Ações inclusivas e transformadoras, por meio do ensino, do diálogo e da cultura, levaram o Projeto Onda – Adolescentes em Movimento Pelos Direitos a acumular reconhecimento local e nacional, impactando diretamente na vida de centenas de adolescentes que passaram por ele em seus 10 anos de existência.
Desenvolvido pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), em parceria com a escola da Unidade de Internação da Santa Maria (Uism), que atende cerca de 180 jovens de 14 a 21 anos em privação de liberdade, o Onda pela Paz é um dos 30 finalistas da 13ª edição do Prêmio Itaú-Unicef, promovido pela fundação Itaú Social e pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef).
O projeto tem como objetivos contribuir para o desabrochar do talento individual e coletivo dos adolescentes e incentivá-los a se enxergar como sujeitos de direitos, com a capacidade de cobrar do poder público o cumprimento de suas responsabilidades.
Dos mais de 3,5 mil inscritos nas duas categorias do prêmio, que identifica projetos que trabalham pela garantia de direitos de crianças, adolescentes e jovens em todo o país, o Onda está entre os 10 finalistas da categoria “Parceria em Ação”, em que são reconhecidas parcerias entre organizações da sociedade civil (OSCs) e escolas públicas. Os projetos vencedores nacionais serão anunciados em 27 de novembro, em cerimônia no auditório do Ibirapuera, em São Paulo.
Os projetos foram avaliados por um grupo de aproximadamente 140 pessoas – representantes das instituições organizadoras e parceiras do Prêmio – das áreas da educação, assistência social, cultura e comunicação. O prêmio é dividido em valores iguais entre o Inesc e a escola.
Para Márcia Acioli, assessora política do Inesc e coordenadora do Projeto Onda, o melhor prêmio é mostrar que dá pra fazer e que ousar é preciso. “Se a gente se acomodar nos padrões construídos, não saímos do lugar. É importante mostrar que podemos fazer diferente, desde que tenhamos segurança de estar num caminho ético, construído coletivamente”, afirma.
Um aspecto que merece destaque é a interação de adolescentes internos com os de outras escolas em atividades externas. “Nessas atividades há uma interação muito tranquila e um acolhimento importante que contribui para o retorno ao convívio comunitário”, observa Márcia.
Cursos sobre mediação de conflitos, aulas de arte e dança, produção da revista “Descolados”, com artigos escritos pelos próprios adolescentes, oficinas de poesia, festivais de música, gravação de um CD com composições dos alunos e programas de rádio produzidos dentro da Uism e enviados para transmissão em diversos países. Estas são algumas das ações do projeto, feito sempre em parceria com a escola, vinculada ao Centro Educacional 310 (CED) de Santa Maria e que oferece aos internos ensino fundamental (anos iniciais e finais) e ensino médio.
“Nossa parceria é orgânica e tudo sempre foi feito em conjunto”, reforça Márcia, que destaca a criação do Conselho dentro do projeto, em que os adolescentes podem decidir diretamente o rumo das ações, o que funciona e não funciona. “Eles decidem qual será o tema do ano, discutem o que faremos e como estão indo as coisas, o que gostam e não gostam. Esse exercício da responsabilidade é fundamental para eles, com participação efetiva na tomada de decisões”, lembra a coordenadora do projeto.
Inesc, escola e unidade de internação: somando forças
As ações ganharam ainda mais corpo com a chegada, há dois anos, de Antônio Raimundo dos Santos, diretor da Unidade de Internação de Santa Maria, que passou a apoiar integralmente o que foi proposto em conjunto, criando um ambiente de cooperação entre todos os agentes envolvidos no processo. Para Antônio, o projeto é muito importante porque valoriza a opinião dos internos. “O trabalho feito é muito sério e o Inesc aqui dentro tem fortalecido a participação dos meninos, o que eles colocam, suas ansiedades e necessidades. Pela importância do projeto para a unidade, dou todo o apoio que é necessário para que o Inesc possa desenvolver o trabalho da melhor maneira possível”, afirma.
