

Chávez e Morales celebraram um novo projeto conjunto, a usina de processamento de gás na região rica em gás da Bolívia. É uma parceria da PDVSA (Petroleos de Venezuela SA, pronuncia-se “pedevesa”), a empresa petrolífera venezuelana, com a empresa estatal de energia da Bolívia. E a coisa vai adiante. A Venezuela é o único membro latino-americano da Opep, e tem, como grande diferença, as maiores reservas de petróleo comprovadas fora do Oriente Médio. Segundo algumas medições, elas seriam comparáveis às da Arábia Saudita.

Também houve contribuições construtivas e interessantes de Lula da Silva, o presidente do Brasil, de Michelle Bachelet, do Chile, e outras. Tudo isso é extremamente importante.

É a primeira vez, desde as conquistas espanholas, 500 anos atrás, que tem havido movimentos reais em direção à integração na América do Sul. Os países permaneceram muito separados uns dos outros. E integração está vindo a ser um pré-requisito para a independência autêntica. Tem havido tentativas de independência, mas elas têm sido esmagadas, freqüentemente muito violentamente, em parte por causa da falta de apoio regional. Por haver pouca cooperação regional, eles podem ser combatidos um a um.

É o que tem ocorrido desde os anos sessenta. A administração Kennedy orquestrou um golpe no Brasil. Foi o primeiro de uma série de dominós que caíram. Estados de segurança nacional ao estilo neonazi se espalharam pelo hemisfério. O Chile foi um deles. Então houve as guerras terroristas de Reagan nos anos oitenta, as quais devastaram a América Central e o Caribe. Foi a pior praga de repressão na história da América Latina desde as conquistas originais.

Mas a integração põe a base para a independência potencial, e isso é de importância extrema. A história colonial da América Latina não apenas dividiu os países uns dos outros, ela também deixou uma divisão interna aguda no interior dos países, de cada um, entre uma pequena elite muito rica e uma enorme massa de pessoas empobrecidas. A correlação racial é muito próxima. Tipicamente, a elite rica era branca, européia, ocidentalizada; e a massa pobre da população era nativa, indígena, negra, misturada, e assim por diante. Era uma correlação próxima, e continua no presente.

As elites brancas, na maioria de brancos – que dirigia os países – não era muito integrada, tinha poucas relações com os outros países da região. Elas estavam orientadas ao ocidente. Pode-se ver isso de todas as maneiras. Era para onde seu capital era exportado. Era onde estavam seus lares secundários, onde os filhos iam à universidade, onde estavam as conexões culturais. E elas tinham quase nenhuma responsabilidade pelas próprias sociedades. Assim, há uma divisão muito aguda.

Pode-se ver o padrão nas importações. Importam-se sobretudo artigos de luxo. O desenvolvimento enquanto tal era na maior parte estrangeiro. A América Latina estava muito mais aberta ao investimento estrangeiro do que, digamos, o Leste Asiático. É parte da razão para seus caminhos de desenvolvimento radicalmente diferentes nas últimas duas décadas.

E, é claro, os elementos da elite eram fortemente simpáticos aos programas neoliberais dos últimos 25 anos, os quais os enriqueceram – destruíram seus países, mas os enriqueceram. A América Latina, mais do que qualquer outra região no mundo, à exceção do sul da África, aderiu rigorosamente ao assim chamado Consenso de Washington, o que levou aos programas neoliberais, fora dos Estados Unidos, nos últimos 25 ou 30 anos. E onde eles foram rigorosamente aplicados, quase sem exceção, eles levaram ao desastre. Uma correlação muito marcante. Redução aguda das taxas de crescimento e de outros índices macroeconômicos, com todos os efeitos sociais que acompanham.

