Impressões sobre a Cúpula Social de Cochabamba

01/01/1970, às 0:00 | Tempo estimado de leitura: 17 min
Por Iara Pietricovsky, membro do colegiado de gestão do Inesc

A Cúpula Social pela Integração dos Povos foi uma das reuniões da sociedade civil organizada mais interessantes, coloridas e politicamente construtivas. Reuniu, em especial, a América do Sul, mas com ampla presença latino-americana, além de representantes europeus, norte-americanos e, em menor escala, asiáticos. Não sei se houve representação da África, a conferir. O mais interessante é que pela primeira vez os grupos e movimentos ali reunidos não estavam se preparando para se opor ou protestar nas ruas contra a Conferência da Comunidade Sul-Americana de Nações – CASA.

 

Mas, olhando para o conjunto das organizações e movimentos sociais da América do Sul, que era o objetivo primeiro desta reunião, ficou evidente a riqueza política, a consciência de que se está gestando algo novo no cenário político regional e, por conseqüência, novas provocações e possibilidades para as nações da região. Países, com diferentes dinâmicas sociais, políticas e históricas. Em comum, a permanente exploração e expropriação de seus recursos naturais e humanos. Integraram-se ao mundo como periferia do capitalismo.

 

A Conferência trouxe a evidência de como uma dada realidade nacional pode interferir e ajudar na politização de outro espaço nacional. A Bolívia, sede do encontro, tem sido um dos países mais fortes na referência política dos movimentos sociais, organizações não-governamentais e de parlamentares do campo da esquerda progressista. Ela vem politizando de uma maneira inédita e renovada toda a região e inspirando o mundo.

 

Juntaram-se, de forma concentrada nas mais de três mil pessoas representando organizações da sociedade civil atuantes em diferentes campos e temas, movimentos camponeses, de mulheres, indígenas, Gays, Lésbicas, Bissexuais e Transgêneros – GLBTs, aliás com uma visibilidade fantástica ao lado dos Quéchuas e Aimaras da Bolívia e Equador; Guaranis, do Paraguai; Mapuches, do Chile e, para acrescentar, os camponeses da Via Campesina, organizações de pequenos agricultores familiares. Faltaram os indígenas do Brasil? Um colorido, uma diversidade e uma beleza humana de tal força e energia que poucas vezes foram experimentadas nos vários Fóruns mundiais desde o Fórum Social Mundial em Porto Alegre até a Cúpula Social de Integração dos Povos que ocorreram em outros espaços do planeta por mim experimentados. Um verdadeiro ato cultural na busca da emancipação, da autonomia, soberania e na construção de caminhos democráticos mais profundos e mais que isso: a construção de uma cidadania sul-americana. Experimentar olhar para nossas faces não européias e admirar sua força e beleza, agilidade e colorido em seu pequeno porte é uma experiência de viver a alteridade, a construção do orgulho de ser cidadão e cidadã latino-americana em oposição ao “branco” que se impôs como padrão de beleza, inteligência e dominação. Que capturou povos e sonhos para impor sua visão de mundo.

 

Os temas fundamentais debatidos se estruturaram em torno do debate da integração. Como criar e pensar a cidadania regional sul-americana? O Instituto Americano, local onde se realizou a Cúpula Social, ficou recheada de gente, de manifestações, debates analíticos, construção de propostas e de estratégias políticas que pudessem ampliar, fortalecer, aprofundar as relações intra e entre regiões.  América do Sul e América Central e Caribe, América do Sul e África.

 

Infra-estrutura, energia com ênfase nos recursos hídricos, migração, emprego, militarização, integração comercial solidária, sustentabilidade ambiental, gênero, povos indígenas, agricultura familiar, entre muito outros temas assinalados e debatidos demonstrando o tamanho da complexidade e diversidade de temas que o eixo integração exige. Como construir novos valores que permitam o desenvolvimento de outra lógica no processo de integração, uma lógica não predatória do meio ambiente, não deletéria das relações entre os povos e que se construa com base em uma complementariedade das cadeias produtivas dos diversos países?

 

Entre vários debates voltados para a discussão da integração foram apresentados alguns pontos que merecem nossa reflexão:

 

1) Existe um consenso que vivemos na região um momento bastante privilegiado para o debate da integração regional, tanto nos espaços da sociedade civil organizada e movimentos sociais como nos espaços governamentais e parlamentos da região.  Entretanto, eles encerram muitos paradoxos e contradições, segundo os vários debates realizados na Cúpula.

