Um relato sobre o Fórum Social Mundial 2013 na Tunísia

08/04/2013, às 11:50 | Tempo estimado de leitura: 9 min
Diana Orrico, da Rebrip, fala, em artigo, sobre o Fórum Social Mundial, que foi sediado na Tunísia. Ela aborda o significado da escolha do país, a cultura do local e traz um retrato das discussões que foram realizadas durante o Fórum.

O Fórum Social Mundial 2013 aconteceu na última semana de março na Tunísia, dois anos depois que a Primavera Árabe começou nesse pequeno país do norte da África, aproximando o movimento global anti-capitalista das lutas revolucionárias da região. Apesar das apreensões com o clima político instável pouco mais de um mês depois do assassinato do líder do Movimento dos Patriotas Democratas e da coligação Frente Popular, Chokri Belaïd, e em um país ainda em processo de profunda transformação, do ponto de vista organizativo o FSM foi exitoso, com algumas poucas dificuldades – que perto dos problemas de infra-estrutura de Dakar ou Belém não merecem menção.

Internet sem fio livre em todo o campus, restaurante universitário bom e barato, ônibus barato levando as pessoas do Fórum até o centro… quem foi às edições de Porto Alegre nunca viu algo assim.

Tunis surpreende e não cabe em lugares-comuns. Mulheres vestidas de maneira ocidentalizada convivem lado a lado com mulheres cobertas por véus negros. Um sistema de tram um pouco depredado, mas barato e eficiente, cobre toda a cidade de 2 milhões e meio de habitantes. Táxis em abundância podem resultar em uma conversa simpática sobre a situação política do país e os jogadores de futebol brasileiros ou em uma disputa desagradável pelo preço. Na minha condição de mulher claramente estrangeira, passei por situações desconfortáveis em momentos que estava desacompanhada fora do campus, mas na maioria das vezes contei com a gentileza local e a vontade de todas e todos em falar sobre o processo revolucionário em curso.

Em conversas assim, aprendemos que a queda de Ben Ali não representou a tomada do poder pelas forças revolucionárias, mas sim a transição de uma ditadura militar para uma ditadura civil de forte cunho islâmico, em muitos sentidos mais agressiva que a anterior e que tem gerado apreensões quanto à situação das mulheres do país. Mas as pessoas vivem em um misto de medo e de esperança de mudança. As “músicas da revolução” – referentes da mística da Primavera Árabe – foram cantadas catarticamente  pela multidão presente na Assembleia dos Movimentos Sociais no final do Fórum. Também em festas se dança e canta ao som destas. A principal praça da cidade teve seu nome mudado para 14 janvier 2011, data marco do processo atual. A revolução não é algo que já foi, é algo que está sendo, segue viva.

As lutas dos povos da região como a do povo Palestino contra a ocupação israelense criminosa e a solidariedade de todas e todos com xs palestinxs foram constantemente expressas. O embate entre os povos do Saara Ocidental que lutam pela autonomia em relação ao resto do Marrocos e xs nacionalistas marroquinos gerou fortes tensões enquanto se leía a declaração final da Assembleia dos movimentos sociais. Conflitos entre os apoiadores do ditador sírio Assad e dos apoiadores das forças de resistência também geraram situações de violência no campus.

Se por um lado sentimos falta de maior presença dos povos da região em algumas atividades, em outros espaços eles estiveram absolutamente no centro: importante mencionar a Assembleia das mulheres que abriu o Fórum expressando a força das mulheres da região e seu papel na Primavera Árabe.

Inaceitável foi o fato da organização local exigir crachás para entrada no campus, elitizando o acesso da população local, o que felizmente não conteve a entrada das pessoas. No entanto, isso gerou acusações por parte de alguns locais – com especial apoio dos “ocupa” e “indignados” presentes – de que este seria um “Forum du capital”.  Isso, associado ao fato já recorrente da presença ostensiva de algumas empresas transnacionais no Fórum, impõem a necessidade urgente de reafirmar princípios claros, rejeitando a mercantilização do espaço que deve ser acima de tudo de autonomia dos movimentos sociais, território livre de transnacionais, e com participação não mediada monetariamente. O Fórum não deixa de ser um espaço contraditório e em disputa, embora ainda centralmente um espaço de construção coletiva anti-sistêmica.

Este foi também o primeiro FSM com presença dos movimentos “ocupa” europeus e americanos (incluindo os “indignados” espanhóis), que emergiram no contexto da crise com forte referencia nas lutas árabes, especialmente na praça Tahir egípcia. Com um forte enfoque em metodologias “horizontais”, estes “novos” movimentos fizeram assembleias ao ar livre para discutir o Fórum. Em diversas atividades do Fórum, alguns “ocupa” interviram com críticas às metodologias “engessadas” das sessões dos movimentos “tradicionais” que não conduziriam a fóruns abertos de construção coletiva. Muitos desafios que estes “novos” movimentos propõem devem gerar efetiva reflexão e nos fazer repensar criticamente como nos organizamos. Por outro lado, os “ocupa” têm sido pouco abertos a reconhecer a história de lutas dos movimentos organizados que os precederam e que continuam sendo as plataformas das lutas mais expressivas, ao menos no Sul global. Com uma certa obsessão pela “horizontalidade” – que podem gerar discussões longas até se alcançar consenso sobre as questões organizativas mais simples, desmobilizando a energia dos participantes – os “ocupa” encontram limites claros na falta de vontade de abrir mão de expressar sempre posições políticas individuais em prol de bandeiras coletivas. De certa forma, representam uma reemergência do anarquismo no Norte global e ainda se mantêm muito restrito às classes médias que têm acesso às novas tecnologias, recurso fundamental em suas lutas. Neste sentido, os movimentos “tradicionais” organizados que resistem por anos têm muito a ensinar a esses movimentos, que têm se diluído em apenas pouco mais de dois anos de vida. Acima de tudo, é necessário um aprendizado mútuo e a construção de fortes alianças, afinal para construir alternativas necessitamos das diversidades das lutas anti-capitalistas existentes no mundo.

O Fórum Social Mundial 2013 em Tunis foi um êxito por expressar tão enfaticamente essas reflexões e por fortalecer os laços entre os movimentos da região e os movimentos mais “globalizados”. E isso em um contexto onde se debate mais do que nunca o futuro (ou não) do Fórum é ainda mais relevante. Ainda temos que ser mais efetivos em partir do diálogo para ações e mobilizações comuns, apesar das tentativas da Assembleia dos Movimentos Sociais nesse sentido. Mas arrisco a dizer que quem foi a Tunis partiu nostálgicx com a sensação de ter participado de um momento histórico na construção de convergências de lutas. Vive la Tunisie!!

Diana Orrico, da Rebrip

Categoria: Artigo
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