Reforma Tributária – Uma “reforma” superficial e perigosa

12/03/2008, às 9:26 | Tempo estimado de leitura: 14 min
Por Evilásio Salvador, assessor de Política Fiscal e Orçamentária do Inesc

Le Monde Diplomatique

Embora simplifique a arrecadação e combata a guerra fiscal, a mudança no sistema de impostos proposta pelo governo é uma oportunidade perdida. Ela evita promover, via tributos, a redistribuição de renda – e pode abrir caminho para o fim de conquistas históricas relacionadas à Seguridade Social

 

Evilásio Salvador

O governo enviou ao Congresso Nacional, por meio de Proposta de Emenda Constitucional (PEC), novo projeto de reforma tributária. Seu objetivo seria simplificar o sistema de impostos, eliminando alguns deles e acabando com a “guerra fiscal” entre os estados. Contudo, perde-se mais uma chance de debater princípios tributários inscristos na Constituição: em especial, a eqüidade, a progressividade e a capacidade contributiva. Ou seja, evita-se o caminho da justiça fiscal e social — um importante instrumento para a redistribuição da renda e a erradicação da pobreza sempre evitado pelos mais favorecidos. Há um aspecto ainda mais problemático: a “reforma” pode minar as bases do Orçamento da Seguridade Social. É ele que tem garantido a efetivação dos direitos relativos à Previência, Saúde, e Assistência Social alcançados na Constituinte, e parte da modesta redução de desigualdade ocorrida nos últimos anos.

Os principais pontos da proposta de “reforma” tributária são:

a) a criação de um Imposto sobre Valor Adicionado (IVA-F), com a extinção de cinco tributos federais (a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social – Cofins; a Contribuição para o Programa de Integração Social – PIS; a Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico incidente sobre a importação e a comercialização de combustíveis – CIDE; e a contribuição social do salário-educação);

b) a incorporação da Contribuição Social do Lucro Líquido (CSLL) ao Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas (IRPJ);

c) a redução gradativa da contribuição dos empregadores para a Previdência Social, a ser realizada nos anos subseqüentes da reforma e definida em projeto de lei a ser enviado ao Congresso 90 dias após da promulgação da PEC;

d) a unificação da legislação do Imposto sobre Circulação de Mercadoria e Serviços (ICMS), a ser realizada por meio de lei única nacional e não mais por 27 leis das unidades da federação;

e) a criação de um Fundo de Equalização de Receitas (FER), para compensar eventuais perdas de receita do ICMS por parte dos estados;

f) a instituição de um Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional (FNDR), permitindo a coordenação da aplicação dos recursos da política de desenvolvimento regional.

O principal objetivo da reforma é simplificar a legislação tributária — tanto por meio da redução das legislações do ICMS, quanto pela eliminação de tributos, trazendo maior racionalidade econômica e amenizando as obrigações suplementares das empresas com custos de apuração e recolhimento de impostos. Além disso, a cobrança do ICMS no estado de destino da mercadoria deverá eliminar a “guerra fiscal”.

Do ponto de vista técnico, há racionalidade. Há medidas para evitar a guerra fiscal e se reduz a burocracia com recolhimento de impostos. Mas os tributos continuam transferidos ao consumidor

A criação do IVA-F vai reduzir a cumulatividade do sistema tributário. Hoje a CIDE-Combustíveis e parte da arrecadação da Cofins e da Contribuição para o PIS são cobradas diversas vezes sobre um mesmo produto – isto é, em todas as etapas de produção e circulação da mercadoria. O IVA-F vai tributar apenas o valor adicionado em cada estágio da produção e da distribuição. Assim, o tributo incidirá sobre a diferença entre o preço de venda do produto e o custo da aquisição, nas diversas etapas da cadeia produtiva. Embora mais adequado, o novo modelo não corrige uma distorção típica dos tributos indiretos: eles são quase sempre repassados ao preço final do bem ou serviço, sendo pagos, portanto, pelo consumidor final.

Aliás, o governo deveria aproveitar a oportunidade para regulamentar o Art. 150, § 5º, da Constituição. Diz ele: “A lei determinará medidas para que os consumidores sejam esclarecidos acerca dos impostos que incidam sobre mercadorias e serviços”. Trata-se de uma importante conquista, que pode assegurar maior transparência na arrecadação dos tributos. Sua efetivação, contudo, tem sido sistematicamente adiada.

A proposta de reforma traz avanços para as empresas, com a simplificação do recolhimento tributário. É algo que pode resultar no aumento da eficiência econômica e da produtividade. Porém, a marca principal do sistema tributário brasileiro, que é a sua enorme regressividade, permanece indelével.

Para começar a corrigi-la, o governo poderia abrir, entre a sociedade, um debate sobre os impostos que incidem sobre o patrimônio. Convém lembrar que as 5 mil famílias mais ricas do Brasil têm em patrimônio algo em torno de 40% do PIB brasileiro [1]. Ainda assim, a arrecadação de tributos sobre o patrimônio é insignificante: eles responderam, em 2007, por apenas 3,3% do montante arrecadado. A proposta de “reforma” tributária silencia sobre o assunto.