 

Percebe-se uma forte tensão entre uma direita conservadora, que quer aprofundamento do modelo existente, e uma outra onda muito forte e inédita que está buscando outros caminhos, outros valores, outra base produtiva e cultural para a região e para o mundo. De um lado, Brasil, Bolívia, Venezuela, Argentina, Uruguai, Equador (mais recente) e Chile liderando, com diferentes matizes e intensidades a chamada nova esquerda e de outro, Peru, Colômbia, Paraguai, entre outros, liderando o aprofundamento conservador e aprofundando relação subalterna aos EUA.

 

Entretanto, este movimento para a centro-esquerda não garante que as propostas e valores demandados pelos movimentos sociais, sindicatos e ONGs do campo democrático progressista sejam efetivamente implementados por esta nova esquerda sul-americana. Ao contrário, as experiências têm demonstrado que mudanças mais estruturais que reduzam a imposição do capital e das grandes corporações sobre nossos governos e, como conseqüência, sobre nossas políticas públicas ainda estão longe de serem vislumbradas. Lula inseriu o combate à pobreza na agenda internacional, Kichner mostrou que é possível enfrentar a lógica do Banco Mundial e FMI, enquanto Chavez vem adotando uma política mais agressiva antiimperialista. A grande novidade está vindo da Bolívia, com Evo Morales na luta pela soberania e autonomia, invertendo a lógica do uso da terra e dos recursos naturais e quem são os beneficiários. Porém todos se posicionando mais coerentes com uma visão de um socialismo de mercado.

 

Do lado da sociedade civil, os grupos se organizam na tentativa de ampliar a consciência cidadã sobre o agravamento da situação econômica e os riscos ambientais determinados pelo atual modelo de desenvolvimento, assim como a fragilidade das instituições democráticas. Procuram romper barreiras e diferenças para ampliar sua capacidade de mobilização e comunicação de massa. Esse parece estar entre os desafios prioritários do movimento anti-globalização econômica. Existe um reconhecimento de uma nova circunstância regional para o debate da integração, porém cheia de incertezas de como fazê-la. Da mesma forma, se reconhece que uma alternativa não nasce de repente, mas de um processo que vai acumulando forças e experiências para produzirem mudanças.

 

 Desta forma um outro desafio prioritário deste debate é sair do espaço da resistência e se tornar propositivo, arriscar posições e alternativas que experimentem outra lógica, não só na elaboração e implementação de políticas inclusivas no âmbito nacional, mas também, na construção de propostas supranacionais que fortaleçam a região de forma solidária e complementar em todos os planos da relação humana e não só a comercial. Foi fundamentalmente disso que se falou em Cochabamba.

 

A região traz, desde a década de 90, um aprofundamento de um modelo de integração baseada na expansão comercial de modelo exportador, com crises sistemáticas que ampliam a competição entre os países, muito mais do que gerando sinergias. Dessa forma, os países entram na competição internacional em conflito uns contra os outros. A ALCA não aconteceu, mas em contrapartida, uma série de Acordos Bilaterais (TLCs) foram firmados pelo Chile, Peru, Colômbia, Uruguai, entre outros, o que produz contradições e fragilidades imensas na construção de uma comunidade sul-americana.

 

 É certo que nenhum país sozinho é capaz de enfrentar a lógica das corporações transnacionais que atuam sobre seus territórios ou mesmo enfrentar os conflitos entre as chamadas translatinas. Existem conflitos e competição na região em uma relação que expressa profundas assimetrias também. De certa forma, uma reprodução do que ocorre no plano global entre os países centrais e periféricos.

 

A região mudou politicamente e também no seu campo produtivo. A industrialização vem se reduzindo e o mercado de monoculturas de soja, açúcar, entre outras, vem tomando conta das áreas rurais e produzindo mais competição entre os países. As velhas categorias camponesas não servem mais para se entender o que está acontecendo na área rural que é ocupada por agricultores que pensam dentro de uma lógica empresarial, são mais empresários do que pequenos ou médios produtores.  Cada vez mais menos pessoas ocupam o campo e as tarefas se segmentam e se mercantilizam. Esse é outro camponês que está sendo forjado. Essas contradições precisam ser analisadas com profundidade pelos movimentos rurais e urbanos.

