As eleições presidenciais de 2022 estão eivadas de tensões e contradições. Se por um lado não há dúvidas para o campo democrático e popular que urge tirar Jair da presidência da República, por outro a alternativa politicamente viável que se apresenta tem chances diminutas de promover mudanças que resultem em processos verdadeiramente equitativos e inclusivos. Mais do que nunca, nós, organizações e movimentos sociais, temos que nos unir e pensar o futuro com esperança e utopias para encontrar formas econômicas, sociais, culturais e políticas que retomem, fortaleçam e ampliam um pacto social baseado na solidariedade e na igualdade.
A deliberada política de terra arrasada
O Brasil de 2022 está mergulhado em crises há alguns anos, que foram agravadas pela pandemia da Covid-19, especialmente em função do projeto de “terra arrasada” implementado pelo governo Bolsonaro. Na década de 2010, chamada por muitos de “perdida”, o PIB per capita caiu 0,6% ao ano em média, segundo informações do Ibre/FGV, um dos piores resultados dos últimos cem anos.
A esse quadro se somam as consequências dramáticas do Sars-Cov-2, que levou mais de 670 mil pessoas, sendo que a maior parte desses óbitos poderia ter sido evitada se o governo federal tivesse agido à contento. Além dessas mortes, que deixaram milhares de famílias e crianças desamparadas, o país mergulhou num pântano de desesperos. O crescimento do desemprego, subemprego, desalento e da informalidade, o agravamento da precarização das relações de trabalho e a queda da renda resultaram no aumento da pobreza e da fome. Atualmente o país convive com um contingente de 33 milhões de pessoas que vivem em situação de insegurança alimentar e nutricional grave. Isso corresponde a um aumento de 73% em apenas dois anos e equivale a toda a população do nosso vizinho Peru.
A questão ambiental também ganhou proporções dramáticas, uma vez que nossos biomas estão em chamas e muito pouco tem sido feito para coibir essa destruição em massa. Além disso, a disputa por terra e territórios liderada por mega obras de infraestrutura, por grandes empresas do agronegócio e da mineração e por empreendimentos ilegais de madeira e garimpo, entre outros, tem resultado na escalada da violência contra os povos das florestas, das águas e do campo, contra defensores de direitos humanos e contra jornalistas.
Desde o golpe de 2015 que tirou Dilma Rousseff da presidência da República, os governos Temer e Bolsonaro puseram em marcha uma verdadeira operação de desmonte das políticas públicas federais e de suas instituições, o que contribuiu para diminuir a cobertura e piorar a qualidade dos serviços públicos prestados à população. Dados e análises do Inesc revelam o desfinanciamento de diversas ações da União no período 2019-2021 acompanhado, em grande medida, de assédio institucional aos servidores públicos que atuam cumprindo suas funções de promoção de direitos humanos[1].
A tentativa de golpe
A esse desmantelamento das instituições públicas federais se associa uma instabilidade política permanente. O presidente Bolsonaro e seus aliados estão empenhados em difundir suspeitas sem comprovação sobre a lisura do sistema eleitoral brasileiro. Para tanto, vêm lançando sucessivas ofensivas contra o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) contando, inclusive com o envolvimento de integrantes das Forças Armadas. Além disso, o discurso de ódio estimulado por Jair e sua entourage tem resultado em violência política. O caso mais recente é o do brutal assassinato de um guarda municipal petista, Marcelo Arruda, por um policial penal federal bolsonarista no Paraná, em 09 de julho.
É nesse quadro explosivo que Bolsonaro gesta um golpe. No século XXI não é preciso aguardar por tanques nas ruas para que a democracia seja assassinada. O golpe acontece sempre que se questiona as regras do jogo, quando se tenta sistematicamente destruir as instituições do Estado Democrático de Direito, quando se mina a confiança da população no sistema eleitoral, quando se ataca a legitimidade da oposição ou a liberdade de imprensa. E tudo isso é a realidade no Brasil.
O golpe vem sendo preparado em plena luz do dia, e só não se sabe ainda se será consumado antes ou depois da abertura das urnas, a depender do cenário desenhado pelas pesquisas eleitorais. Uma coisa é certa: Bolsonaro e os militares já deixaram claro que não admitem largar o poder por nada nesse mundo. O voto popular para eles é apenas um mero e desprezível detalhe.
A aliança esquerda-direita para ganhar as eleições
Com o intuito de ganhar as eleições, se possível no primeiro turno, Lula, do Partido dos Trabalhadores e o candidato favorito nas intenções de voto, vem costurando uma ampla aliança esquerda-direita. Se, por um lado, a parceria com Alckmin quebra resistências em setores até então críticos ao petista, por outro, se as urnas lhe derem a presidência da República, corre-se o risco de um ganho essencialmente simbólico, pois os responsáveis pelos processos de espoliação e exclusão permanecem no poder.
Essa aliança é sobretudo masculina e de alma branca.
Dificilmente, em caso de vitória, será possível implementar medidas efetivamente transformadoras nas áreas econômica, cultural, social, ambiental e climática. Pouco provavelmente essa aliança poderá em quatro anos debelar as principais mazelas que afligem grande parte da população brasileira como as desigualdades extremas, a pobreza, a fome, o racismo, o sexismo e o patriarcado, além das interseccionalidades dessas múltiplas opressões. As promessas não cumpridas poderão resultar na volta da extrema direita, dessa vez mais fortalecida.