Outra implicação importante da “reforma” diz respeito ao financiamento da Seguridade Social. Os três mais importantes tributos que a financiam no Brasil serão modificados. A Cofins e a CSLL serão extintas; e haverá desoneração da contribuição patronal sobre a folha de pagamento. Para a Seguridade, passam a ser destinados 38,8% do produto da arrecadação dos impostos sobre renda (IR), produtos industrializados (IPI) e operações com bens e prestações de serviços (IVA-F). Em teoria, não há perdas: esse percentual corresponde exatamente ao percentual que os impostos vinculados à Seguridade (Cofins e CSLL) representaram em relação à receita tributária obtida por meio de uma cesta mais ampla de tributos (onde se incluem IR, Cofins, PIS, CIDE, Salário-educação e IPI).

Os grandes desafios da sociedade civil: evitar a diluição do orçamento próprio da Seguridade Social, assegurar as conquistas da Constituinte, retomar a idéia de Justiça Tributária

Em termos políticos, a mudança é grave. Um dos maiores avanços da Constituição, em termos de política social, foi a adoção do conceito de Seguridade Social, englobando em um mesmo sistema as políticas de Saúde, Previdência e Assistência Social [2]. Para assegurar a manutenção desta Seguridade ampliada, a Constituição multiplicou também as fontes de seu financiamento O artigo 195 estabeleceu que elas deveriam incluir, além dos aportes dos empregados e empregadores, os recursos provenientes das contribuições sociais sobre o lucro, a receita, o faturamento, a importação de bens e serviços e a receita de concursos de prognósticos (loterias).

Este princípio da diversidade das bases de financiamento da seguridade social estará em risco, caso a “reforma” seja aprovada na versão proposta pelo Executivo. Restarão inscritos no Artigo 195, como bases de financiamento da seguridade social, a contribuição sobre a folha de salários, a contribuição do trabalhador para a Previdência Social e a receita de loterias — sendo que a contribuição sobre folha de pagamento deverá ser reduzida, ao longo dos próximos anos. A idéia de orçamento de Seguridade Social diversificado em fontes de financiamentos retroagirá à situação de antes da Constituinte. Haverá perda da exclusividade de recursos para a Seguridade Social, que poderá ficar fragilizada em seu financiamento, dependendo de uma partilha do IVA-F e da arrecadação das contribuições previdenciárias.

A reforma tributária reforça ainda mais uma idéia em vigor desde a fusão do fisco, que resultou na criação Secretaria da Receita Federal do Brasil (SRFB). Sustenta-se que o orçamento da União é único, desconhecendo a existência do orçamento específico da Seguridade Social. A lei assegura a destinação das contribuições previdenciárias para o pagamento dos benefícios previdenciários, creditados diretamente no Fundo do Regime Geral de Previdência Social sob a gestão pelo INSS (art. 5º, inciso II). Mas a criação da SRFB transferiu a competência de cobrar a contribuição previdenciária sobre a folha de pagamento do ministério da Previdência para o da Fazenda.

Mesmo que seja garantido um repasse à seguridade social, com base em parte do orçamento fiscal, deixarão de existir as receitas próprias da Seguridade Social, alocadas em orçamento exclusivo, como determina Constituição. Com o tempo, a noção de separação da Seguridade Social vai-se desvanescer – o que poderá facilitar políticas de redução (“flexibilização”) de direitos, defendidas por diversas correntes políticas.

Evitar este retrocesso será, provavelmente, a principal batalha dos movimentos sociais, na tramitação da nova “reforma” tributária. Mas a sociedade civil não pode ficar apenas na defensiva. Por isso, a coluna debaterá, na próxima edição, os caminhos para criação de princípios de justiça tributária no Brasil.

Mais

Evilásio Salvador é colunista do Caderno Brasil de Le Monde Diplomatique. Edição anterior da coluna:

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Como a Desvinculação de Receitas da União (DRU) desvia todos os anos bilhões de reais da Saúde, Educação e Previdência e os transfere para os mercados financeiros. Radiografia de um mecanismo que a mídia interesseiramente esconde

CPMF: muito além dos clichês
Às vésperas decisão do Congresso, uma análise em profundidade sobre o papel do tributo. Por que é regressivo. Qual sua importância no combate à sonegação. E o principal: como iniciar a construção de um sistema de justiça fiscal no país. Nova coluna do Diplô tratará permanentemente do tema

[1] Conforme POCHMANN, Marcio et al (Orgs). Os ricos no Brasil. São Paulo: Cortez, 2004

[2] BOSCHETTI, Ivanete. SALVADOR, Evilásio. “Orçamento da Seguridade Social e política econômica: perversa alquimia”. Serviço Social e Sociedade. São Paulo, v. 87, 2006, p. 25-57.

Categoria: Artigo
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