 

Dentro da Comunidade Sul-Americana acumulam-se tensões advindas da insistência em manter relações fundadas nas relações meramente comerciais; dependência internacional, etc. As alternativas possíveis passam pela construção de uma comunidade sul-americana que se coordene e se complemente em sua cadeia produtiva, quer seja industrial ou agrícola. Buscar formas ecológicas de produção agrícola, tecnologia limpa para produção de energia, preservação da água como bem público e com uso racional. Pensar a soberania dos povos e nações vinculadas às idéias de complementariedade produtiva, cultural e econômica.  Construir uma cidadania regional, aprofundamento democrático com parlamentos nacionais atuantes no plano regional e com processos fortemente participativos.

 

Essas foram questões apresentadas por vários painelistas durante a Cúpula Social pela Integração dos Povos ocorrida em Cochabamba, Bolívia neste final de ano. Temas fortes e que mostram o tamanho do problema que temos que enfrentar enquanto cidadãos e cidadãs desta região.

 

Do Ponto de vista dos Movimentos de ONGs

 

Outros debates foram desenvolvidos para tentar enfrentar o desafio das estratégias de comunicação e articulação com movimentos sociais, sindicatos e organizações não governamentais de outros continentes e intra-região. Muitos mapas das regiões e seus problemas de enfrentamento às imposições do neoliberalismo e seus mecanismos de pressão foram apresentados e desenvolvidas propostas de aproximação sobre eles. Neste sentido, África e Europa foram identificados como parceiros políticos fundamentais para a região.

 

Um dos maiores desafios tem ligação direta com os instrumentos e mecanismos de comunicação com objetivo de enfrentar o poder da chamada grande mídia. Como democratizar a informação, como criar linguagens que permitam entendimento dos debates internacionais na vida direta das pessoas? Houve análises sobre a iniciativa da Telesur da Venezuela e a possibilidade da criação de veículos de massa alternativos entre vários debates.

 

Debate dos Parlamentos no Contexto da Cúpula

 

A participação dos parlamentos nos processos de negociação comercial, entre outros, também foi tema de debate durante a Cúpula. Houve discussão sobre como valorizar o poder legislativo, mas, mais que isso, de como desenvolver um debate consistente para a criação de instituições legislativas regionais que possam construir uma cultura política que promova uma cidadania regional. Estiveram presentes deputados e senadores do Brasil, Paraguai, Uruguai, Bolívia, Argentina, além de representantes de organizações não-governamentais movimentos sociais e organizações internacionais.

 

Pensar o parlamento do MERCOSUL, Parlasul, Parlamento Andino, ou um parlamento da comunidade sul-americana que tenham como objetivo pensar os interesses e possibilidades solidárias e complementares para um projeto regional. Como produzir sinergias e integração entre as instituições sub-regionais? Como fortalecer processos de participação efetiva e forte dos movimentos sociais e organizações da sociedade civil no debate da cidadania regional, na defesa dos DHESCAS?  Como enfrentar os tratados comerciais e as propostas de infra-estrutura que estão se dando na região e trazer a discussão para os parlamentos? Enfim, muitos desafios.

 

Como pauta concreta, a criação de uma Frente Parlamentar Solidária nos parlamentos nacionais para atuarem como a semente de um grupo que pense essa cidadania regional sul-americana e, a partir dela, aprofundar a Frente Parlamentar Interamericana e de movimentos sociais para buscar caminhos alternativos às instituições existentes que não operam, são escoadouros de dinheiro público e que se burocratizaram totalmente.

 

Para enfrentar este debate, foi eleito um tema aglutinador: a matriz energética, em especial a água. Este tema permitiria desenvolver estudos e pesquisas de opinião dentro dos parlamentos para colocar o problema e começar o desenvolvimento de um pensamento articulado e regional sobre questões fundamentais como a soberania, a sobrevivência, o modelo produtivo e a construção de compartilhamento solidário, só para citar algumas questões que estão inseridas no debate da matriz energética e do uso da água. Outros temas foram levantados: migração, infra-estrutura, militarização, direitos humanos, direitos do trabalhador, etc.

 

Essa iniciativa busca construir, no marco desse novo ambiente de possibilidades da região, integrar os parlamentos no debate e trazer os conteúdos e acúmulos dos movimentos sociais para dentro dos parlamentos.

 

Categoria: Artigo
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