A extrema direita fortalecida
Ainda que o resultado do pleito eleitoral não esteja dado, existem fortes possibilidades de vitória do Lula. Contudo, o bolsonarismo vai ficar, pois o voto no Bolsonaro não é para rejeitar “algo pior”, é um voto orgânico, de cerca de 30% da população que expressa a presença de ideias fascistas na sociedade brasileira. Essas ideias, que de alguma forma estavam contidas por conta do processo de redemocratização, foram “liberadas” por Bolsonaro.
Essa parcela da população cultua valores antidemocráticos, autoritários e violentos e trabalha com um forte sentimento de indiferença e falta de empatia em relação as outras pessoas que não são de seu grupo – não há qualquer tipo de indignação diante de mais de 670 mil mortes por Covid-19 ou dos 33 milhões de pessoas passando forme ou, ainda, de crianças estupradas e mortas.
São organizados e estratégicos. Souberam utilizar de forma eficiente o universo digital com mecanismos de desinformação e de mentiras, sem qualquer preocupação com valores éticos ou morais. E, encontram eco na sociedade. A pesquisa Cara da Democracia no Brasil, realizada pelo Instituto da Democracia e da Democratização da Comunicação, fornece pistas para tentar compreender mudanças no comportamento, nas atitudes, nas crenças e valores dos cidadãos brasileiros com relação à democracia, temas que dominam o debate público desde a eleição de Jair Bolsonaro, como legalização do aborto, descriminalização das drogas e direitos das chamadas minorias.
De acordo com a pesquisa, no Brasil, o dobro dos indivíduos se diz mais à direita do que à esquerda no espectro político. E mais: é grande o número de pessoas que acreditam em teorias da conspiração. Para 20% dos entrevistados a Terra é plana; 21% estão convencidos que a cloroquina cura a Covid-19; e, 27% não acreditam que o ser humano pisou na lua. No aspecto “ideológico” das conspirações, os números são ainda maiores pois, 49% acreditam que a China criou o Sars-Cov-2 e uma das teorias mais difundidas pelo bolsonarismo, o globalismo (ideia de que a globalização econômica passou a ser controlada pelo “marxismo cultural”), é acolhida por 44% dos entrevistados, que entendem que há uma conspiração global da esquerda para tomar o poder no mundo.
O bolsonarismo explora e alimenta essas sinistras ideias e conspirações se apoiando em setores religiosos e ultra conservadores. Este é o caso de um grande número de evangélicos e católicos representados por líderes políticos e influenciadores digitais nada cristãos, além de um grande contingente, independentemente de classe social ou nível de escolaridade, que lê cada vez menos, interpreta cada vez menos e tem nas mídias sociais digitais sua única fonte de informação. As pessoas, em busca de acolhimento, reconhecimento e alguma explicação para seus crescentes anseios, parecem cada vez mais presas e hipnotizadas. As redes sociais digitais conectaram pessoas com interesses em comum, inclusive os mais negativos.
Assim, mesmo derrotando o atual presidente nas urnas, esse grupo extremista e seus métodos continuarão atuando na esfera pública, buscando provocar uma ruptura no sistema democrático. Estas pessoas não estão mais escondidas e suas táticas são debatidas, em âmbitos nacional e internacional, em conferências, artigos, livros e documentários, sendo cada vez mais difícil de abalar ou desconstruir. Como escreveu Marcos Nobre no livro Limites da Democracia “perdendo ou ganhando a eleição em 2022, o bolsonarismo já ganhou. Derrotá-lo será tarefa para muitos anos”.
A luta por projetos emancipadores
A vitória do Lula em outubro de 2022 trará muitos desafios porque a aliança política construída para derrotar Bolsonaro envolve setores pouco afeitos a profundas transformações sociais. Além do mais, o contexto nacional e internacional não é promissor tendo em vista as consequências sociais e econômicas da Covid-19 e do conflito na Ucrânia, que resultam em inflação alta, desemprego e fome.
Com isso, nós, organizações e movimentos sociais do campo democrático e popular precisaremos doravante atuar em diversas frentes para de fato contribuir para criar um horizonte de mudança e de ruptura. Antes de mais nada, lutar para eleger Lula no primeiro turno e tirar Bolsonaro da presidência da República. Pressionar fortemente, por meio de grandes mobilizações e de propostas populares, os poderes públicos para que atuem na realização progressiva dos direitos humanos para, além de “incluir os pobres no orçamento”, como não cansa de repetir o candidato Lula, pôr o povo no Estado. Multiplicar e visibilizar iniciativas transformadoras como contraponto à um modelo econômico que expolia e expropria. Aperfeiçoar estratégias culturais de disseminação de valores emancipadores, inclusivos e democráticos, talvez ressignificando o uso maciço das mídias digitais……
[1] A esse respeito, ver estudo do Inesc realizado em parceria com a Ina sobre a Funai: https://inesc.org.br/fundacao-anti-indigena-um-retrato-da-funai-sob-o-governo-bolsonaro/