20 anos do ECA: 20 anos de labuta

12/07/2010, às 15:23 | Tempo estimado de leitura: 7 min
Por Márcia Hora Acioli, assessora do Inesc

Márcia Hora Acioli – Assessora do INESC

 

Há um pouco mais de vinte anos, o Brasil ainda vivia sob a égide da ditadura militar e o povo ocupava as ruas pela democracia com foco nas eleições diretas e na necessidade de uma nova Constituição Federal, processo chamado de Constituinte. Uma verdadeira ebulição política.

Na época os grupos de extermínio que eliminavam meninos e meninas pobres operavam impunemente. O massacre era escandaloso. A justificativa implícita era defender o patrimônio dos comerciantes. Ou seja, meninos e meninos pobres eram considerados ameaça pública. Para piorar as coisas, a lei vigente, o Código de Menores baseava-se na doutrina da Situação Irregular, que responsabilizava a própria criança ou adolescente pelo abandono em que se encontrava. Permitia o simples recolhimento dos/as que estivessem “perambulando” nas ruas, atribuindo a eles/as a responsabilidade pela situação em que se encontrava. Portanto, a lei tinha destinatários específicos que eram os/as pobres, evidentemente, a maioria negra. Noutras palavras, o Código de Menores punia, os já punidos pelo destino.

Mais do que novas leis, o país precisava inaugurar novas formas de ver, considerar e governar crianças. O Estatuto da Criança e do Adolescente / ECA foi concebido neste contexto. Foi escrito com milhares de colaboradores/as, além das próprias crianças e adolescentes.

Não há como negar que o ECA é uma das leis mais bem fundamentadas do Brasil. Trouxe a idéia inédita de crianças e adolescentes como sujeitos de direitos em situação peculiar de desenvolvimento, sendo portanto, prioridade na elaboração de políticas públicas. No artigo 4º o ECA explicita a importância da destinação privilegiada de recursos para a realização das políticas garantidoras de direitos. O ECA ainda trouxe a perspectiva de descentralização do poder fortalecendo a cultura democrática, ainda frágil à época. A participação da sociedade nos Conselhos Tutelares e nos Conselhos de Direitos, instâncias locais zeladoras de direitos, garantia maior distribuição do poder. O novo marco legal deixa de ser uma lei para punir crianças pobres para ser uma que defende direitos de todas. A partir de então, se há uma criança vivendo nas ruas, sabe-se que falharam o Estado, a sociedade e a sua família simultaneamente.

Pois bem, o Brasil comemora no dia 13 de julho de 2010 o aniversário de 20 anos deste novo marco legal. O ECA é uma referência histórica que exigiu uma nova cultura política, uma ampla revisão na forma de elaborar as políticas públicas que deveriam passar a ser concebidas à luz deste conjunto de idéias.

As mudanças foram muitas, no entanto, soam ainda como um ensaio geral para a uma mudança mais importante. A realização plena dos direitos não permite brechas entre uma política e outra, entre um direito e outro. Quando a política pública não é universalizada (não chega a todos), e/ou quando o conjunto das políticas é fragmentado não se efetiva a Proteção Integral que significa todos os direitos para todas as pessoas, o tempo todo, em qualquer lugar.

Como resultado da distância entre o que está escrito na lei e o acesso ao direito, as populações mais jovens ainda carregam o pesado fardo da culpa pela precária situação em que se encontram. A sociedade conservadora não mudou e insiste em atribuir a elas a responsabilização seja pela própria ‘desocupação’, ou pela violência urbana. Neste cenário as pessoas ainda são tratadas conforme a cor da pele e as mulheres vistas como seres de segunda categoria. É importante compreender que, assim como os direitos são interdependentes e a realização de um implica na realização de outros tantos direitos, quando há uma violação de direitos, ocorre também em uma série de violações subseqüentes.

Arautos da ordem estabelecida usam todos os meios para tentar convencer que o ECA é uma lei inadequada. Há interesses diversos e ideologias por trás deste esforço. Certamente não são os mesmos dos que defendem uma sociedade mais justa. Muitos daqueles que acham nobre o trabalho de crianças ficaram ricos às custas da exploração do trabalho infantil (quase escravo), assim como os que querem ver reduzida a idade penal não pensam na prevenção da violência, mas na ‘limpeza urbana’.

Falar de cidadania das populações mais jovens é um enorme desafio em uma sociedade de maioria conservadora em que os direitos de muitos são preteridos em nome dos privilégios de pouquíssimos.

Com uma idade mais madura a lei ainda custa a se efetivar na íntegra para todas as crianças e adolescentes do país. A sociedade desigual promove diferentes acessos ao direito que é universal. As mudanças acontecem aos poucos e dependem de muitos fatores como trabalho digno para as famílias, educação de qualidade, esporte, cultura, formação profissional, moradia decente e lazer na própria comunidade, mas sobretudo, de concepção política e gestão pública ética e competente.

É importante reconhecer os avanços, que não foram poucos, mas é preciso atenção redobrada para defender a lei que vive ameaçada por aqueles que ainda não entendem que uma sociedade que permite a violência contra crianças e adolescentes é uma sociedade que padece de uma doença grave.

Categoria: Artigo
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