Com esse suporte, hoje é possível fazer o impensável, conta Acioli. “O Antônio garante que 100% dos meninos participem do festival de música, por exemplo, interagindo em conjunto e com outros artistas da cidade. Isso é fantástico”, acredita. Para a educadora, a medida socioeducativa tem um papel decisivo para que adolescentes revejam seu ato infracional e enxerguem que eles são muito mais do que isso. “Esse é o papel da socioeducação, provocar essas possibilidades para que o talento que eles possuem desabroche. Não é por acaso que recebemos tantos prêmios nos últimos tempos, agora temos uma identidade coletiva”, conta.
O diretor concorda. Para Antônio, as ações fazem com que os internos sejam mais críticos e reflexivos, abrindo novas oportunidades. “O mais importante do projeto é fazer com que as meninas e os meninos tenham senso crítico de saber que tem um outro lado, que podem escolher outro tipo de vida. Isso é muito bacana. O Inesc, nesse sentido, mexe muito com a cabeça deles e isso é fundamental para fazer as escolhas certas”, destaca.
Esse é o caso de Cristina (nome fictício), 18 anos, que compõe letras de rap, escreve matérias e também grafita, entre outras atividades. “O projeto mudou o meu entendimento do mundo. Tive a oportunidade de me desenvolver mais, me abrir, com essas pessoas do meu lado apoiando. Eu vejo isso como mais uma porta que eu posso entrar por ela se quiser, vai muito do querer da pessoa”, relata a adolescente. Cristina conta que aprendeu muito sobre seus direitos e também a identificar comportamentos preconceituosos que tinha dentro de si, além de, hoje, conhecer melhor suas potencialidades. “Eu tinha uma cabeça muito limitada. Participar dessas atividades do INESC, dos debates na escola, das rodas de conversa e do próprio rap, me fez enxergar que nada daquele estereótipo que eu criava na minha cabeça era do jeito que eu pensava”, conta.
Esse é um dos principais orgulhos do professor de história Francisco Celso, que traz o rap como narrativa da realidade concreta dos internos e uma forma de se aproximar do que os alunos gostam e se identificam. “Percebi que eles não se identificam com o que é contado nos livros didáticos, mas se enxergam nas letras de rap. Por isso uso a música para debater os eixos transversais do currículo da educação básica do DF, como direitos humanos, sustentabilidade e diversidade”, explica.
A partir das letras de rap, com narrativas que espelham essas temáticas, o conteúdo é trabalhado em sala de aula e posteriormente vem o processo dos alunos expressarem o que aprenderam, da forma que se sentem mais à vontade, seja por desenho, poesia, redação ou letra de música, que conta também com o trabalho de musicalização. Isso tudo culmina no festival anual, que já está na terceira edição, em que os internos se apresentam cantando os próprios raps. A iniciativa também deu origem a um CD com essas composições, que já caminha para uma segunda edição com novas músicas.
Para Francisco, esse foi um processo de conquista, já que essas linguagens culturais são trabalhadas desde 2015. Depois da resistência inicial, a autonomia foi conquistada na prática, a partir do momento que os primeiros resultados começaram a aparecer. “As pessoas estão vendo que está sendo efetivo o trabalho, as atividades lúdicas e culturais, que os internos voltam mais tranquilos para o módulo, que diminui os conflitos. Isso acabou gerando um círculo virtuoso aqui dentro. A quebra de paradigma acontece positivamente quando mostramos que esse trabalho humanizado é mais eficaz”, relata o professor.
Para o educador, que tem longa vivência na periferia, o mais recompensador é escutar isso dos próprios alunos. “Uma interna chegou próximo da gente e falou que estava aqui há seis meses e era a primeira vez que se sentia livre. Isso é muito significativo, uma pessoa num ambiente de privação de liberdade e ainda assim se sentir livre. É sinal de que ela já se desprendeu da principal prisão, que é a mental, porque as prisões físicas são passageiras, as principais são as mentais e essa ela já conseguiu se libertar”, conta, satisfeito.