Uma ferrovia de 933 km de extensão, do Mato Grosso ao Pará, para escoar grãos e outras mercadorias, com custo previsto de R$ 14 bilhões, uma concessão de 65 anos e que acumula violações socioambientais e jurídicas. A Ferrogrão consegue ser rejeitada tanto por povos indígenas quanto por caminhoneiros e é alvo de ações do Ministério Público.
Em audiências públicas esta semana em Itaituba e Novo Progresso, no Pará, uma nova rodada de debate colocou a ferrovia em xeque. Com a presença de aproximadamente 70 pessoas, representantes das comunidades de Trairão e Miritituba questionaram o próprio acesso e o formato da audiência, em local e horário impróprio para a participação dos trabalhadores. Com apenas 3 minutos para a fala de cada inscrito e um cronômetro intimidatório rodando no telão, prática que não é comum em audiências do tipo, pouco se avançou.
Na avaliação do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), a ausência do governo do Pará mostra a fragilidade da audiência do ponto de vista legal, uma vez que o Ministério Público Federal mantém sua posição sobre as consultas prévias aos povos indígenas, como exige a Constituição.
Do outro lado da história está o governo federal e o lobby de grandes traders multinacionais como Cargill, Bunge, ADM, Louis Dreyfus e outras. No meio, o contexto de pressão crescente sobre o território amazônico via o aumento exponencial do desmatamento, as queimadas, a grilagem de terras e centenas de projetos de infraestrutura que o governo Bolsonaro quer retomar.
Em outubro de 2018 a concessão da Ferrogrão foi paralisada por insuficiência de estudos socioambientais. A Justiça Federal em Belém ordenou que a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) interrompesse o processo por identificar falhas graves, como omissão das comunidades quilombolas afetadas; cópia de trechos de estudos feitos para as hidrelétricas da bacia do Tapajós; ausência de estudos técnicos prévios essenciais; falta de entrevistas com moradores afetados e ausência de levantamento dos vestígios culturais e arqueológicos no traçado da ferrovia.
Em fevereiro de 2019, o MPF reforçou a necessidade de consulta prévia aos povos indígenas impactados pelo traçado do projeto, exigência da Constituição Federal. Até o momento, o processo correu sem que as comunidades indígenas e tradicionais fossem ouvidas, uma clara violação. Além disso, pelo menos 48 áreas de proteção podem ser impactadas pela obra.
Alessandra Munduruku, liderança indígena do povo que sofre diretamente as consequências dos projetos na região do Tapajós, lembra que a Ferrogrão faz parte de um grande arco de obras com impactos sistêmicos que incluem hidrelétricas, portos, rodovias, mineração, desmatamento, invasões e grilagens de terra.
“A gente tem medo de andar na cidade, de ir sozinho, porque a ameaça está sendo muito grande. As pessoas que brigam pelos rios, pelos assentados, estão sendo ameaçadas de morte. A Ferrogrão vem para prejudicar ainda mais nosso território e a vida dos povos indígenas”, declara Alessandra.
Outro povo afetado são os Kayapós, que também se articulam para resistir ao projeto. No total, 19 etnias estão no arco de influência da obra. A Ferrogrão é considerada uma prioridade para o governo de Jair Bolsonaro (PSL). O ministro de Infraestrutura, Tarcísio de Freitas, já afirmou que a licitação deverá sair entre 2019 e início de 2020, e que a ferrovia representaria uma “segunda revolução do agronegócio”.
Na avaliação de Felipe Palha, procurador do MPF em Belém, a consulta prévia deveria ser realizada antes mesmo do leilão ou da análise do edital pelo TCU. “A concessão da obra nesse momento, sem a participação dos povos afetados, seria um desastre social e ambiental. Pensamos que a consulta prévia deve ser anterior ao licenciamento ambiental, para que a população afetada possa influenciar inclusive na decisão de viabilidade ou inviabilidade do projeto”, afirma Palha, em entrevista.
Segundo o procurador, o governo federal firmou um compromisso de respeitar a consulta, o que está sendo descumprido integralmente.
Jogo de interesses internacional
Levantamentos setoriais indicam que a estimativa é de escoar até 20 milhões de toneladas de grãos do Mato Grosso pelos portos da Bacia Amazônica via Ferrogrão. Todo esse volume deixaria de circular pelas rodovias, como a BR 163, o que afeta diretamente os milhares de caminhoneiros que trabalham no trajeto.
O sindicato dos caminhoneiros entrou com ações civis que deram origem ao bloqueio inicial da concessão na justiça. Eles pedem a anulação do relatório da ANTT, mais audiências públicas e apresentam como alternativa a duplicação da BR 163 e a retomada do Projeto “BR 163 Sustentável”, lançado em 2006 e atualmente parado.
A área de influência da rodovia envolve 1,232 milhão de km2, que inclui 79 municípios dos Estados do Pará, Mato Grosso e Amazonas. Teoricamente, o plano seria baseado na valorização da floresta em pé, em cadeias produtivas sustentáveis e na participação das comunidades locais.
O problema é que a BR-163 já é, sozinha, um grande vetor que impulsiona o desmatamento. A região dos kayapós, por exemplo, foi duramente afetada pela construção da rodovia 163. Desde 2000, o desmatamento no entorno das terras indígenas Baú e Menkragnoti saltou de 11,5 mil km² para 32,6 mil km², segundo dados do Instituto Kabu, organização formada por 12 aldeias de kayapós.
Nesse contexto, cresce a pressão dos interesses internacionais envolvidos na questão, das principais traders ao poder econômico chinês, totalmente disseminado na Amazônia.
A América Latina é fruto de disputa cada vez mais intensa entre os EUA e Pequim: dependência de exportação de commodities sem desenvolvimento e diversificação da agricultura e indústria locais, acirramento de conflitos sociais, ambientais e laborais, financeirização excessiva sem controles internos eficientes, pressões políticas, lobby e falta de transparência. A Amazônia ocupa espaço central nisso.
Nos últimos dez anos, US$ 71 bilhões foram gastos pelos chineses para garantir aquisições de empresas no continente e a China já compra mais de um quarto de toda a exportação de commodities da América Latina. O estoque atual de investimentos chineses na região é de US$ 207 bilhões, sobretudo em infraestrutura, energia, mineração, hidrocarbonetos, agronegócio e tecnologia.
As transações comerciais chinesas com a América Latina já superam US$ 200 bilhões. No âmbito financeiro, a China forneceu crédito de 141 bilhões de dólares na última década para os países da região, superando o fornecido por instituições como Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e Banco Mundial.