Visibilidade Trans 2019: resistências necessárias

29/01/2019, às 14:17 (atualizado em 16/03/2019, às 22:56) | Tempo estimado de leitura: 7 min
Por Carmela Zigoni, assessora política do Inesc
Apesar dos retrocessos, o Dia da Visibilidade Trans está vivo e presente para reafirmar a existência de cidadãs e cidadãos trans e travestis, brasileiros e brasileiras, que continuarão a lutar por uma sociedade mais justa, inclusiva, diversa...e menos triste.

Em 2019, o Dia da Visibilidade Trans parece ganhar mais importância do que nunca no Brasil. Se já éramos o país que mais mata pessoas trans e travestis do mundo, pelo menos contávamos com o reconhecimento pelo Estado da necessidade de atuar para reverter este quadro por meio de políticas públicas.

No dia 2 de janeiro, sem o menor pudor, o presidente Jair Bolsonaro assinou a Medida Provisória 870, que não menciona a população LGBTI das diretrizes do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. No dia 10 de janeiro, o Ministério da Saúde retirou de sua página oficial a cartilha de saúde dos homens trans, uma publicação voltada para um público com pouquíssimo acesso à saúde especializada – existem somente 11 ambulatórios voltados para a população trans no país.

Ainda que o novo governo tenha mantido estruturas já existentes, como a Diretoria de Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, vinculada à Secretaria Nacional de Cidadania e o Conselho Nacional de Combate à Discriminação, A MP torna invisíveis os LGBTI, já que outros públicos atendidos pelo Ministério estão citados, como as mulheres, idosos, crianças, adolescentes e jovens, pessoas com deficiência e indígenas. A MP 870/19 tem validade desde sua publicação, e deverá ser aprovada pelo Congresso Nacional ainda em fevereiro, sendo que o texto poderá sofrer mudanças por meio de emendas parlamentares.

De acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais – ANTRA, no ano de 2018 foram 163 assassinatos. São mortes sempre cruéis, com presença de tortura, e até mesmo filmagens que são postadas nas redes sociais. Essas vidas brutalmente ceifadas carregam uma simbologia que reforça a exclusão e a discriminação – pois é ao mesmo tempo o extermínio de uma pessoa, de um corpo, mas também uma mensagem social de não aceitação da diferença.

Durante o período eleitoral, assistimos aos discursos de candidatos, políticos e religiosos de vertente conservadora exacerbando a masculinidade violenta, e, ao mesmo tempo, foram registradas diversas denúncias de ataques a pessoas trans e travestis. O que se anunciava com o retrógrado projeto “Escola sem partido”, baseado no fim de algo que nunca existiu, a saber, a “ideologia de gênero”, culminou em um enorme esquema de divulgação de fake news (notícias falsas) ainda sem uma resposta dos Tribunais Eleitorais sobre quem produziu e disseminou esses conteúdos.

A autorização social para a violência, apoiada no machismo e no racismo estruturais de nossa sociedade, ganha legitimidade como política de Estado na medida em que vão sendo publicados atos pelo poder Executivo – sem diálogo com a sociedade – que suprimem direitos ou impõem novas políticas que podem resultar em mais violência com base nas discriminações de gênero.

Da “bela, recatada e do lar”, evoluímos em apenas 2 anos para o modelo de família onde o homem é o centro da sociedade, tendo o direito ampliado à posse de armas com objetivo de proteger seu “patrimônio”, incluídos aí não só os bens materiais, mas também as mulheres e as crianças, vistas não como seres humanos autônomos, mas como suas propriedades. Aprovada por meio de decreto, a ampliação da posse de armas é mais um ato no “pacote de violência” do novo governo, em um país onde mais da metade dos feminicídios são cometidos por arma de fogo. Na primeira semana do ano, os “príncipes vestidos de azul” já tinham assassinado 21 mulheres, dado que pode ter chegado a mais de cem tentativas de feminicídio até o dia 29 de Janeiro. Neste mesmo país, o único parlamentar homossexual assumido, Jean Wyllys, reeleito com 24 mil votos pelo Rio de Janeiro, desistiu da legislatura por temer ser assassinado e decidiu deixar o Brasil. As mensagens recebidas por ele e publicadas na mídia demonstram a forte misoginia e homofobia social: são recorrentes as ameaças de estupro.

O Dia da Visibilidade Trans surgiu em 2004, quando travestis, mulheres e homens trans entraram no Congresso Nacional para lançar a campanha “Travesti e respeito”. Desde então, foram muitas conquistas dos movimentos sociais pela saúde e despatologização, por promoção de políticas voltadas para inserção no mercado do trabalho e por mais presença em espaços de poder. Em 2018, o Tribunal Superior Eleitoral reconheceu o direito ao nome social para as candidaturas, e foi eleita em São Paulo a deputada estadual Erika Malunguinho – mulher, negra e trans.

Se o governo tem como diretriz “Deus acima de todos” e uma ministra que se declara “terrivelmente cristã”, trata-se de uma teocracia, não de uma democracia. Estamos sob a mira de quem não respeita o Estado laico e a Constituição Federal. Estamos nos referindo, portanto, à cumplicidade do Estado na violação de direitos humanos. Mas o 29 de janeiro – Dia da Visibilidade Trans – está vivo e presente para reafirmar a existência de cidadãs e cidadãos trans e travestis, brasileiros e brasileiras, que continuarão a lutar por uma sociedade mais justa, inclusiva, diversa…e menos triste.

 

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Categoria: Artigo
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