De fato, a comparação com o Leste Asiático é muito marcante. A América Latina é, potencialmente, uma área muito mais rica. Quer dizer, um século atrás, era dado como certo que o Brasil seria o que era chamado de “Colosso do Sul”, comparável ao Colosso do Norte. O Haiti, hoje um dos países mais pobres do mundo, era a colônia mais rica do mundo, uma fonte de muito da riqueza da França, hoje devastado, primeiro pela França, depois pelos Estados Unidos. E a Venezuela – riqueza enorme – foi tomada pelos Estados Unidos por volta de 1920, logo no início da era do petróleo. Ela foi uma colônia inglesa, mas Woodrow Wilson escorraçou os ingleses de lá, reconhecendo que o controle do petróleo viria a ser importante, e apoiou um ditador cruel. A coisa vai assim daquele momento até o presente, mais ou menos. Assim, os recursos e o potencial sempre estiveram presentes. Muita riqueza. Em contraste, o Leste Asiático praticamente não tem recursos, mas eles seguiram um caminho de desenvolvimento diferente. Na América Latina, as importações eram artigos de luxo para os ricos. No Leste Asiático eram bens de capital para o desenvolvimento. Eles tinham programas de desenvolvimento coordenados pelo Estado. Eles praticamente não deram atenção ao Consenso de Washington. Controles de capital, controles sobre a exportação de capital, sociedades bastante igualitárias – autoritárias, às vezes bastante duras – com programas educacionais, programas de saúde, e assim por diante. De fato, eles seguiram boa parte dos caminhos do desenvolvimento das sociedades ricas do presente, as quais eram radicalmente diferentes das regras que estão sendo impostas ao Sul.

E assim foi na história. Você volta ao século 17, quando os centros comercial e industrial do mundo eram a China e a Índia. A expectativa de vida no Japão era maior do que na Europa. A Europa era uma espécie de posto avançado bárbaro, mas tinha vantagens, principalmente em selvageria. Ela conquistou o mundo, impôs algo como as regras neoliberais sobre as regiões conquistadas, e, para si mesma, adotou um protecionismo muito alto, bastante intervenção estatal, e assim por diante. Assim a Europa desenvolveu-se.

Os Estados Unidos, como um caso típico, tinha as taxas de importação mais altas do mundo, foi o país mais protecionista do mundo no período do seu grande desenvolvimento. De fato, em um período tão tardio quanto 1950, quando os Estados Unidos tinham literalmente a metade da riqueza do mundo, suas taxas de importação eram mais altas do que as dos países da América Latina hoje, aos quais se ordena que as reduzam.

Intervenção massiva do Estado na economia. Os economistas não falam muito sobre isto, mas a economia corrente nos Estados Unidos apóia-se muito fortemente no setor estatal. É de onde você consegue seus computadores, a internet, seu tráfego aéreo, a estrutura rodoviária, navios de containeres e assim por diante, quase tudo vem do setor estatal, incluindo fármacos, técnicas gerenciais, e assim por diante. Não desenvolverei o tópico, mas há uma forte correlação através da história. Tais são os métodos de desenvolvimento.

Os métodos neoliberais criaram o terceiro mundo, e, nos últimos 30 anos, eles levaram a desastres na América Latina e no sul da África, os locais que aderiram mais rigorosamente a eles. Mas houve crescimento e desenvolvimento no Leste Asiático, região que não os seguiu, seguindo, ao invés, o modelo dos próprios países ricos atuais.

Bem, há uma chance que isso comece a mudar. Finalmente há esforços dentro da América do Sul – infelizmente não na América Central, a qual foi muito devastada pelo terror dos anos 1980s, particularmente. Mas na América do Sul encontramos, da Venezuela à Argentina, o lugar mais interessante do mundo. Após 500 anos, há um começo de esforço para superar tais enormes problemas. A integração que está tendo lugar é um exemplo.

Há esforços da população indígena. Em alguns países, pela primeira vez em séculos a população indígena está realmente começando a ter um papel muito ativo nos seus próprios assuntos. Na Bolívia eles conseguiram assumir o país, controlar seus recursos. Isso também está levando a uma democratização significativa, a uma democracia real, na qual a população participa. Assim, eles assumiram para si mesmos uma Bolívia – é o país mais pobre da América do Sul (o Haiti é o mais pobre do hemisfério). Houve uma eleição democrática real no ano passado, de um tipo que você não pode imaginar nos Estados Unidos, ou na Europa, no que diz respeito. Houve participação popular massiva, e as pessoas souberam quais eram as questões. As questões eram claras e muito importantes. E as pessoas não participaram apenas no dia da eleição. Eram coisas pelas quais elas estavam lutando por anos. De fato, Cochabamba é um símbolo disso.

* Transcrição de uma palestra perante o Boston Meeting of Mass Global Action (http://japanfocus.org/products/details/2298), em 15 de dezembro de 2006, publicado em Chomsky.info (http://www.chomsky.info/talks/20061215)

** Tradução de César Schirmer dos Santos

Noam Chomsky é professor de lingüistica do MIT (Massachusetts Institute of Technology).

Categoria: Artigo
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