A implementação do Sistema de Deliberação Remoto (SDR) da Câmara e do Senado, em 2020, cumpriu importante papel na garantia do funcionamento do Parlamento durante a pandemia de COVID/19. Entretanto, findo o estado de calamidade e dirimido os riscos de contágio, o Parlamento voltou ao trabalho presencial, e as comissões de mérito foram reinstaladas, dando-se início aos trabalhos legislativos nos colegiados de decisão.
Entretanto, algumas regras constitucionais e regimentais de votação, que foram ajustadas para cumprir o distanciamento social e para dar celeridade à aprovação dos projetos, tardam em ser novamente restabelecidas pelo Congresso Nacional. Isso vale especialmente para a tramitação das Medidas Provisórias (MPs), que têm sido motivo de embate entre a Câmara e Senado. Recentemente, por acordo político, o Presidente da Câmara, Artur Lira, concordou em instalar algumas comissões mistas que devem apreciar MPs de interesse do governo, mas o imbróglio ainda não está resolvido. Há indícios de que uma proposta de emenda constitucional (PEC) será proposta para mudar o rito de tramitação das MPs, sob a alegação de que não são democráticas.
Desde 2020, a partir do Ato Conjunto n°1/20[1], as MPs passaram a ser analisadas diretamente em Plenário – primeiro na Câmara (90 dias), depois no Senado (30 dias). Nesse cenário, a Câmara dos Deputados ganhou o poder de aprovar ou não as mudanças feitas no Senado, e o poder de indicar todas as relatorias das MPs. Além disso, ficou permitida a apresentação de emendas (propostas de modificação do texto da proposição) apenas nos dois primeiros dias após a publicação da matéria no Diário Oficial da União. A regra anterior à Pandemia, consolidada na Resolução nº1 do Regimento Comum do Congresso Nacional[2], estabelecia prazo de 6 dias para apresentação de emendas, com o qual, pode-se concluir, o tempo de análise para a propositura de mudanças ao texto fora reduzido.
Normas Constitucionais e Participação
A Constituição Federal também estabeleceu prazos e ritos de apreciação específicos para as Medidas Provisórias, uma vez que são proposições de iniciativa exclusiva do Presidente da República e surtem efeitos jurídicos assim que são editadas. De acordo com o §9º do art.62 da CF, a tramitação no Congresso deve começar pelas Comissões Mistas. Além do julgamento do mérito, cabe a elas analisar a constitucionalidade da matéria e sua adequação financeira e orçamentária, o que significa avaliar se há conformidade com o ordenamento jurídico, repercussão sobre o Orçamento Público da União e implicação quanto ao atendimento das normas orçamentárias e financeiras vigentes. Em 2013, o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou que a regra constitucional passasse a ser cumprida pelo Parlamento.
Ademais, compostas por 12 deputados e 12 senadores, as comissões mistas consistiam em espaço de debate político, ao qual acudiam setores interessados e afetados pelas matérias objeto de legislação. Por isso, comumente, fazia parte dos planos de trabalho dos parlamentares a realização de audiências públicas, ocasião em que se ouviam especialistas, sindicatos, empresas, representantes de órgãos governamentais, de organizações da sociedade civil e movimentos sociais, entre outros.
As audiências públicas encontram amparo no princípio republicano de soberania popular e possuem previsão regimental (Resolução nº1, 2002). Elas são importantes, porque dão transparência ao debate político, além de viabilizar a escuta de diversidade de opiniões. Portanto, a volta das comissões mistas, entendidas como espaço de participação democrática e de incidência política, é fundamental. Se as regras atuais forem mantidas, restringir-se-á a possibilidade de diálogo entre Congresso e Sociedade.
De acordo com o parágrafo único do art.2º do Ato Conjunto n°1/20, a medida excepcional que mudou o trâmite das medidas provisórias, deveria viger apenas enquanto durasse a Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional e o estado de calamidade, instituídos em função da COVID-19. Não obstante, até o momento, sem acordo para a revogação do mencionado Ato, as MPs seguem sendo encaminhadas diretamente para os Plenários das Casas, o que restringe possibilidades de intervenção e ação política, inclusive pelos próprios parlamentares, que ficaram com tempo exíguo para apresentação das emendas e apreciação da matéria[3].
Por isso, nós da sociedade civil organizada e movimentos sociais que desenvolvemos trabalho de incidência política no Congresso, defendemos o restabelecimento de processo minimamente democrático de tramitação das MPs, pois a concentração de poderes em mãos do Presidentes das Casas, implica na redução dos espaços de debate público e na limitação do exercício da democracia participativa no Legislativo.
Diálogos com o Congresso
Recentemente, um grupo grande de organizações da sociedade civil e movimentos sociais que atuam no campo dos direitos humanos e na defesa da democracia participativa nos espaços de poder e decisão, esteve no Parlamento com intuito de propor diálogo contínuo com parlamentares, lembrando-lhes que a construção das políticas públicas deve respeitar o princípio da soberania popular, e, portanto, garantir a participação social no processo legislativo. Para tanto, é imprescindível o pleno funcionamento e aplicabilidade das normas que regem o processo legislativo e viabilizaram maior participação popular. Isso é fundamental na luta contra o retrocesso de direitos e pela garantia de inserção nos espaços de decisão política, de modo a ampliar conquistas sociais.
Finda a vigência do estado de emergência em saúde pública e dirimidos os riscos de contágio por COVID-19, torna-se crucial a revogação expressa do Ato Conjunto 1/20 e o restabelecimento das regras que conferem maior transparência ao processo legislativo e maior possibilidade de exercício da democracia.
E, por fim, qualquer modificação constitucional no rito da tramitação das medidas provisórias deve levar em conta possíveis prejuízos ao debate público e à participação da sociedade no processo de elaboração de políticas públicas. A constituição não deveria ser modificada em função de disputas ocasionais por poder, ela deve menter, em sua essência, sua vocação cidadã, de salvaguardar direitos humanos e sociais.
[1] https://www25.senado.leg.br/documents/59501/63315/DCN-11-2020.pdf/ce0d8c37-9fb8-45f7-9eea-69c757bbffa0 Acessado em 28/03/23.
[2] https://legis.senado.leg.br/norma/561120/publicacao/27423643 Acessado em 17/03/23.
[3] De acordo com as regras que seguem valendo, a Câmara avalia a matéria até o 9º de vigência da MP e o Senado o faz, em seguida, até o 14º de vigência da proposição. A Constituição Federal estabelece prazo de 60 dias, prorrogáveis por mais 60, para a aprovação do texto pelo Parlamento. Na prática, contudo, tem valido a regra que confere 90 dias de apreciação para a Câmara e 30 dias para o Senado.